O triste fato é que as ideias pró-mercado não são encontradas de forma natural no sistema partidário brasileiro - foi preciso a hiperinflação para que essas ideias pudessem se materializar
Soube recentemente numa conferência que a quase totalidade do salmão consumido no Brasil é de cativeiro e que, nessas condições, talvez pela melancolia, sua carne possui uma coloração cinza esbranquiçada nada parecida com o vibrante cor de laranja sempre destacado nas propagandas de comida japonesa.
Mas não é nada que não se corrija com uma alimentação equilibrada.
A coloração alaranjada que todos apreciam, e que pode ser encontrada em qualquer restaurante, se deve, na verdade, a um corante introduzido na ração, a astaxantina, um carotenoide normalmente encontrado em crustáceos e que tem fortes propriedades antioxidantes, entre outros benefícios para a saúde.
Não sei você, caro leitor, mas eu não tinha ideia que o meu sashimi favorito era colorido artificialmente por produtos de uma dupla de multinacionais europeias. Tampouco que o cultivo de salmões pelo mundo é feito por algumas poucas empresas grandes, operando em vários países e sob rigorosos padrões tecnológicos e de qualidade. Nada menos artesanal: uma interessante lição para quem acha que fabricar parafusos com alto conteúdo nacional é melhor do que cultivar a terra ou o mar com alto conteúdo de inteligência.
Passando às doutrinas econômicas, parece-me que o governo Michel Temer é como o salmão de cativeiro que foi buscar sua coloração em conceitos e pessoas que sempre estiveram bem longe das ideias cinza esbranquiçadas adotadas historicamente por esse grupo político.
Numa primeira observação, é fácil afirmar que o ideário fiscal e de reforma encampado pelo governo é de origem tucana, e que este seria o colorante a enfeitar uma agenda que está conosco há vários anos. Curiosamente, esse salmão atucanado parece, às vezes, mais despojado que o original, ao menos a julgar pela propaganda na TV para a reforma da Previdência, que foi bem além do que os tucanos jamais ousaram: fala do código de trânsito (cinto de segurança), da privatização (sem a qual ninguém teria celular) e do Plano Real, tudo isso junto, com orgulho e convicção como não se viu entre as lideranças do PSDB no decorrer do tempo.
Pensando bem, talvez tenha sido o próprio PSDB a inventar esse fenômeno da colorização artificial de peixes sem muita personalidade. Como era mesmo o salmão tucano em seu hábitat natural? Teria mesmo esta vibrante tonalidade alaranjada neoliberal pró-mercado? Ou estaria para um avermelhado mais à esquerda, como de um atum alimentado com pasta de tomates?
O triste fato é que as ideias pró-mercado não são encontradas de forma natural no sistema partidário brasileiro. Foi preciso uma urgência nacional – a hiperinflação – agravada por sucessivos fracassos em lidar com o assunto usando a medicina alternativa, para que as ideias pró-mercado encontrassem uma janela para se materializar nas reformas que compuseram o Plano Real.
Sim, o PSDB também se serviu de corantes e aditivos para se apresentar ao País com a nova moeda e suas agendas de reforma, mas mesmo conseguindo muitos êxitos, foi perdendo o viço, como se vacilasse diante do que colocou em movimento e corasse diante da acusação de neoliberalismo. Não foi à toa que lhe apuseram a imagem do muro e da indecisão.
Mas foi do PSDB que veio em 1988 o famoso desabafo de Mario Covas, segundo o qual o Brasil precisa de um choque de capitalismo. É certo que ainda precisa e que no sistema partidário em particular está mais do que na hora de ver aparecer ideias pró-mercado em formato assertivo e diretamente hostil ao corporativismo e ao capitalismo de apaniguados e quadrilhas que estamos assistindo desmoronar nos últimos tempos.
Até o fim do dia, na sexta-feira, os mercados estavam relativamente calmos achando que o corante havia triunfado sobre o salmão, e que a sequência de eventos políticos, qualquer que fosse, ia resultar na manutenção da equipe e das ideias econômicas a governar a política econômica e a agenda de reformas de que o País tanto precisa.
Até segunda ordem, a premissa é que tanto faz se temos salmão, bacalhau ou namorado, desde que seja fresco e honesto, e traga os corantes e aditivos certos para o paladar e para a saúde econômica do País.
