"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

CRUELDADE

Nunca se falou tanto em prisão, disso, daquilo, de um, de outro, coercitiva, temporária, preventiva, o escambau. Nunca se viu tanta gente desejar, sorrir, aplaudir, soltar fogos, dar gritinhos de prazer, comemorar a prisão de outras pessoas que nem conhece mas para as quais deseja o pior possível. Será que se tem noção do que é uma prisão, como deveria ser, qual sua função?


[Atenção, aviso: esse texto não tem o objetivo de defender ninguém, corrupto, corruptinho, corruptão, colarinho branco ou colorido. Muito menos o de fazer proselitismo político de qualquer linha, babar para qualquer juiz, entrar para a direita ou esquerda. É uma crônica em que se tenta refletir. Só que qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real não é mera coincidência. ]

A liberdade é o maior bem que existe. Ah, sim, é. É o que pode haver de mais valioso ao ser humano. Não só: creio que aos pássaros e aos animais a liberdade também tenha valor imensurável. 

Nada de gaiolas, jaulas, redes, gradis, cercas, ausência de luz, do Sol e da dimensão do tempo, das horas, dias e anos. 
E como os animais são a princípio sempre inocentes, ao contrário dos malvados humanos, sua detenção pode ser ainda muito mais cruel. Dependendo de suas espécies, são presos para serem mostrados, alguns como troféus. Alguns, para que cantem.

Não posso deixar de traçar paralelos, chamar a atenção para um ângulo da questão que está contribuindo para que pioremos muito como cidadãos, fazendo com que desçamos muito na escada evolutiva. 
O que é que estamos fazendo, como autômatos? Ligando a televisão para saber quem foi a presa do dia? Na casa de quem tocaram logo cedo para levar para viajar para um certo lugar? Plantões jornalísticos se formam para ver o avião decolar, helicópteros são usados para acompanhar o comboio policial. Ainda bem que perderam a mania de divulgar diariamente o cardápio como faziam no início.

Na minha lista de amigos nas redes sociais, muito ampliada por causa da profissão, vejo gente que passa o dia e parte da noite teclando impropérios, jogando toda a sua energia para pedir que se aprisione alguém desses que viraram rotina, ricos ou políticos. Os olhos brilham, as palavras pesadas brotam, e eles escrevem quase pedindo justiça com as próprias mãos, tortura, maus tratos. 
Por eles, desculpem, mas é o que passa, nem comida essa gente deveria receber. Se pudessem jogariam ratos, baratas e serpentes venenosas dentro das celas.

Se pudessem pagariam entrada, como se faz no Zoológico, para ir vê-los, fotografá-los, atiçá-los. As filas virariam quarteirões. Pensam que, como os canários, todos dentro das gaiolas sairão cantando, delatando.

Incomoda que não os vejo, contudo, usando dessa mesma energia para os assassinos de mulheres que estão brotando como nunca em nosso solo, apenas para dar um exemplo da contradição. 
Especialmente querem capturar o sapo-rei. 
Querem os peixes grandes, ricos e famosos, as celebridades. Repara como já se assemelham as coberturas jornalísticas de viagem a ilhas e as viagens às prisões e carceragens. O carro da esposa de um, a bolsa da mulher do outro...

Pense no que é uma prisão, o horror, e que gente de bom sentimento não pode se esbaldar com a prisão de outro ser, por mais que esse mereça e aí, se culpado for, punido e condenado for, não há dúvida, ali pagará mesmo por seu crime, porque, repito, é o horror. 
Não é por menos que vários barris de pólvora andam estourando em todo o território nacional.

Sim, porque visitava conheci bem uma prisão. Um presídio político, aliás, o do Barro Branco, em plena ditadura, onde semanalmente ia ver amigos meus, e era do Comitê de Anistia. 
Olha que dia de visita era especial. As grades ficavam abertas, e as crianças corriam de cela em cela naquele pequeno espaço, naquele corredor onde cada porta era de uma organização política diferente. Mas da minha mente jamais saiu a visão daquele pátio tenebroso, da privada turca cravada no chão, da frieza e do barulho dos pratos e colheres de alumínio, do olhar triste e melancólico da hora da despedida, do som do portão se fechando atrás de mim.

