Algum dia, nas próximas três semanas, a cela será aberta e 239 caminhará, como um homem livre, até o avião que o conduzirá do Caribe à Grã-Bretanha. Lá, reencontrará sua família e ouvirá um filho chamá-lo de "pai", algo que o atemoriza, pois há 13 anos só é identificado pelo seu número de prisioneiro em Guantánamo. A história de 239 é uma prova do fracasso da "guerra ao terror" de George W. Bush e de um fiasco moral de Barack Obama, além de uma impugnação do argumento clássico de defesa da tortura.
Shaker Aamer nasceu na Arábia Saudita, mudou-se para os EUA, trabalhou como tradutor junto às forças americanas na Guerra do Golfo e estabeleceu-se em Londres, onde casou-se com uma britânica muçulmana. Eles tiveram quatro filhos, o último dos quais Aamer nunca viu, pois o menino nasceu quando ele já era 239. Meses antes do 11 de setembro de 2001, transferiu-se com a família para o Afeganistão –em busca, segundo alegou, de "uma atmosfera islâmica". Na sequência do atentado, foi capturado por uma guerrilha afegã que combatia o Taleban e entregue aos americanos.
Bush criou um tribunal militar para processar extraterritorialmente os "combatentes inimigos ilegais", enquanto seu governo autorizava o uso da tortura nos interrogatórios. As violações de direitos humanos produziram resultado nulo. Dos 779 prisioneiros que passaram por Guantánamo, apenas sete foram condenados pela corte de exceção. Aamer, como tantos, não foi nem processado. Obama declarou que "Guantánamo fere nossa reputação internacional" e "provavelmente criou mais terroristas no mundo do que aqueles que manteve detidos". Porém, diante das resistências do Congresso, recuou em sua decisão de fechar o complexo prisional.
As acusações contra Aamer foram anuladas em 2007 e ofereceram-lhe a deportação para a Arábia Saudita, que ele rejeitou temendo o encarceramento pelo crime de casar com uma estrangeira ou, pior, um programa de "desradicalização" num calabouço do reino. Mesmo diante de uma solicitação oficial do governo britânico, Washington recusou-se, por mais de 3.000 dias, a retorná-lo ao país onde tem residência legal. Na versão americana, Aamer representaria um perigo público potencial. De acordo com seu advogado, a extensão do encarceramento destinava-se a evitar a divulgação das torturas que experimentou e testemunhou.
No dossiê sobre o prisioneiro 239, consta que ele participava do alto círculo da Al Qaeda e operou como tradutor para Osama bin Laden. Sob tortura, 239 confessou tudo o que lhe perguntaram. Mas, depois, negou ter combatido ao lado dos jihadistas e atribuiu a narrativa do dossiê às lendas contadas pelos guerrilheiros afegãos que o entregaram em troca de recompensa monetária. O tribunal militar desistiu de processá-lo pois nada tinha, exceto a confissão contaminada.
A justificação "moral" da tortura assenta no dilema da bomba-relógio. Se é capturado um terrorista que guarda informação sobre um atentado iminente, não seria a tortura uma ferramenta aceitável, até compulsória, para salvar as vidas de incontáveis inocentes? O problema insolúvel do argumento é que ele supõe um cenário ideal, no qual sabe-se de antemão que o prisioneiro é um terrorista e, ainda, que dispõe de um segredo específico. A história de Aamer, entre tantas outras, revela que tal cenário é uma construção puramente teórica, destinada a flexibilizar um interdito moral. Na neblina da vida real, seria preciso torturar pencas de inocentes e terroristas ignorantes até chegar, casualmente, ao detentor da informação crucial.
Nunca saberemos o que Aamer foi fazer no Afeganistão em 2001. Não sabemos o que ele fará depois de beijar o filho que não conhece. Se desaparecer no mundo cotidiano, provará que a tortura não funciona. Se explodir-se, matando inocentes em nome de um califado mítico, provará exatamente a mesma coisa.
11 de outubro de 2015
Demétrio Magnoli
Shaker Aamer nasceu na Arábia Saudita, mudou-se para os EUA, trabalhou como tradutor junto às forças americanas na Guerra do Golfo e estabeleceu-se em Londres, onde casou-se com uma britânica muçulmana. Eles tiveram quatro filhos, o último dos quais Aamer nunca viu, pois o menino nasceu quando ele já era 239. Meses antes do 11 de setembro de 2001, transferiu-se com a família para o Afeganistão –em busca, segundo alegou, de "uma atmosfera islâmica". Na sequência do atentado, foi capturado por uma guerrilha afegã que combatia o Taleban e entregue aos americanos.
Bush criou um tribunal militar para processar extraterritorialmente os "combatentes inimigos ilegais", enquanto seu governo autorizava o uso da tortura nos interrogatórios. As violações de direitos humanos produziram resultado nulo. Dos 779 prisioneiros que passaram por Guantánamo, apenas sete foram condenados pela corte de exceção. Aamer, como tantos, não foi nem processado. Obama declarou que "Guantánamo fere nossa reputação internacional" e "provavelmente criou mais terroristas no mundo do que aqueles que manteve detidos". Porém, diante das resistências do Congresso, recuou em sua decisão de fechar o complexo prisional.
As acusações contra Aamer foram anuladas em 2007 e ofereceram-lhe a deportação para a Arábia Saudita, que ele rejeitou temendo o encarceramento pelo crime de casar com uma estrangeira ou, pior, um programa de "desradicalização" num calabouço do reino. Mesmo diante de uma solicitação oficial do governo britânico, Washington recusou-se, por mais de 3.000 dias, a retorná-lo ao país onde tem residência legal. Na versão americana, Aamer representaria um perigo público potencial. De acordo com seu advogado, a extensão do encarceramento destinava-se a evitar a divulgação das torturas que experimentou e testemunhou.
No dossiê sobre o prisioneiro 239, consta que ele participava do alto círculo da Al Qaeda e operou como tradutor para Osama bin Laden. Sob tortura, 239 confessou tudo o que lhe perguntaram. Mas, depois, negou ter combatido ao lado dos jihadistas e atribuiu a narrativa do dossiê às lendas contadas pelos guerrilheiros afegãos que o entregaram em troca de recompensa monetária. O tribunal militar desistiu de processá-lo pois nada tinha, exceto a confissão contaminada.
A justificação "moral" da tortura assenta no dilema da bomba-relógio. Se é capturado um terrorista que guarda informação sobre um atentado iminente, não seria a tortura uma ferramenta aceitável, até compulsória, para salvar as vidas de incontáveis inocentes? O problema insolúvel do argumento é que ele supõe um cenário ideal, no qual sabe-se de antemão que o prisioneiro é um terrorista e, ainda, que dispõe de um segredo específico. A história de Aamer, entre tantas outras, revela que tal cenário é uma construção puramente teórica, destinada a flexibilizar um interdito moral. Na neblina da vida real, seria preciso torturar pencas de inocentes e terroristas ignorantes até chegar, casualmente, ao detentor da informação crucial.
Nunca saberemos o que Aamer foi fazer no Afeganistão em 2001. Não sabemos o que ele fará depois de beijar o filho que não conhece. Se desaparecer no mundo cotidiano, provará que a tortura não funciona. Se explodir-se, matando inocentes em nome de um califado mítico, provará exatamente a mesma coisa.
11 de outubro de 2015
Demétrio Magnoli
Nenhum comentário:
Postar um comentário