Por intermédio de Lula, Hugo Chávez inscreveu a Venezuela na Internacional da Corrupção capitaneada pela Odebrecht
“A História repete-se a si mesma; a primeira vez, como tragédia; depois, como farsa”. A célebre proposição de Marx, parcialmente extraída de Hegel, aplica-se à Venezuela, mas com uma torção imprevista: a recorrência como farsa trágica. A “revolução bolivariana” é uma segunda escritura da revolução castrista em Cuba. O abismo entre uma e outra ilumina o íngreme declínio — político, intelectual e moral — da esquerda.
Cuba é um fracasso, como reconheceu o próprio Raúl Castro, mas pertence à era da utopia revolucionária socialista. Fidel e Che edificaram uma tirania prometendo reinventar a vida econômica e a sociedade. Fiéis à tradição comunista, devotaram-se até mesmo à criação do “homem novo”, a mais perigosa das ambições totalitárias. A farsesca Venezuela chavista, por outro lado, fracassou sem jamais adotar um modelo socialista. Hugo Chávez ergueu um capitalismo de Estado baseado nas rendas petrolíferas, cultivou uma “boliburguesia” (os empresários “bolivarianos”) e, por intermédio de Lula, inscreveu o país na Internacional da Corrupção capitaneada pela Odebrecht.
A utopia castrista aqueceu a esquerda, especialmente na América Latina, oferecendo-lhe um santuário e permitindo-lhe ignorar as lições do stalinismo soviético. Contudo, a revolução sem utopia na Venezuela também contou com o suporte dos líderes políticos e dos arautos intelectuais da esquerda. O Brasil do lulopetismo e a Argentina kirchnerista, além de atores menores, como a Bolívia de Evo Morales e a Nicarágua de Daniel Ortega, cercaram o regime chavista com uma rede de proteção diplomática que contribuiu para sua escalada autoritária. Menos conhecida é a atração exercida pela “revolução bolivariana” sobre a chamada “nova esquerda” europeia.
“Há 14 anos, seis milhões eram pobres; hoje, seis milhões de pessoas têm direitos — e esta é a grande contribuição de Chávez”, proclamou Alexis Tsipras, chefe do Syriza grego, em 2013, nos funerais do caudilho. Na mesma época, durante um ato público em Madri, Pablo Iglesias, fundador do partido espanhol Podemos, definiu-o como “a democracia dos de baixo”, “a democracia das maiorias sociais”, enquanto Jeremy Corbyn, líder esquerdista do Partido Trabalhista britânico, celebrou-o como “uma inspiração para todos nós”. No mês seguinte, saudando o discutível triunfo eleitoral de Nicolás Maduro, Jean-Luc Mélenchon, o porta-bandeira da esquerda radical francesa, também empregou a palavra “inspiração”.
O regime chavista tem um componente civil e um militar. A aliança repousa sobre a corrupção institucionalizada. A fidelidade da cúpula das Forças Armadas deriva da cessão de lucrativos negócios aos militares, que ficaram encarregados da importação de alimentos e extraem rendas especulativas da manipulação do sistema de câmbio duplo. Bernie Sanders, o ex-candidato esquerdista do Partido Democrata americano, distinguiu-se honrosamente de seus companheiros europeus em 2016, quando qualificou Chávez como “um ditador comunista morto”.
Na Cuba castrista, implantou-se a ditadura na sequência imediata de uma revolução democrática que contou com extenso apoio popular. Nada justifica o suporte perene da esquerda à tirania cubana, mas o fenômeno encontra explicação nas loucas esperanças produzidas pelo jorro utópico inicial. Já na Venezuela chavista, a ditadura cristalizou-se aos poucos, à medida em que o regime eleito democraticamente perdia apoio popular. “Revolução bolivariana” é só um rótulo propagandístico cunhado por Chávez: o suporte da esquerda ao regime de Caracas ilumina uma aversão fundamental às ideias de liberdade e pluralidade política.
“A esquerda no século XXI não pode ter dúvida em relação à democracia”, pontificou o petista Fernando Haddad, dias atrás, num curso de pós-graduação. É boa, mas infrutífera e um tanto hipócrita, a insistência na antiga lição, enunciada nos idos de 1975 pelo italiano Enrico Berlinguer, o secretário-geral de um Partido Comunista que rompia com Moscou, rejeitava a invasão soviética da Tchecoslováquia e proclamava um “compromisso histórico” com o pluralismo. A farsa trágica venezuelana evidencia que, sem surpresa, a esquerda foi reprovada, uma vez mais, no teste da democracia.
Hoje, de olho em seus eleitores, Corbyn e Iglesias murmuram frases dúbias de reprovação de Maduro. Já Mélenchon, que pregou a neutralidade entre as opções de Macron e Le Pen, sai em defesa aberta do tiranete de Caracas. Dos “intelectuais de esquerda” brasileiros, figuras sempre disponíveis para assinar manifestos, não se ouve nem um débil protesto. O próprio Haddad nada faz para convencer o PT a denunciar as violências na Venezuela, enquanto Gleisi Hoffmann, a presidente do partido, anuncia seu apoio, emocionado e incondicional, à ditadura de Maduro.
Na primeira vez, Cuba, a esquerda ainda tinha um álibi precário. Na segunda, a farsesca Venezuela, perdeu o direito ao perdão. De fato, a esquerda não nutre dúvidas sobre a democracia: hoje, como antes, sua opção preferencial é a ditadura.
