Reveja a antológica “reportagem cinematográfica” de Glauber Rocha: “Maranhão 66 – a Posse do Governador José Sarney”. Também antológica captação de som de Eduardo Escorel, em um filme do velho Barretão...
Glauber Rocha morreu exatamente no dia em que escrevo este artigo: 22 de agosto de 1981. A essa hora eu estava na casa de saúde ali na Rua Bambina com amigos, junto à sua cama, como em volta de um barco que ia partir. Glauber estava intubado, agonizante, de olhos fechados.
De repente, ele se ergueu. Quase sentou, abriu os olhos e olhou em volta. Achamos que era um milagre. Barretão segurou sua mão e falou animado: “Glauber, estamos aqui, pode acordar!”. Aí, ele deitou de novo e morreu.
O médico explicou que aquilo era uma espécie de falsa “visita da saúde”, uma complicação respiratória que provocava uma súbita aparência de ressurreição. E Glauber partiu assim, como quem toma “um trem em direção às estrelas,” como escreveu Artaud num texto genial sobre Van Gogh.
Muita gente fala: “Porra, vocês do Cinema Novo ficam só falando em Glauber, Glauber! Afinal de contas, qual é a importância desse cara? Vocês estão exagerando”. Não. A importância de Glauber não foi apenas no cinema, com quatro obras-primas: “Deus e o diabo na terra do sol”, “Terra em transe” e o “Dragão da maldade contra o santo guerreiro”, além do curta-metragem sobre o enterro de Di Cavalcanti, que ganhou a Palma de Ouro de Cannes.
Parece mentira, mas Buñuel falou para mim, junto de Fritz Lang em Veneza, 1967, quando passou o “Belle de Jour”. Estávamos na mesa eu, Glauber e os dois gênios, tomando aquavit, sei lá o quê. Glauber se levantou para pedir uma “birra analcólica”, e Buñuel me disse: “‘Deus e o diabo’ é belo e importante na história do cinema”. Fritz Lang concordou.
Aí, ele fez “Terra em transe”, e a esquerda odiou. Adiante, eu conto sobre esse filme. Depois, quando fez o “Dragão da maldade,” ganhou a Palma de Ouro de melhor direção, e o Visconti deu uma festa para ele em Positano. Glauber estava com tudo em cima e foi convidado para filmar nos EUA, mas inventou um jeito de escrachar os produtores americanos, a quem ele jamais se submeteria.
Voltou para a Europa e fez dois filmes, “Cabeças cortadas” e “O leão de sete cabeças”. Aí, a crítica europeia, que o idealizava, caiu de pau em cima dele: “Ahh... o Glauber já era, seus últimos filmes não têm lógica etc...”.
Nunca tinha visto Glauber sofrer tanto. Ele engoliu o choro, mas a partir daí foi piorando da cabeça.
Glauber foi perdendo contato com a realidade, ou melhor, intuiu que talvez não houvesse mais lugar para seus sonhos intergaláticos de filmar a verdade do mundo. Seu narcisismo “do bem” não aguentou. Hoje, Glauber estaria louco de vez, loucura que já se manifestava em “A idade da Terra”, que é um filme de um homem doente.
Alguns classificam Glauber como um “maluco beleza”, dadas as ousadias e contradições que ele assumia em sua arte/vida, que para ele eram a mesma coisa. Eu dei uma entrevista para um documentário que tendia a tratá-lo como um curioso caso de “piração genial”, quando ele na realidade estava perdendo a saúde física e mental. Eu falei sobre isso, e o cara do documentário tirou minha fala porque ela atrapalhava o sentido que ele queria dar ao filme: Glauber, maluco beleza. Fiquei puto. Tudo bem. Mas eu falava sobre sua importância para além do cinema.
No filme “Terra em transe”, que é uma obra ainda mais esclarecedora para os outros cineastas e para os intelectuais, ele realizou a primeira análise profunda e profética para o pensamento da esquerda oficial. Trata-se da cena em que (para quem viu o filme) uma escolinha de samba dança em volta de um demagogo populista (o genial Modesto de Souza), e o herói revolucionário do filme (Jardel Filho) agarra um sindicalista burro que falava sobre o Brasil, dizendo bobagens, tapa-lhe a boca e olhando para a plateia, diz: “Este é o líder sindical Jerônimo; já imaginaram Jerônimo no poder?”. Não deu outra. Estamos vendo o resultado.
