"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

segunda-feira, 4 de julho de 2016

ÍDOLOS TRASH, SCHADENFREUDE E VIDEO CASSETADAS

Sobre as justificativas dissimuladas do pessoalzinho “cool” para escarnecer da desgraça alheia.



Há uma palavra em alemão para designar o prazer obtido com o infortúnio alheio: schadenfreude. Eu não sei falar alemão e só conheço algumas poucas expressões e nomes de comida/cerveja, mas fiz tal citação por conta da regra que torna obrigatório mencionar essa palavra no primeiro parágrafo de todo texto a tratar do tema. Então, ok, tabela cumprida. Sigamos.

Salvo em circunstâncias realmente sérias e cruéis ao extremo, nós humanos geralmente gostamos de ver pessoas sofrendo. Sim, gostamos. É um traço terrível, verdadeiramente deplorável, mas a verdade é que adoramos isso. Talvez seja algo instintivo, ou sejamos mesmo criaturas natural e irremediavelmente desprezíveis.

Mas a verdade é que, sim, a desgraça alheia muitas vezes tem efeito cômico. Não só a de quem odiamos ou a de nossos inimigos, mas até mesmo a de quem não conhecemos e nunca fez nada para nos prejudicar.

Não por acaso, desde crianças somos acostumados a esse tipo de humor. Familiares simulam contusões ou quedas e gargalhamos. O curioso é que não nos “ensinam” a rir disso, nosso riso é espontâneo. Dá para arriscar o palpite de que tenhamos já nascido achando graça desse tipo de coisa.

E isso passa a ser mais e mais estimulado ao longo da vida.

Praticamente toda produção humorística – literária, teatral, cinematográfica etc. – consiste na transformação de azares em comédia. Dos palhaços do circo se estapeando ou jogando tortas uns nas caras dos outros às agruras de um norte-americano na terceira idade que se tornam “gags”, enfim, divertimo-nos com a zica de outrem.

Há décadas, programas de TV exploram isso também quanto aos anônimos. Como os de auditório, com calouros escalados justamente por cantar de maneira ridícula ou ter alguma característica estética flagrantemente sofrível. E há quadros de sucesso em que pessoas desconhecidas se estrepam e elas próprias enviam esses vídeos para deleite dos telespectadores.

Tudo isso para chegar ao ponto central: a rapaziada descoladinha encontrou uma maneira de exercer esse vício sem a culpa de fazer algo errado ou ideologicamente condenável.

Eles acham um absurdo qualquer piada com característica física, não toleram quadros de humor que possam humilhar alguém e falam sempre em favor da dignidade humana quando uma atração televisiva usa desgraceiras para atrair audiência. Rir da desgraça, portanto, é o ápice da falta de engajamento.

Daí, o que fazem? Fingem gostar da qualidade artística de determinada figura, revelando publicamente exacerbada admiração, mas na verdade gostam mesmo de como ela expõe características esquisitas para a diversão alheia. O que atrai, portanto, não é a produção lítero-musical, mas sim a humilhação a que o ídolo trash se submete.

Sim, ele faz tudo deliberadamente e muitas vezes ganha uma boa grana, mas isso não muda o fato de que os “fãs” gostem justamente da bizarrice da coisa, mesmo aqueles que se fingem atentos às agruras das minorias. E o jeito dissimulado de aplaudir esses espetáculos faz com que sejam bem piores do que os entusiastas da videocassetada ou do calouro que abre a boca banguela e canta de forma desafinada.

A pessoa que não disfarça o prazer com a desgraça alheia é bem menos deplorável, pois não é hipócrita consigo nem finge superioridade fazendo algo similar sob justificativa cínica. E certamente é também alguém mais feliz sem tantos conflitos existenciais mocorongos.

Meu conselho: não se culpe por rir do ridículo, porque o ridículo é mesmo algo engraçado. O dos outros para nós e o nosso para os outros. Não problematizem o riso diante de um tombo, apenas riam, mesmo.

E sem culpa.

04 de julho de 2016
Fernando Gouveia é editor e advogado.

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