13 de agosto de 2017
Demétrio Magnoli é sociólogo. O Globo
“A História repete-se a si mesma; a primeira vez, como tragédia; depois, como farsa”. A célebre proposição de Marx, parcialmente extraída de Hegel, aplica-se à Venezuela, mas com uma torção imprevista: a recorrência como farsa trágica. A “revolução bolivariana” é uma segunda escritura da revolução castrista em Cuba. O abismo entre uma e outra ilumina o íngreme declínio — político, intelectual e moral — da esquerda.
Cuba é um fracasso, como reconheceu o próprio Raúl Castro, mas pertence à era da utopia revolucionária socialista. Fidel e Che edificaram uma tirania prometendo reinventar a vida econômica e a sociedade. Fiéis à tradição comunista, devotaram-se até mesmo à criação do “homem novo”, a mais perigosa das ambições totalitárias. A farsesca Venezuela chavista, por outro lado, fracassou sem jamais adotar um modelo socialista. Hugo Chávez ergueu um capitalismo de Estado baseado nas rendas petrolíferas, cultivou uma “boliburguesia” (os empresários “bolivarianos”) e, por intermédio de Lula, inscreveu o país na Internacional da Corrupção capitaneada pela Odebrecht.
A utopia castrista aqueceu a esquerda, especialmente na América Latina, oferecendo-lhe um santuário e permitindo-lhe ignorar as lições do stalinismo soviético. Contudo, a revolução sem utopia na Venezuela também contou com o suporte dos líderes políticos e dos arautos intelectuais da esquerda. O Brasil do lulopetismo e a Argentina kirchnerista, além de atores menores, como a Bolívia de Evo Morales e a Nicarágua de Daniel Ortega, cercaram o regime chavista com uma rede de proteção diplomática que contribuiu para sua escalada autoritária. Menos conhecida é a atração exercida pela “revolução bolivariana” sobre a chamada “nova esquerda” europeia.
“Há 14 anos, seis milhões eram pobres; hoje, seis milhões de pessoas têm direitos — e esta é a grande contribuição de Chávez”, proclamou Alexis Tsipras, chefe do Syriza grego, em 2013, nos funerais do caudilho. Na mesma época, durante um ato público em Madri, Pablo Iglesias, fundador do partido espanhol Podemos, definiu-o como “a democracia dos de baixo”, “a democracia das maiorias sociais”, enquanto Jeremy Corbyn, líder esquerdista do Partido Trabalhista britânico, celebrou-o como “uma inspiração para todos nós”. No mês seguinte, saudando o discutível triunfo eleitoral de Nicolás Maduro, Jean-Luc Mélenchon, o porta-bandeira da esquerda radical francesa, também empregou a palavra “inspiração”.
O regime chavista tem um componente civil e um militar. A aliança repousa sobre a corrupção institucionalizada. A fidelidade da cúpula das Forças Armadas deriva da cessão de lucrativos negócios aos militares, que ficaram encarregados da importação de alimentos e extraem rendas especulativas da manipulação do sistema de câmbio duplo. Bernie Sanders, o ex-candidato esquerdista do Partido Democrata americano, distinguiu-se honrosamente de seus companheiros europeus em 2016, quando qualificou Chávez como “um ditador comunista morto”.
Na Cuba castrista, implantou-se a ditadura na sequência imediata de uma revolução democrática que contou com extenso apoio popular. Nada justifica o suporte perene da esquerda à tirania cubana, mas o fenômeno encontra explicação nas loucas esperanças produzidas pelo jorro utópico inicial. Já na Venezuela chavista, a ditadura cristalizou-se aos poucos, à medida em que o regime eleito democraticamente perdia apoio popular. “Revolução bolivariana” é só um rótulo propagandístico cunhado por Chávez: o suporte da esquerda ao regime de Caracas ilumina uma aversão fundamental às ideias de liberdade e pluralidade política.
“A esquerda no século XXI não pode ter dúvida em relação à democracia”, pontificou o petista Fernando Haddad, dias atrás, num curso de pós-graduação. É boa, mas infrutífera e um tanto hipócrita, a insistência na antiga lição, enunciada nos idos de 1975 pelo italiano Enrico Berlinguer, o secretário-geral de um Partido Comunista que rompia com Moscou, rejeitava a invasão soviética da Tchecoslováquia e proclamava um “compromisso histórico” com o pluralismo. A farsa trágica venezuelana evidencia que, sem surpresa, a esquerda foi reprovada, uma vez mais, no teste da democracia.
Hoje, de olho em seus eleitores, Corbyn e Iglesias murmuram frases dúbias de reprovação de Maduro. Já Mélenchon, que pregou a neutralidade entre as opções de Macron e Le Pen, sai em defesa aberta do tiranete de Caracas. Dos “intelectuais de esquerda” brasileiros, figuras sempre disponíveis para assinar manifestos, não se ouve nem um débil protesto. O próprio Haddad nada faz para convencer o PT a denunciar as violências na Venezuela, enquanto Gleisi Hoffmann, a presidente do partido, anuncia seu apoio, emocionado e incondicional, à ditadura de Maduro.
Na primeira vez, Cuba, a esquerda ainda tinha um álibi precário. Na segunda, a farsesca Venezuela, perdeu o direito ao perdão. De fato, a esquerda não nutre dúvidas sobre a democracia: hoje, como antes, sua opção preferencial é a ditadura.
13 de agosto de 2017
Demétrio Magnoli é sociólogo. O Globo
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