O afastamento de Dilma do exercício da Presidência da República me fez recordar o ano de 1992, quando eu tinha 46 anos de idade, 21 de advocacia e muito entusiasmo e disposição para enfrentar o Poder Público e levá-lo ao banco dos réus em ações judiciais, para que as leis, a decência, a lisura, a honestidade e o comprometimento com a moralidade fossem observados, respeitados e praticados pelo administrador público. Assim agia por vocação. Ou talvez por missão vinda das alturas e que a inteligência humana é absolutamente incapaz de compreender. A recompensa era o sentimento de paz do dever cumprido.
Ser advogado não é ficar no escritório à espera da clientela. É sair à rua, intervir e agir quando o direito do próximo, mormente da coletividade, está sendo desrespeitado. E o instrumento de que dispunha era a Ação Popular prevista na Lei 4717/65 e recepcionada pelo artigo 5º, item LXXIII da Constituição Federal de 1988:
“Qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência”.
O CASO COLLOR
Quando o plenário da Câmara dos Deputados, em 1992, abriu o processo de impeachment contra Fernando Collor e o presidente foi afastado do exercício da Presidência, como aconteceu hoje com Dilma Rousseff, Collor fez uma série de exigências.
Ele, que residia na “Casa da Dinda” quando estava no exercício do poder, exigiu ir morar com a família no Palácio da Alvorada, que seria transformado numa “sede do novo governo ou trincheira”, conforme declaração sua e publicada no jornal O Globo de 26/09/92. Exigiu o recrutamento de duas camareiras, 15 funcionários, motoristas, jardineiros, cozinheiros, copeiros, mordomos, helicóptero, o avião presidencial e até um “cortador de charutos”.
Quando li a notícia. pulei da cadeira, fui para a máquina de escrever (uma IBM elétrica) e redigi uma Ação Popular para proibir as mordomias que Fernando Collor pretendia. Fiz isso na parte da manhã do dia 30/09/92 e à tarde dei entrada com a ação contra a União na Justiça Federal do Rio, com pedido de liminar para que as mordomias não fossem concedidas.
A ação foi distribuída para a 7a. Vara Federal, processo nº 92.0055732-5, cuja titular era a então juíza (hoje, desembargadora federal) Salete Maria Polita Maccalóz.
OS FUNDAMENTOS
Argumentei na petição que o Palácio da Alvorada é um bem, um próprio nacional, que estava sujeito às disposições do Decreto-Lei 9.760, de 5.9.1946 (até hoje, sexta-feira, 13 de Maio de 2016, referido decreto-lei ainda se encontra vigente). Que tal decreto, ao dispor sobre os bens imóveis da União, prevê no artigo 92 que a sua utilização para residência de funcionários somente é admissível se o servidor esteja no exercício do cargo e que o interesse do serviço assim exija. E fiz consignar na petição, que hoje, perto de 23 anos depois, reli:
“Não se vislumbra o menor interesse do serviço para que Collor de Mello tenha casa, comida, roupa lavada, transporte, energia elétrica, helicópteros, avião, enfim, todas as regalias de uma função que deixou de exercer”.
Não foi uma petição longa. Seis páginas foram suficientes. Afinal, o bom Direito não estava do lado do presidente afastado.
A formulação da concessão da liminar foi para que a União não atendesse às pretensões de Fernando Collor. Ou, se ao tempo do seu deferimento, Collor já tivesse sido atendido no tocante às regalias, que a União dele as retirasse. E quanto ao Palácio da Alvorada, se nele Collor já estivesse residindo, que fosse expedido Mandado de Evacuação, para que o presidente afastado se retirasse de lá.
A DECISÃO JUDICIAL
No dia 5 de outubro a juíza Salete Maccalóz acolheu a Ação Popular. Numa decisão manuscrita de 4 laudas, a juíza, após relatar o pedido e fundamentar sua decisão, ordenou à União que não atendesse às pretensões de Fernando Collor “si et in quantum” (expressão do Direito Romano que quer dizer “se e enquanto) o Congresso Nacional não examinasse e decidisse sobre os pedidos de Collor.
Eis a 3º e última parte da liminar deferida pela juíza Salete Maccalóz da 7a. Vara Federal do RJ: “Defiro a liminar requerida (si et in quantum) o Congresso Nacional examinar e votar os pedidos de uso de bens públicos pelo presidente afastado”.
Em seguida, a secretaria da 7a. Vara Federal expediu fax e ofício para o Dr. Noronha, chefe de gabinete do Dr. José de Castro, Consultor-geral da República e também para o presidente Itamar Franco, comunicando a decisão. Além disso a União foi citada na pessoa da Dra. Márcia Neves Pinto, procuradora da República, bem como o Ministério Público Federal, na pessoa do Dr. André Fontes. Ainda, no bojo da liminar que deferiu, a juíza Salete Maccalóz fez uma justa indagação: “Quem arcará com as despesas se ele for afastado definitivamente?”.
RENAN NÃO É O CONGRESSO
Repare o leitor que o presidente Renan Calheiros não poderia agir como agiu. Sozinho, sem consulta e votação dos demais senadores, resolveu conceder a Dilma os benefícios e regalias — talvez mais, talvez menos — que a Justiça negou a Collor em 1992. Tudo que Dilma pediu Renan deu. E deu sozinho. Não se viu votação do plenário do Senado a respeito das mordomias concedidas a Dilma Rousseff.
Fala-se em consenso. Consenso? Quantos e quais foram os senadores que consentiram? E consentiram quando? E baseados em que lei, uma vez que a lei somente autoriza a utilização de imóvel da União para funcionário que esteja no exercício do cargo?! Renan Calheiros, que tantas vezes exaltou sua neutralidade e imparcialidade na condução do impeachment no Senado, não poderia ter decidido sozinho, monocraticamente. No caso Collor, a juíza federal deferiu a liminar até o Congresso examinar e votar os pedidos de uso de bens públicos pelo presidente afastado. São dois verbos: examinar e votar. E um só objeto direto, destinatário da ordem judicial: o Congresso Nacional.
Renan, mesmo sendo o presidente do Senado, ele sozinho não é o Congresso. Também sozinho e sem o indispensável concurso de seus pares, Renan não pode votar a respeito dos direitos que tem um presidente da República afastado em razão do processo de Impeachment, em razão da inexistência de lei específica a respeito. Relembrar é viver. Só viver. Porque hoje nada posso fazer, como fiz em 1992. Não se está aqui menosprezado a presidente afastada. Nada disso. O que se defende é a legalidade, como a defendi em 1992, no auge e na pujança do nobre exercício da advocacia.
12 de maio de 2016
Jorge Béja
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