Essa mesma cena, para além da crítica aos dogmas da “luta de classes e motores da História”, abriu um pensamento que deu no tropicalismo, no teatro de Zé Celso (“Rei da vela” e “Roda viva”) e para a obra-prima de Rogerio Sganzerla, “O Bandido da Luz Vermelha”, que é uma derivação apocalíptica e “godardiana” de “Terra em transe” e que inaugurou nosso cinema contemporâneo. Glauber e (justiça feita) Paulo Francis em seu artigo célebre “Tempos de Goulart” iniciaram a revisão das certezas da esquerda “soviética” e introduziram a dúvida em nossa reflexão política.
Glauber teorizou “Estética da fome”, mas nunca utilizou a miséria como lamentação oportunista. Ele viu a dinâmica do atraso do país, mostrou como a miséria e a loucura andam juntas, mostrou que, apesar da sordidez política, havia e há uma estranha mutação promissora que se tece sozinha por baixo da terra brasileira. Nunca perdeu tempo com filmes que tinham o bem de um lado e o mal do outro, filmes para provar que a justiça é injusta.
Glauber sempre pensou em alternativas para a estupidez tradicional de dividir a vida em burguesia e proletariado. Ele falava num general que considerava “progressista”, que era o Euler Bentes Monteiro, e também no Geisel, que falava em “abertura gradual”. Ele tinha esperança ingênua de que algum deles pudesse se “conscientizar” e melhorasse o país, porque o beco sem saída da luta armada e da incompetência ideológica não daria em nada.
Aí, sempre nessa esperança, ele elogiou o superministro general Golbery, que era intelectual e “poderia” entendê-lo.
Por causa disso, inclusive para se vingarem de “Terra em transe,” ele passou a ser o alvo demonizado pelos imbecis e canalhas que viviam às custas do impossível, que se enobreciam na condição de “vítimas de ditadura”, que até hoje é um galardão, um estandarte para vagabundos. Mas isso já passou.
Os mais jovens não lembram nem sabem, mas Glauber foi um dos primeiros nomes de uma nova esquerda no país. Glauber nos ajudou a compor um pensamento moderno. Há uma charada no ar que ele nos deixou.
De repente, ele se ergueu. Quase sentou, abriu os olhos e olhou em volta. Achamos que era um milagre. Barretão segurou sua mão e falou animado: “Glauber, estamos aqui, pode acordar!”. Aí, ele deitou de novo e morreu.
O médico explicou que aquilo era uma espécie de falsa “visita da saúde”, uma complicação respiratória que provocava uma súbita aparência de ressurreição. E Glauber partiu assim, como quem toma “um trem em direção às estrelas,” como escreveu Artaud num texto genial sobre Van Gogh.
Muita gente fala: “Porra, vocês do Cinema Novo ficam só falando em Glauber, Glauber! Afinal de contas, qual é a importância desse cara? Vocês estão exagerando”. Não. A importância de Glauber não foi apenas no cinema, com quatro obras-primas: “Deus e o diabo na terra do sol”, “Terra em transe” e o “Dragão da maldade contra o santo guerreiro”, além do curta-metragem sobre o enterro de Di Cavalcanti, que ganhou a Palma de Ouro de Cannes.
Parece mentira, mas Buñuel falou para mim, junto de Fritz Lang em Veneza, 1967, quando passou o “Belle de Jour”. Estávamos na mesa eu, Glauber e os dois gênios, tomando aquavit, sei lá o quê. Glauber se levantou para pedir uma “birra analcólica”, e Buñuel me disse: “‘Deus e o diabo’ é belo e importante na história do cinema”. Fritz Lang concordou.
Aí, ele fez “Terra em transe”, e a esquerda odiou. Adiante, eu conto sobre esse filme. Depois, quando fez o “Dragão da maldade,” ganhou a Palma de Ouro de melhor direção, e o Visconti deu uma festa para ele em Positano. Glauber estava com tudo em cima e foi convidado para filmar nos EUA, mas inventou um jeito de escrachar os produtores americanos, a quem ele jamais se submeteria.
