O que tem que ver uma medida provisória (MP) que trata do setor sucroalcooleiro, visando especificamente a Região Nordeste, com nova regulamentação que permite a captação de receitas entre drogarias e farmácias de manipulação? Literalmente, nada!
No entanto, esse é o caso da MP n.º 615, de 2013 - muito apropriadamente denominada pelo Estadão de "farra das MPs", em editorial de 16 de setembro -, ora pendente de sanção pela presidente da República. A situação é surreal!
Interesses dos mais difusos e, às vezes, mais obscuros são contemplados em negociações que têm como objetivo a aprovação de uma MP de interesse do governo. Assuntos que nada têm em comum com o assunto tratado são inseridos arbitrária e açodadamente num texto legal, sem passarem pelos trâmites legislativos ordinários, próprios, por exemplo, de projetos de lei.
Isso faz com que discussões não tenham lugar, o embate e o confronto de opiniões não se realizem e os argumentos pró e contra sejam simplesmente desconsiderados. O que seria o trâmite específico do processo legislativo simplesmente não ocorre, sendo substituído pelo arbítrio de interesses que estavam à espreita de uma oportunidade para se concretizarem.
Trata-se de uma prática que perverte o processo legislativo. É como se o interesse que teme a discussão clara e ordenada, não ousando apresentar-se sob a forma de projeto de lei, pudesse apenas prosperar sob essa forma legal da medida provisória, porém essencialmente distorcida. Um Legislativo que se preze não poderia compactuar com tal tipo de prática. É o próprio processo de criação e elaboração de leis que é sumariamente abandonado.
No caso em questão, o efeito é ainda mais perverso, porque afeta a saúde da população, transformando o texto legal em vigor e até uma resolução da Anvisa, de 2007. O problema é grave: como pode um agregado extemporâneo a uma medida provisória alterar um texto legal, fruto de todo um processo legislativo, e uma resolução posterior da Anvisa tratando da mesma questão? Se há algo a ser mudado, deveria ele seguir os trâmites legislativos normais, e não ser introduzido de forma arbitrária no calor de uma negociação a respeito do setor de cana-de-açúcar e etanol.
Atualmente, drogarias não podem captar receitas com prescrições magistrais, próprias de farmácias de manipulação. O que se visa com isso é manter a qualidade dos produtos manipulados e a saúde da população. Não se trata de uma separação arbitrária, pois ela obedece a formas de produção e personalização de produtos bastante distintas. O que está em questão é o coletivo, e não os interesses setoriais.
Farmácias de manipulação são rigorosamente controladas. Obedecem a uma série de condições e critérios que as distinguem das drogarias. Cada uma delas tem laboratório, farmacêutico responsável, trata os seus clientes de forma individualizada, segue regras sanitárias estritas e obedece a condições rigorosas de conservação de seus produtos. Medicamentos manipulados são únicos e personalizados, distinguindo-se, nesse sentido, dos medicamentos industrializados, que obedecem a outras regras e condições.
Drogarias, por sua vez, vendem medicamentos em série, caracterizando-se pelo comércio de produtos industrializados. Não têm a cultura do produto manipulado, tampouco possuem os laboratórios correspondentes. Logo, não obedecem às regras próprias, sanitárias e laboratoriais, das farmácias de manipulação. Sua atividade é completamente distinta. Só o olhar incauto as identificaria.
Dessa maneira, o agregado introduzido pelo artigo 36 na Medida Provisória 615 visa a abolir essa distinção, fazendo com que as drogarias venham a exercer certas funções das farmácias de manipulação, sem terem as condições de cultura, laboratoriais e sanitárias para tal. O risco daí decorrente pode ser grande para clientes que, inadvertidamente, passem a recorrer a drogarias para adquirirem um produto que lá não é manipulado. Ou seja, sob a forma aparentemente anódina de uma autorização para que drogarias e farmácias possam captar receitas entre si, introduz-se uma grande modificação. Eis o perigo.
Para além dos problemas próprios de conservação dos produtos manipulados e das condições laboratoriais específicas de sua produção, perde-se a cultura da relação pessoal com o cliente e da de produtos únicos, que são individualizados de acordo com as necessidades de cada um. Receituários médicos, odontológicos e veterinários exercem, precisamente, essa função. São prescrições personalizadas. É como se os medicamentos manipulados pudessem vir a ser produzidos em série, industrialmente, o que contraria justamente a sua natureza própria.
Ademais, a autorização de captação de receitas entre estabelecimentos de natureza distinta (farmácias de manipulação e drogarias) faria com que a ação fiscalizadora da autoridade sanitária correspondente se visse sensivelmente enfraquecida. As farmácias de manipulação, que obedecem a uma legislação sanitária estrita, cujo objetivo consiste em preservar a qualidade, a segurança e a eficácia dos seus produtos, ver-se-iam confrontadas com uma situação completamente distinta. Seus medicamentos e suas finalidades próprias de individualização correriam um grande risco, podendo afetar a saúde da população. Quem seria responsável?
Não pode, portanto, vingar, na farra de negociação de uma MP, que o arbitrário vença uma regulamentação legal vigente, que atende às necessidades da população brasileira. Se for para mudar, que todos sejam ouvidos, que os interessados apresentem os seus argumentos, num processo legislativo adequado aos projetos de lei. Os direitos do cidadão seriam, assim, preservados. Urge que a presidente da República vete o artigo 36 da Medida Provisória n.º 615.
24 de setembro de 2013
Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na UFRGS. O Estado de São Paulo
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