31 de maio de 2017
Gustavo Franco, Estadão
Soube recentemente numa conferência que a quase totalidade do salmão consumido no Brasil é de cativeiro e que, nessas condições, talvez pela melancolia, sua carne possui uma coloração cinza esbranquiçada nada parecida com o vibrante cor de laranja sempre destacado nas propagandas de comida japonesa.
Mas não é nada que não se corrija com uma alimentação equilibrada.
A coloração alaranjada que todos apreciam, e que pode ser encontrada em qualquer restaurante, se deve, na verdade, a um corante introduzido na ração, a astaxantina, um carotenoide normalmente encontrado em crustáceos e que tem fortes propriedades antioxidantes, entre outros benefícios para a saúde.
Não sei você, caro leitor, mas eu não tinha ideia que o meu sashimi favorito era colorido artificialmente por produtos de uma dupla de multinacionais europeias. Tampouco que o cultivo de salmões pelo mundo é feito por algumas poucas empresas grandes, operando em vários países e sob rigorosos padrões tecnológicos e de qualidade. Nada menos artesanal: uma interessante lição para quem acha que fabricar parafusos com alto conteúdo nacional é melhor do que cultivar a terra ou o mar com alto conteúdo de inteligência.
Passando às doutrinas econômicas, parece-me que o governo Michel Temer é como o salmão de cativeiro que foi buscar sua coloração em conceitos e pessoas que sempre estiveram bem longe das ideias cinza esbranquiçadas adotadas historicamente por esse grupo político.
Numa primeira observação, é fácil afirmar que o ideário fiscal e de reforma encampado pelo governo é de origem tucana, e que este seria o colorante a enfeitar uma agenda que está conosco há vários anos. Curiosamente, esse salmão atucanado parece, às vezes, mais despojado que o original, ao menos a julgar pela propaganda na TV para a reforma da Previdência, que foi bem além do que os tucanos jamais ousaram: fala do código de trânsito (cinto de segurança), da privatização (sem a qual ninguém teria celular) e do Plano Real, tudo isso junto, com orgulho e convicção como não se viu entre as lideranças do PSDB no decorrer do tempo.
Pensando bem, talvez tenha sido o próprio PSDB a inventar esse fenômeno da colorização artificial de peixes sem muita personalidade. Como era mesmo o salmão tucano em seu hábitat natural? Teria mesmo esta vibrante tonalidade alaranjada neoliberal pró-mercado? Ou estaria para um avermelhado mais à esquerda, como de um atum alimentado com pasta de tomates?
O triste fato é que as ideias pró-mercado não são encontradas de forma natural no sistema partidário brasileiro. Foi preciso uma urgência nacional – a hiperinflação – agravada por sucessivos fracassos em lidar com o assunto usando a medicina alternativa, para que as ideias pró-mercado encontrassem uma janela para se materializar nas reformas que compuseram o Plano Real.
Sim, o PSDB também se serviu de corantes e aditivos para se apresentar ao País com a nova moeda e suas agendas de reforma, mas mesmo conseguindo muitos êxitos, foi perdendo o viço, como se vacilasse diante do que colocou em movimento e corasse diante da acusação de neoliberalismo. Não foi à toa que lhe apuseram a imagem do muro e da indecisão.
Mas foi do PSDB que veio em 1988 o famoso desabafo de Mario Covas, segundo o qual o Brasil precisa de um choque de capitalismo. É certo que ainda precisa e que no sistema partidário em particular está mais do que na hora de ver aparecer ideias pró-mercado em formato assertivo e diretamente hostil ao corporativismo e ao capitalismo de apaniguados e quadrilhas que estamos assistindo desmoronar nos últimos tempos.
Até o fim do dia, na sexta-feira, os mercados estavam relativamente calmos achando que o corante havia triunfado sobre o salmão, e que a sequência de eventos políticos, qualquer que fosse, ia resultar na manutenção da equipe e das ideias econômicas a governar a política econômica e a agenda de reformas de que o País tanto precisa.
Até segunda ordem, a premissa é que tanto faz se temos salmão, bacalhau ou namorado, desde que seja fresco e honesto, e traga os corantes e aditivos certos para o paladar e para a saúde econômica do País.
31 de maio de 2017
Gustavo Franco, Estadão
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