Voltou para a Europa e fez dois filmes, “Cabeças cortadas” e “O leão de sete cabeças”. Aí, a crítica europeia, que o idealizava, caiu de pau em cima dele: “Ahh... o Glauber já era, seus últimos filmes não têm lógica etc...”.
Nunca tinha visto Glauber sofrer tanto. Ele engoliu o choro, mas a partir daí foi piorando da cabeça.
Glauber foi perdendo contato com a realidade, ou melhor, intuiu que talvez não houvesse mais lugar para seus sonhos intergaláticos de filmar a verdade do mundo. Seu narcisismo “do bem” não aguentou. Hoje, Glauber estaria louco de vez, loucura que já se manifestava em “A idade da Terra”, que é um filme de um homem doente.
Alguns classificam Glauber como um “maluco beleza”, dadas as ousadias e contradições que ele assumia em sua arte/vida, que para ele eram a mesma coisa. Eu dei uma entrevista para um documentário que tendia a tratá-lo como um curioso caso de “piração genial”, quando ele na realidade estava perdendo a saúde física e mental. Eu falei sobre isso, e o cara do documentário tirou minha fala porque ela atrapalhava o sentido que ele queria dar ao filme: Glauber, maluco beleza. Fiquei puto. Tudo bem. Mas eu falava sobre sua importância para além do cinema.
No filme “Terra em transe”, que é uma obra ainda mais esclarecedora para os outros cineastas e para os intelectuais, ele realizou a primeira análise profunda e profética para o pensamento da esquerda oficial. Trata-se da cena em que (para quem viu o filme) uma escolinha de samba dança em volta de um demagogo populista (o genial Modesto de Souza), e o herói revolucionário do filme (Jardel Filho) agarra um sindicalista burro que falava sobre o Brasil, dizendo bobagens, tapa-lhe a boca e olhando para a plateia, diz: “Este é o líder sindical Jerônimo; já imaginaram Jerônimo no poder?”. Não deu outra. Estamos vendo o resultado.
Essa mesma cena, para além da crítica aos dogmas da “luta de classes e motores da História”, abriu um pensamento que deu no tropicalismo, no teatro de Zé Celso (“Rei da vela” e “Roda viva”) e para a obra-prima de Rogerio Sganzerla, “O Bandido da Luz Vermelha”, que é uma derivação apocalíptica e “godardiana” de “Terra em transe” e que inaugurou nosso cinema contemporâneo. Glauber e (justiça feita) Paulo Francis em seu artigo célebre “Tempos de Goulart” iniciaram a revisão das certezas da esquerda “soviética” e introduziram a dúvida em nossa reflexão política.
Glauber teorizou “Estética da fome”, mas nunca utilizou a miséria como lamentação oportunista. Ele viu a dinâmica do atraso do país, mostrou como a miséria e a loucura andam juntas, mostrou que, apesar da sordidez política, havia e há uma estranha mutação promissora que se tece sozinha por baixo da terra brasileira. Nunca perdeu tempo com filmes que tinham o bem de um lado e o mal do outro, filmes para provar que a justiça é injusta.
Glauber sempre pensou em alternativas para a estupidez tradicional de dividir a vida em burguesia e proletariado. Ele falava num general que considerava “progressista”, que era o Euler Bentes Monteiro, e também no Geisel, que falava em “abertura gradual”. Ele tinha esperança ingênua de que algum deles pudesse se “conscientizar” e melhorasse o país, porque o beco sem saída da luta armada e da incompetência ideológica não daria em nada.
Aí, sempre nessa esperança, ele elogiou o superministro general Golbery, que era intelectual e “poderia” entendê-lo.
Por causa disso, inclusive para se vingarem de “Terra em transe,” ele passou a ser o alvo demonizado pelos imbecis e canalhas que viviam às custas do impossível, que se enobreciam na condição de “vítimas de ditadura”, que até hoje é um galardão, um estandarte para vagabundos. Mas isso já passou.
Os mais jovens não lembram nem sabem, mas Glauber foi um dos primeiros nomes de uma nova esquerda no país. Glauber nos ajudou a compor um pensamento moderno. Há uma charada no ar que ele nos deixou.
27 de agosto de 2014Arnaldo Jabor é Cineasta e Jornalista.Originalmente publicado em O Globo e no Estadão em 28 de agosto de 2014.
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