Daniel Pereira e Robson Bonin
Decano do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Celso de Mello terá a missão de decidir uma questão que vai repercutir diretamente no futuro dos brasileiros. No ano passado, o STF, sete anos após a revelação do esquema, atestou que o mensalão existiu — e que o governo Lula, a partir de uma quadrilha instalada na Casa Civil da Presidência da República, subornou parlamentares para aprovar projetos no Congresso, perpetuar o PT no poder e, assim, subjugar a democracia.
Celso de Mello decidirá se terá efeito depurador ou se entronizará a impunidade no Brasil o mais relevante julgamento da história do STF, que puniu com rigor o maior esquema de corrupção política do país. condenando 25 dos 38 réus a penas que, somadas, chegavam a 270 anos de prisão. Ele votou pela condenação dos réus do mensalão. Agora, com um voto de desempate, pode reverter a própria decisão ao, nas palavras de Joaquim Barbosa, presidente do tribunal, adiar o desfecho do caso para a "eternidade".
A sentença do STF mandou políticos e empresários poderosos para a cadeia. Ela foi recebida pela opinião pública como um divisor de águas no Brasil. Finalmente, os beneficiários históricos das decisões judiciais, os ricos e poderosos, membros da elite, conheceriam a Justiça a que se submetem as pessoas comuns, os cidadãos brasileiros destituídos de privilégios. O ministro Luís Roberto Barroso, o "novato", como o descreveu o ministro Marco Aurélio Mello, fez um comentário não apenas infeliz, mas equivocado.
Quando defendeu seu voto pela eternização do julgamento do mensalão, justificando-o, entre outras razões, pelo fato de não se importar com a reação da opinião pública.
Desde que chegou ao STF, Barroso dá votos e opiniões em voz agradável, tom conciliador, com o uso correto das formas gramaticais e, aparentemente para o leigo, de acordo com a melhor jurisprudência. Mas é o falso brilhante. Nenhum juiz, nenhuma corte em tempo algum, pode desprezar a opinião pública. A
vontade popular, a expressão da maioria vencedora do processo democrático, atua na própria escolha e aprovação de um ministro do STF. Eles estão lá porque foram indicados por um presidente, aprovados pelo Senado — e o foram pelo histórico de suas decisões, que não se deram no vácuo, mas no contexto de uma ideologia, uma filosofia do direito e da vida. Um juiz, mesmo ministro do STF, não pode se lixar para a opinião pública, como quer Barroso.
"Eu (...) faço o que acho certo, independentemente da repercussão. Não sou um juiz que me considero pautado pela repercussão. Não me considero um juiz pautado pelo que vai dizer o jornal do dia seguinte, que aguarda uma manchete favorável", disse Barroso. O veterano Marco Aurélio não fez por menos: "Veja que o novato parte para uma crítica ao próprio colegiado, como partiu em votos anteriores.
Disse, inclusive, que, se estivesse a julgar, não decidiria da forma com que decidimos". Numa referência indireta às supostas pressões, Marco Aurélio lembrou que Barroso chegou ao ponto de fazer elogios a um dos condenados em plenário. O nome não foi citado, mas se trata de José Genoíno, que presidiu o PT no primeiro mandato de Lula — o mandato em que o mensalão foi descoberto, o mandato que Barroso defendeu, em 2006, num manifesto assinado por juristas. Genoíno foi condenado por formação de quadrilha pelo fato de forjar um contrato que simulava empréstimos para dar uma aparência de legalidade ao dinheiro desviado para subornar parlamentares.
Em artigo seminal intitulado "O impacto da opinião pública sobre as decisões da Suprema Corte", os cientistas políticos americanos William Mishler e Reginald Sheehan mostra que, antes de mais nada, a própria "composição ideológica da Suprema Corte muda em resposta às mudanças anteriores ocorridas na sociedade". William Rehnquist, que presidiu a Suprema Corte dos Estados Unidos, reconhecia que um ministro não conseguirá nunca se "fechar hermeticamente" perante a opinião pública porque se o fizer "ele estará apenas refletindo as influências que recebeu antes de ser ministro".
Portanto, a decisão de mandar o julgamento do mensalão para a "eternidade", um longo tempo, sem dúvida, nunca será apenas técnica. Ela será resultado de algum vetor externo, até porque, como disse Rehnquist, "os juízes, quando são seres humanos relativamente normais, não podem escapar da influência da opinião pública tanto quanto qualquer outro profissional". Também não podem escapar do julgamento que deles fará a maioria leiga da população. Essas considerações podem até nem passar pela cabeça do ministro Celso de Mello quando ele der seu voto decisivo, na próxima quarta-feira. Mas o fato de ele não pensar nelas não as faz desaparecer.
