Por que o apartamento pequeno, de, basicamente, duas peças, chama-se JK? Teria algo a ver com o presidente Juscelino Kubitschek? Ou o K é de kitchen, quer dizer, cozinha, e o J é alguma outra coisa em inglês?
Isso me intriga agora, quando relembro o JK em que morei, no Passo d'Areia. Era mínimo, mas gostava dele. Usei um roupeiro de três portas para dividir o espaço e criar dois ambientes. No lado para o qual elas se abriam, ficava minha cama, que não era cama, era só o colchão no parquê nu, tendo na frente dele uma cadeira em que se encarapitava a TV. Era uma TV com seletor de canais, algo que você não sabe o que é, se tiver menos de 40 anos.
No lado de lá, estavam o meu Três em Um, que você, jovenzinho, também não deve saber o que é. E meus discos, meus livros e nada mais. Havia ainda a cozinha, aberta para a sala, e o banheiro.
O aluguel era baixo, evidentemente, mas o meu salário também. Assim, às vezes tinha de atrasar o pagamento do condomínio, o que enfurecia a síndica.
Aquela síndica. Ela era meio gorda e usava um vestido floreado. Esperava na porta do edifício para me cobrar. Não sei como adivinhava a hora em que eu ia sair, mas nunca errava. Eu descia as escadas já com medo, esgueirava-me pelos corredores e, quando botava a mão na maçaneta para fugir do prédio, ela saltava do escuro, com o boleto na mão.
Era horrível.
Às vezes, mesmo quando voltava para casa tarde da noite, avistava, a distância, aquele vestido floreado me esperando na calçada. Uma mulher malvada.
Ela ficava repetindo que eu estava devendo, que tinha de pagar, que seria despejado. No dia seguinte, certamente em maligna combinação com a síndica, a imobiliária me mandava cartas ameaçadoras. Os juros do condomínio elevavam a dívida a cada semana, aquilo me deixava em pânico. Eu ia à imobiliária negociar, mas não havia argumento que comovesse os advogados. Foi um tempo duro.
Até hoje tenho pesadelos com o vestido floreado da síndica, por Deus.
Mesmo assim, quando passo pela Volta do Guerino e imediações, sempre me acomete certa nostalgia. Não chega a ser a grande dor das coisas que passaram, talvez nem dor seja, estar lá só me encomprida o olhar e um ou dois suspiros. É que um pouco de mim ficou naquele lugar.
Aí está. Há vários pedaços de Porto Alegre em que estão escritos capítulos da minha história e da sua também, se você for da cidade.
Uma cidade pode contar histórias. Mas, para isso, ela tem de valorizar as esquinas, praças e ruas que serviram de páginas importantes na vida de seus personagens.
Pense em alguns dos personagens de Porto Alegre que mereciam ter suas histórias contadas e ouvidas por outras pessoas. Você conhece a casa de Elis Regina no IAPI? Em que café Getúlio Vargas conspirava com João Neves da Fontoura e Oswaldo Aranha para dar o golpe em 1930? Qual era o restaurante preferido de Erico Verissimo? Qual foi o trajeto feito por Naziazeno Barbosa na Rua da Praia, em busca de dinheiro para pagar leiteiro? E o açougue macabro da Rua do Arvoredo, onde fica mesmo?
Porto Alegre não conta suas histórias. Em tempo de eleição municipal, queria ouvir considerações sobre esse mutismo. Não, não se trata de amenidade. Trata-se da própria alma da cidade.
08 de outubro de 2016
David Coimbra, Zero Hora, RS
Isso me intriga agora, quando relembro o JK em que morei, no Passo d'Areia. Era mínimo, mas gostava dele. Usei um roupeiro de três portas para dividir o espaço e criar dois ambientes. No lado para o qual elas se abriam, ficava minha cama, que não era cama, era só o colchão no parquê nu, tendo na frente dele uma cadeira em que se encarapitava a TV. Era uma TV com seletor de canais, algo que você não sabe o que é, se tiver menos de 40 anos.
No lado de lá, estavam o meu Três em Um, que você, jovenzinho, também não deve saber o que é. E meus discos, meus livros e nada mais. Havia ainda a cozinha, aberta para a sala, e o banheiro.
O aluguel era baixo, evidentemente, mas o meu salário também. Assim, às vezes tinha de atrasar o pagamento do condomínio, o que enfurecia a síndica.
Aquela síndica. Ela era meio gorda e usava um vestido floreado. Esperava na porta do edifício para me cobrar. Não sei como adivinhava a hora em que eu ia sair, mas nunca errava. Eu descia as escadas já com medo, esgueirava-me pelos corredores e, quando botava a mão na maçaneta para fugir do prédio, ela saltava do escuro, com o boleto na mão.
Era horrível.
Às vezes, mesmo quando voltava para casa tarde da noite, avistava, a distância, aquele vestido floreado me esperando na calçada. Uma mulher malvada.
Ela ficava repetindo que eu estava devendo, que tinha de pagar, que seria despejado. No dia seguinte, certamente em maligna combinação com a síndica, a imobiliária me mandava cartas ameaçadoras. Os juros do condomínio elevavam a dívida a cada semana, aquilo me deixava em pânico. Eu ia à imobiliária negociar, mas não havia argumento que comovesse os advogados. Foi um tempo duro.
Até hoje tenho pesadelos com o vestido floreado da síndica, por Deus.
Mesmo assim, quando passo pela Volta do Guerino e imediações, sempre me acomete certa nostalgia. Não chega a ser a grande dor das coisas que passaram, talvez nem dor seja, estar lá só me encomprida o olhar e um ou dois suspiros. É que um pouco de mim ficou naquele lugar.
Aí está. Há vários pedaços de Porto Alegre em que estão escritos capítulos da minha história e da sua também, se você for da cidade.
Uma cidade pode contar histórias. Mas, para isso, ela tem de valorizar as esquinas, praças e ruas que serviram de páginas importantes na vida de seus personagens.
Pense em alguns dos personagens de Porto Alegre que mereciam ter suas histórias contadas e ouvidas por outras pessoas. Você conhece a casa de Elis Regina no IAPI? Em que café Getúlio Vargas conspirava com João Neves da Fontoura e Oswaldo Aranha para dar o golpe em 1930? Qual era o restaurante preferido de Erico Verissimo? Qual foi o trajeto feito por Naziazeno Barbosa na Rua da Praia, em busca de dinheiro para pagar leiteiro? E o açougue macabro da Rua do Arvoredo, onde fica mesmo?
Porto Alegre não conta suas histórias. Em tempo de eleição municipal, queria ouvir considerações sobre esse mutismo. Não, não se trata de amenidade. Trata-se da própria alma da cidade.
08 de outubro de 2016
David Coimbra, Zero Hora, RS
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