E olha só que coisa: justamente homens que estavam ali presos porque lutavam - de uma forma ou outra, sim, pelo poder político de visionários líderes - mas que antes de mais nada foram presos quando buscavam alcançar a liberdade que pudesse propiciar à política ter algum poder.

Toda prisão pode merecer ser revogada. Pensa só. Mas com a cabeça, não com o fígado.



24 de outubro de 2016
Marli Gonçalves, jornalista - Cadeia para quem precisa. E nem toda nudez será castigada.
SP, 2016


NOTA AO PÉ DO TEXTO

É da natureza humana a ambiguidade de sentimentos. Oscilamos entre o bem e o mal. Entre o sadismo e o masoquismo. Estamos muito distantes das sábias palavras do Mestre "amai-vos uns aos outros como Eu vos amei". 
Quase impossível aos simples mortais, alcançarmos um patamar tão elevado. Somos movidos por sentimentos confusos e tropeçamos comumente no lugar comum da vingança, da punição daqueles que zombam da justiça, dos que se sentem acima do bem e do mal, dos que se acham no direito de roubar a vida alheia, dos que nos humilham...
Move-nos o sentimento do 'olho por olho, dente por dente'. pois se assim não fora, não seríamos demasiadamente humanos. E a nossa história é uma história de 'vindita'. A nossa civilização é uma luta do bem contra o mal. Mas...
O texto não indaga o porquê de tais "torcidas organizadas". Pesa nessas torcidas apenas o desejo do mal ao outro? Haverá consciência da satisfação de se desejar o mal? Em ver que a impunidade é uma mancha que se procura apagar da sociedade injusta, que apenas pune os fracos? 
E se tal consciência houver, seria um mal?
A corrupção, como vimos assistindo em nosso país, é uma chaga a céu aberto. Uma doença que parecia (ou será que parece?) incurável.  Esmagou a dignidade política - e entenda-se a 'política' em seu sentido aristotélico - e transformou o país na gruta de Ali Baba. 
O que move a 'vindita' é sobretudo o cinismo, a indignidade, a ambição desmedida de ladrões que esperam viver uma eternidade para usufruir as vultosas quantias saqueadas da nação. 
A impiedade de olhar a miséria que aumentam com seus furtos escandalosos. Cem milhões, duzentos milhões, quinhentos milhões... bilhões!!! E tudo para o usufruto e a ostentação da doença do consumo além, muito além das necessidades humanas. Tudo em nome de um materialismo insano, de psicopatas desmedidamente ambiciosos.
E os mortais, do lado de cá da cerca, os mortais que habitam o térreo e suam pelo pão de cada dia, claro que devem ser tomados pelo desejo do mal. É quase inconsciente, e muito difícil de perdoar. Sabemos que a cada momento, tropeçamos na escada da evolução, embora nos esforcemos para galgar os degraus.
Mas seria injusto apiedar-se de bandidos que, piores que pobres meliantes que assaltam pedestres, desgraçam 200 milhões de culpados eleitores. 
Ah! O texto exemplifica a dureza das prisões com exemplos de presos políticos. É injusto! Concorde-se ou não com as motivações ideológicas que os moveram à ações contra o regime, não se tratava de ladrões. Eram homens que carregavam seus ideais e utopias. (O que fizeram delas depois, aqueles que aí estão, já é outro assunto...).
Tenhamos a consciência de que a nossa espécie é a mais predadora do planeta. Carregamos, ainda a natureza cruel das nossas origens, e lutamos, dia após dia, para conter as pulsões atávicas que nos dominam e nos atrasam na escala da evolução.
Talvez, quem sabe, não seja tão importante e nem tão cruel punir os infames. Diante da eternidade, não sejamos tão orgulhosos das nossas virtudes e pecados.
Como cantava a Rita Lee "tudo vira bosta".

Rita Lee - Tudo Vira Bosta (Letra) - YouTube


https://www.youtube.com/watch?v=yIwkm6syb6E
m.americo

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