Sem dramas e sem sustos, a transição no país de Mujica é suave como as velhas canções de amor. Com 65% de aprovação, o presidente boa onda, o velho tupamaro que fez do Uruguai o país da moda, inicia a sua cerimônia de adeus.
Tabaré Vazquez, o político cerebral e comedido, que há uma década encerrou o domínio de 174 anos dos partidos Colorado e Nacional, é a barbada deste domingão eleitoral: deverá ser eleito hoje com estrondosa maioria, confirmando as pesquisas que lhe dão dez a 15 pontos à frente do jovem com as propostas mais velhas da temporada, Luis Lacalle Pou. Candidato de centro-direita pelo Partido Nacional, ele só marcou a campanha por seu jingle. um rap tipo chiclete de ouvido.
Mudar para quê? A pergunta de Tabaré, aparentemente, foi a mesma feita pela maioria dos uruguaios ao indicarem que darão à Frente Ampla o terceiro mandato presidencial consecutivo, além da já conquistada maioria na Câmara e Senado.
Os motivos são os mesmos da transição de Lula para o primeiro mandato de Dilma: como no Brasil daquela época, o Uruguai vive um momento de autoestima alta, com o sentimento de estar no radar do mundo e a percepção de que a vida melhorou.
A economia cresceu 4,4% ano passado, dois pontos acima da média regional, a inflação em 8,1% é alta, mas infinitamente menor do que na louca Argentina, as políticas sociais reduziram a extrema pobreza para 2% e o número de pobres para 10%.
ESTILOS DIFERENTES
Pacífico demais para ser verdade? “Atenção às tensões entre Tabaré e Mujica. Será uma tensão reservada, dificilmente será pública”, espeta Claudio Paolillo, diretor da “Búsqueda”, a revista política semanal mais importante do Uruguai.
Mesmo partido, estilos muito diferentes, os dois líderes da Frente Ampla ainda não se encontraram depois da vitória de Tabaré no primeiro turno, mas uma equipe de transição já está trabalhando e o ministro da Economia será o mesmo de antes — o confiável Danilo Astori.
Mujica, dizem os próximos, está feliz da vida de deixar a Presidência, saboreando com antecipação a liberdade de voltar a ser um militante social sem os freios impostos pelo cargo. Planejara tirar um ano de semiaposentadoria, mas já desistiu, empurrado à ação política pela eleição para o Senado, ao receber um terço de todos os votos dados à Frente Ampla no 25 de outubro. “Ele é sincero, a Presidência lhe importa muito pouco, é mais um militante”, diz um observador privilegiado desses tempos em que o presidente ignorava os rituais do poder e recebia as visitas oficiais na sua modesta casa de teto de zinco, mobiliada com cadeiras bambas.
NA CENA INTERNACIONAL
Nunca antes dessa Presidência pouco convencional, o Uruguai esteve tão presente na cena internacional, atraindo a atenção pelas leis sociais — a legalização do aborto, do casamento gay e da maconha — e pelo discurso humanista-libertário de Mujica. Tabaré é um político mais tradicional, de esquerda e católico, contra portanto a interrupção da gravidez e a união homossexual. Mas não vai mudar as leis, apenas deve botar em ritmo mais lento a regulamentação da venda da maconha.
No primeiro governo, fez campanha feroz contra o tabaco, motivo a mais para não gostar do debate sobre maconha. Também terá de mediar as pressões do Congresso para aprofundar as políticas de esquerda e neste embate político terá Mujica como um interlocutor importante.
“Tabaré é orgulhoso, ele dirige tudo em seu governo. Mujica não deve ter participação formal”, diz Paolillo.
O governo será de continuidade, mas com novos matizes políticos. Com o Brasil, por exemplo, as relações correrão fáceis. A primeira visita do presidente eleito deve ser à Brasília, talvez ainda antes da posse de Dilma.
Tabaré, um social-democrata à la europeia, admirador de Felipe González e François Mitterrand, deve se entender bem com a presidente brasileira — os dois fazem parte do mesmo universo político afetivo. Com os outros latino-americanos, as relações continuarão fluindo com facilidade, mas serão mais formais, voltarão a seguir os canais clássicos da diplomacia.
COMO BACHELET
“Ele não será tratado como um líder pelos bolivarianos, como é o caso de Mujica. Será o presidente de um país aliado, terá o respeito que tem Bachelet (a presidente do Chile)”, comenta um especialista.
As lembranças deixadas pelo primeiro governo Tabaré são boas. Impulsionada pelo boom das commodities, a economia crescia, e a vida corria mansa, levando o presidente a deixar o cargo com 60% de aprovação.
Agora vai ser mais difícil, o pequeno país depende do desempenho da economia brasileira e argentina, nenhuma das duas com boas perspectivas. No front interno, concentrará energias para melhorar a educação e combater a violência que cresce mas é ínfima se comparada com a dos vizinhos.
Na suave transição uruguaia, a política continua a mesma, mas cada um deixa sua marca pessoal. Mujica, o revolucionário que queria mudar o mundo, aprendeu que o poder é esquivo e fragmentado, mas manteve viva a capacidade de ousar. Agora a vez é do cartesiano Tabaré fazer diferença ao seu jeito.