Coube o desempate a Celso de Mello porque cinco ministros defenderam a admissibilidade do reexame das acusações feitas a doze mensaleiros — entre eles o ex-ministro José Dirceu e os deputados petistas João Paulo Cunha e José Genoíno —, enquanto outros cinco ministros rechaçaram essa tese. Ele será o 1º a votar. O reexame significa eternizar, literalmente, o julgamento. O tempo para chegar a um novo veredicto pode ser de dois anos. Seria um milagre.
O julgamento original deveria durar um ano. Durou sete. Adiado para as calendas gregas, o desfecho do mensalão deixa de ser um divisor de águas para ser apenas mais um riacho tributário do imenso charco de impunidade que tanto sofrimento e vergonha traz aos brasileiros.
É possível adivinhar o voto do ministro Celso de Mello? Alguns analistas acreditam que ele praticamente já deixou claro que concordará com os pedidos da defesa dos réus para que possam reabrir o caso valendo-se de um recurso regimental protelatório, os embargos infringentes.
Disse o ministro Celso de Mello: "O STF, em normas que não foram derrogadas e que ainda vigem, reconhece a possibilidade de impugnação de decisões de mandados do plenário desta corte em sede penal, não apenas os embargos de declaração, mas também os embargos infringentes do julgado, que se qualificam como recurso ordinário dentro do STF, na medida em que permitem a rediscussão de matéria de fato e a reavaliação da própria prova penal".
Quando os repórteres perguntaram ao ministro se ele mantinha esse entendimento, ele respondeu: "Acho que não evoluí. Será que evoluí?". O Brasil saberá na tarde da próxima quarta-feira.
Celso de Mello morou na mesma pensão que José Dirceu, em São Paulo, na década de 60. Não eram amigos, nem próximos. Se o decano votar pela admissibilidade dos embargos infringentes, pavimentará o caminho para que o ex-ministro se livre da condenação por formação de quadrilha, ou, pelo menos, da obrigação de começar a cumprir sua pena em regime fechado. O mesmo valerá para o ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares. Na primeira etapa do julgamento, os dois foram tachados de quadrilheiros por 6 votos a 4. Celso de Mello foi autor de um dos votos mais contundentes ao condenar os mensaleiros.
"Agentes públicos que se deixam corromper e particulares que corrompem são, corruptores e corruptos, os profanadores da República, os subversivos da ordem institucional, os delinquentes, os marginais da ética do poder", disse o decano. "Esse processo revela um dos episódios mais vergonhosos da história política do nosso país, pois os elementos probatórios que foram produzidos pelo Ministério Público expõem aos olhos de uma nação estarrecida, perplexa e envergonhada um grupo de delinquentes que degradou a atividade política, transformando-a em plataforma de ações criminosas."
Celso de Mello vive, portanto, uma situação paradoxal. Se aceitar os embargos infringentes, provavelmente testemunhará a declaração de inexistência da quadrilha, a retirada da Casa Civil (e do governo) do cenário do crime e, de quebra, o abrandamento da pena aplicada a Dirceu, que teria apenas de dormir na cadeia. Se rejeitá-los, os "delinquentes" terão de expiar seus pecados já e em condições à altura da gravidade de suas "ações criminosas".
O ministro Gilmar Mendes, que condenou os mensaleiros no julgamento do ano passado, foi um dos cinco que, na última semana, rejeitaram o adiamento ad aeternum do resultado prático das sentenças. Mendes também notou que o "novato" Barroso já havia tentado reduzir a importância do mensalão e criticou os comentários dele de que as penas dos réus pecavam por "excesso e exagero".
"Já se disse que esse crime não era o maior escândalo já perpetrado. Ainda que fossem só 170 milhões de reais, não foi só isso, nós falamos de um sistema criado para comprometer a democracia, manipular a vontade de parlamentares. Não se trata, portanto, de pena exacerbada", explicou o ministro Gilmar Mendes.
Em sua enfática rejeição da aceitação dos embargos infringentes, Gilmar Mendes lembrou que eles abririam uma porteira para desfigurar todo o julgamento do mensalão e desmoralizar a própria instituição: "Trata-se de controlar um tribunal juvenil e irresponsável que não sabe como vota? O tamanho da incongruência é do tamanho do mundo, senhor presidente". Marco Aurélio reforçaria a reação. "Os olhos da nação estão voltados para o Supremo. Estamos a 1 voto. Que responsabilidade, hein, ministro Celso de Mello."
