"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

50 RISOS PARA GREY

'Cinquenta Tons de Cinza' vale a pena. Mas somente se você, leitor, for a uma sala com adolescentes

Saio de casa para assistir a "Cinquenta Tons de Cinza", fenômeno na Inglaterra e, claro, no globo inteiro. E então imagino: uma sala lotada com centenas de senhoras de meia-idade, dispostas a conhecer o amado Grey que despertou nelas todos os sonhos esquecidos, reprimidos, adormecidos.

Primeiro choque: sábado à tarde e a sala está quase vazia. Segundo choque: o público presente é composto de adolescentes que vieram em grupo para provar a natureza transgressiva da história. Terceiro choque: eu sou provavelmente o espectador mais velho da sala.

A situação exige medidas drásticas. Sento-me junto a duas amigas, tiro o bloco de notas do bolso e depois, sorrindo, ofereço uma desculpa: "Trabalho". Elas sorriem de volta --e murmuram: "Pois, pois". Afundo na cadeira.

O filme vale a pena. Mas somente se você, leitor, for a uma sala com adolescentes. Eles são o coro perfeito para o que sucede na tela: por cada cena de sexo, por cada gemido, por cada açoite --e a gargalhada é geral.

Entendo. Essa é a geração que, na internet, encontra pornografia "hardcore" instantânea e grátis. As cenas "transgressivas" de "Cinquenta Tons de Cinza" são, para eles, brincadeira de crianças. Literalmente.

Uma das amigas, aliás, comentou com a outra: "Parece que estão brincando de médicos e pacientes". Anotei o comentário. O sadomasoquismo do filme é tão perverso que também eu descobri ter começado a praticá-lo ainda na infância. Quando a professora da escola primária usava a régua para corrigir os meus erros de matemática.

Mas de que trata "Cinquenta Tons de Cinza"? Não li o livro. Comprei-o. Dez páginas depois, reparei que passara as últimas cinco com pensamentos intrusivos ("cortar as unhas", "comprar leite", "marcar almoço com"¦"). Desisti.

De modo que: avancei para o filme no mesmo estado da protagonista Anastasia. Em estado virgem.

Esse é o primeiro momento surreal do filme: quando sabemos que Anastasia permanece ignorante em matéria de flores e abelhas. (O segundo momento é quando ela confessa uma paixão literária por Thomas Hardy.)

A inocência dura pouco: depois de conhecer Grey, o milionário propõe-lhe um contrato para que ela seja o seu brinquedo sexual. Não li o contrato, mas passei alguns minutos a fantasiar o que aconteceria se o dito cujo fosse parar no tribunal por não cumprir uma das partes.

Imaginei discussões legais ("segundo o artigo 2º da cláusula 5ª a sra. Anastasia comprometia-se a receber seis chibatadas, e não apenas quatro"¦"), tudo sob o olhar reprovador do juiz. Mas divago.

No fim, Anastasia está cansada das tareias porque ama Grey. E Grey, incapaz de amar, prefere continuar com as tareias. Um clássico: expectativas divergentes sempre foram um veneno nas relações.

De regresso a casa, consulto bibliografia secundária para compreender o apelo que "Cinquenta Tons de Cinza" teve na imaginação feminina. E descubro, em artigos que parecem cópias uns dos outros, que a história virou fenômeno porque incontáveis mulheres suspiravam por homens como Grey: alguém capaz de usar o cinto para muito mais do que simplesmente segurar as calças.

No fundo, a história seria uma denúncia dos machos "flácidos" (digamos assim) que a cultura feminista promoveu. "Dureza" e "firmeza", eis os quesitos básicos para as mulheres do século 21.

Nada a dizer, tudo a respeitar. Mas, se um pouco de violência é aquilo que falta em muitos lares, a única coisa que se lamenta é a falta de comunicação entre os casais. Se o livro contribuir para mais abertura e mais equimoses, substituindo pontos de ruptura por pontos de sutura, a autora E.L. James já terá dado seu contributo para o amor pós-moderno.

Infelizmente, o filme talvez não esteja à altura do livro. Porque olhando para a figura de Grey --para o seu patético embotamento afetivo-- é duvidoso acreditar que aquilo é príncipe que se apresente para qualquer donzela arfante.

Pelo contrário: as suas fragilidades são tão absolutamente efeminadas que nunca sabemos se ele vai entrar em cena de chicote --ou de fraldas.

Fosse eu o autor da história e teria salvado a relação entre Anastasia e Grey. Bastaria que a primeira conquistasse o coração do segundo oferecendo-lhe o conforto de uma chupeta -- mas não é a chupeta que você está pensando.

18 de fevereiro de 2015
João Pereira Coutinho, Folha de SP

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