02 de dezembro de 2014
Helena Celestino
O Globo
Tabaré Vazquez, o político cerebral e comedido, que há uma década encerrou o domínio de 174 anos dos partidos Colorado e Nacional, é a barbada deste domingão eleitoral: deverá ser eleito hoje com estrondosa maioria, confirmando as pesquisas que lhe dão dez a 15 pontos à frente do jovem com as propostas mais velhas da temporada, Luis Lacalle Pou. Candidato de centro-direita pelo Partido Nacional, ele só marcou a campanha por seu jingle. um rap tipo chiclete de ouvido.
Mudar para quê? A pergunta de Tabaré, aparentemente, foi a mesma feita pela maioria dos uruguaios ao indicarem que darão à Frente Ampla o terceiro mandato presidencial consecutivo, além da já conquistada maioria na Câmara e Senado.
Os motivos são os mesmos da transição de Lula para o primeiro mandato de Dilma: como no Brasil daquela época, o Uruguai vive um momento de autoestima alta, com o sentimento de estar no radar do mundo e a percepção de que a vida melhorou.
A economia cresceu 4,4% ano passado, dois pontos acima da média regional, a inflação em 8,1% é alta, mas infinitamente menor do que na louca Argentina, as políticas sociais reduziram a extrema pobreza para 2% e o número de pobres para 10%.
ESTILOS DIFERENTES
Pacífico demais para ser verdade? “Atenção às tensões entre Tabaré e Mujica. Será uma tensão reservada, dificilmente será pública”, espeta Claudio Paolillo, diretor da “Búsqueda”, a revista política semanal mais importante do Uruguai.
Mesmo partido, estilos muito diferentes, os dois líderes da Frente Ampla ainda não se encontraram depois da vitória de Tabaré no primeiro turno, mas uma equipe de transição já está trabalhando e o ministro da Economia será o mesmo de antes — o confiável Danilo Astori.
Mujica, dizem os próximos, está feliz da vida de deixar a Presidência, saboreando com antecipação a liberdade de voltar a ser um militante social sem os freios impostos pelo cargo. Planejara tirar um ano de semiaposentadoria, mas já desistiu, empurrado à ação política pela eleição para o Senado, ao receber um terço de todos os votos dados à Frente Ampla no 25 de outubro. “Ele é sincero, a Presidência lhe importa muito pouco, é mais um militante”, diz um observador privilegiado desses tempos em que o presidente ignorava os rituais do poder e recebia as visitas oficiais na sua modesta casa de teto de zinco, mobiliada com cadeiras bambas.
NA CENA INTERNACIONAL
Nunca antes dessa Presidência pouco convencional, o Uruguai esteve tão presente na cena internacional, atraindo a atenção pelas leis sociais — a legalização do aborto, do casamento gay e da maconha — e pelo discurso humanista-libertário de Mujica. Tabaré é um político mais tradicional, de esquerda e católico, contra portanto a interrupção da gravidez e a união homossexual. Mas não vai mudar as leis, apenas deve botar em ritmo mais lento a regulamentação da venda da maconha.
No primeiro governo, fez campanha feroz contra o tabaco, motivo a mais para não gostar do debate sobre maconha. Também terá de mediar as pressões do Congresso para aprofundar as políticas de esquerda e neste embate político terá Mujica como um interlocutor importante.
“Tabaré é orgulhoso, ele dirige tudo em seu governo. Mujica não deve ter participação formal”, diz Paolillo.
O governo será de continuidade, mas com novos matizes políticos. Com o Brasil, por exemplo, as relações correrão fáceis. A primeira visita do presidente eleito deve ser à Brasília, talvez ainda antes da posse de Dilma.
Tabaré, um social-democrata à la europeia, admirador de Felipe González e François Mitterrand, deve se entender bem com a presidente brasileira — os dois fazem parte do mesmo universo político afetivo. Com os outros latino-americanos, as relações continuarão fluindo com facilidade, mas serão mais formais, voltarão a seguir os canais clássicos da diplomacia.
COMO BACHELET
“Ele não será tratado como um líder pelos bolivarianos, como é o caso de Mujica. Será o presidente de um país aliado, terá o respeito que tem Bachelet (a presidente do Chile)”, comenta um especialista.
As lembranças deixadas pelo primeiro governo Tabaré são boas. Impulsionada pelo boom das commodities, a economia crescia, e a vida corria mansa, levando o presidente a deixar o cargo com 60% de aprovação.
Agora vai ser mais difícil, o pequeno país depende do desempenho da economia brasileira e argentina, nenhuma das duas com boas perspectivas. No front interno, concentrará energias para melhorar a educação e combater a violência que cresce mas é ínfima se comparada com a dos vizinhos.
Na suave transição uruguaia, a política continua a mesma, mas cada um deixa sua marca pessoal. Mujica, o revolucionário que queria mudar o mundo, aprendeu que o poder é esquivo e fragmentado, mas manteve viva a capacidade de ousar. Agora a vez é do cartesiano Tabaré fazer diferença ao seu jeito.
02 de dezembro de 2014
Helena Celestino
O Globo
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