Em argumento totalmente ao alcance do senso comum, o ministro Marco Aurélio sustentou que seria um absurdo permitir que decisões da mais alta corte do país ficassem sujeitas a recursos protelatórios, os embargos infringentes. que não são aceitos por tribunais inferiores, como é o caso do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Faz todo o sentido. Se o STF permitir que suas decisões não sejam definitivas, as instâncias inferiores que, por decisão do STF, ficaram proibidas de aceitar esse tipo de manobra vão reabrir esse alçapão de morosidade e, consequentemente, de impunidade.
O homem que decidirá o futuro dos mensaleiros sabe muito bem o peso que recai sobre seus ombros. Em dois recentes julgamentos, o ministro Celso de Mello sustentou seu voto recordando que naqueles casos o STF também estava sendo julgado. "Relembrando o saudoso ministro Luiz Gallotti, e considerando o alto significado da decisão a ser tomada por esta Suprema Corte, tenho presente a grave advertência, por ele então lançada, de que, em casos emblemáticos como este, o Supremo Tribunal Federal, ao proferir o seu julgamento, poderá ser, ele próprio "julgado pela nação"."
No primeiro caso, o das células-tronco embrionárias. Mello decidiu que não configura crime o uso delas em pesquisas: "Não questiono a sacralidade da vida e a inviolabilidade do direito à vida. Reconheço, ainda, para além da adesão a quaisquer artigos de fé, que o direito à vida reveste-se, em sua significação mais profunda, de um sentido de inegável fundamentalidade, não importando os modelos políticos, sociais ou jurídicos que disciplinem a organização dos Estados". No segundo, continuou defendendo a separação absoluta entre Estado e religião ao julgar que a interrupção da gravidez de feto anencéfalo não é crime.
"O fato irrecusável é que, nesta República laica, fundada em bases democráticas, o Direito não se submete à religião", sustentou.
Com 24 anos de corte recém-completados, o ministro mais antigo do Supremo é tido como um "garantista" por alguns colegas. As decisões de Celso de Mello seguem o padrão aprendido quando ainda era promotor de Justiça em São Paulo e têm sempre uma segurança jurídica que garante ao réu seus direitos fundamentais. Não é à toa que advogados costumam defini-lo como "um homem extremamente justo".
Mello também é visto ao mesmo tempo como progressista e liberal em suas decisões. Entre as mais destacadas, a que declarou a inconstitucionalidade de um trecho da Lei de Drogas, que proibia a concessão de liberdade provisória nos casos de tráfico de entorpecentes, e a aplicação do princípio da insignificância, que afasta o crime quando a conduta não representa prejuízo importante.
Dono de uma memória invejável, o decano é responsável por muitos precedentes da corte. Em 2012, o ministro anunciou que solicitaria a aposentadoria no início deste ano. Precisava cuidar da saúde, fragilizada pelo excesso de trabalho. Os mais antigos pediram a ele que adiasse os planos até a conclusão total do julgamento dos recursos. Será, provavelmente, seu último julgamento.
Desde a saída de Lula da Presidência da República, petistas pressionam o Supremo no caso do mensalão. Lula conversou diretamente com ministros a fim de conseguir o adiamento do julgamento e a absolvição em certas acusações. Patrocinou ainda uma CPI, no ano passado, em tentativa de desqualificar e constranger o Ministério Público e a imprensa, responsáveis pela descoberta, investigação e denúncia do maior esquema de corrupção política da história do país.
A ideia era tumultuar o julgamento, minando a credibilidade de seus participantes e de provas colhidas. O lobby não surtiu o efeito esperado pela tropa mensaleira. A maioria dos réus acabou condenada. Foi um momento de afirmação do Poder Judiciário. Foi a consagração de instituições republicanas que não se curvam aos poderosos de turno.
Foi um duro golpe na impunidade. Foi o sinal de que o mensalão não terminaria como piada de salão, tal qual previu Delúbio Soares. De fato, não terminou como piada, mas a reabertura do julgamento certamente dará aos criminosos motivos para continuar zombando da Justiça e aos cidadãos brasileiros mais uma razão de descrença na construção de uma nação justa e viável para esta e as próximas gerações.
17 de setembro de 2013
Revista Veja 16/09/2013
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