Não se trata do velho marxismo travestido de sei-lá-o-quê como acusam os opinativos de plantão, muitos dos quais nem sequer leram Capital no Século XXI de Thomas Piketty.
O livro que explodiu na imprensa recebeu as mais formidáveis resenhas de gente renomada de vários matizes ideológicos - quando me refiro a gente renomada, falo de economistas vencedores do Nobel - e se tornou um dos maiores sucessos de venda na Amazon.
Uma compilação extraordinária de dados, impostos sobre a riqueza que abrangem mais de três séculos. Compilação que desvelou regularidades empíricas capazes de transformar a maneira como pensamos sobre desigualdade e distribuição de renda.
A taxação sobre o capital sugerida por Piketty no final do livro, o foco enraivecido dos que não prestaram atenção na força dos argumentos contidos nos 75% restantes da obra, não é o principal. Sim, é uma proposta política atraente para certos líderes mundiais, suscita reações inflamadas dos conservadores de sempre.
Mas não é o âmago do debate. A descoberta instigante, o ponto que pode transformar o modo como hoje se pensam as políticas públicas e o ensino de economia é a constatação tão rica, tão simples: quando as economias crescem pouco, os ricos, em particular, os mais abastados entre os mais abastados, são os que se saem bem.
Tem mais: o mundo sempre foi assim, desde o século 18 e ao longo de todo o século 19 com uma breve interrupção durante a Grande Depressão no século 20 e outra mais longa no pós-guerra, no período compreendido entre 1945 e meados dos anos 1970.
A Grande Depressão e as duas guerras mundiais foram épocas de grande destruição de riqueza. Por isso, argumenta Piketty, passamos por um período em que, ao contrário dos séculos e décadas anteriores, a remuneração da riqueza não superou o crescimento econômico e, sim, o contrário.
Ocorre que, hoje, com o aumento brutal do desemprego no mundo, o desalento dos jovens, o achatamento dos salários e a perspectiva de que o crescimento não volte a ser o que foi na primeira década do século 21. Estamos retornando ao padrão histórico em que os ricos ficam mais ricos e a classe média e os mais pobres vão ficando para trás.
É o retorno do velho capitalismo patrimonial que inspirou o naturalismo francês, o retrato dos mineiros destituídos de Émile Zola em seu extraordinário Germinal, o sofrimento do homem de classe média encarnado pelo Lucien Chardon de Balzac em Ilusões Perdidas.
E não é só isso. As sementes da teoria econômica moderna, dos modelos de crescimento que se desenvolveram a partir dos trabalhos de Robert Solow à revolução das expectativas racionais de Robert Lucas, Thomas Sargent, Edmund Phelps, entre outros, nasceram no período do pós-guerra, o auge da ascensão da classe média nos EUA.
Não é à toa que, por tanto tempo, a desigualdade e a distribuição de renda tornaram-se temas secundários no estudo de economia.
Piketty acaba de nos mostrar o equívoco.
O período do pós-guerra foi uma exceção; a regra não é o crescimento econômico superar a remuneração da riqueza e, sim, o contrário.
O fato inquietante que a obra revela é que já estamos vivendo a inversão dessas variáveis: a remuneração da riqueza já voltou a subir mais rapidamente do que o crescimento, sobretudo nos países desenvolvidos.
O resultado tem sido o aumento da desigualdade e o encolhimento da classe média, como é hoje nos EUA.
Como crescimento baixo vem acompanhado de inflação baixa, o corolário disso é que salários e preços achatados perpetuam a dinâmica da desigualdade, que parece ter se reinstalado no mundo.
No Brasil, sabemos que inflação alta como a atual corrói a renda da classe média e dos mais pobres, contribuindo para o aumento da desigualdade.
O que o livro de Piketty sugere é que uma inflação baixa demais tem o mesmo efeito nefasto sobre a disparidade de renda.
Se isso não é digno de nota para alguns pensadores e formadores de opinião, difícil é saber o que mais seria.
03 de maio de 2014
Monica Baumgarten de Bolle O Estado, de S.Paulo
Uma compilação extraordinária de dados, impostos sobre a riqueza que abrangem mais de três séculos. Compilação que desvelou regularidades empíricas capazes de transformar a maneira como pensamos sobre desigualdade e distribuição de renda.
A taxação sobre o capital sugerida por Piketty no final do livro, o foco enraivecido dos que não prestaram atenção na força dos argumentos contidos nos 75% restantes da obra, não é o principal. Sim, é uma proposta política atraente para certos líderes mundiais, suscita reações inflamadas dos conservadores de sempre.
Mas não é o âmago do debate. A descoberta instigante, o ponto que pode transformar o modo como hoje se pensam as políticas públicas e o ensino de economia é a constatação tão rica, tão simples: quando as economias crescem pouco, os ricos, em particular, os mais abastados entre os mais abastados, são os que se saem bem.
Tem mais: o mundo sempre foi assim, desde o século 18 e ao longo de todo o século 19 com uma breve interrupção durante a Grande Depressão no século 20 e outra mais longa no pós-guerra, no período compreendido entre 1945 e meados dos anos 1970.
A Grande Depressão e as duas guerras mundiais foram épocas de grande destruição de riqueza. Por isso, argumenta Piketty, passamos por um período em que, ao contrário dos séculos e décadas anteriores, a remuneração da riqueza não superou o crescimento econômico e, sim, o contrário.
Ocorre que, hoje, com o aumento brutal do desemprego no mundo, o desalento dos jovens, o achatamento dos salários e a perspectiva de que o crescimento não volte a ser o que foi na primeira década do século 21. Estamos retornando ao padrão histórico em que os ricos ficam mais ricos e a classe média e os mais pobres vão ficando para trás.
É o retorno do velho capitalismo patrimonial que inspirou o naturalismo francês, o retrato dos mineiros destituídos de Émile Zola em seu extraordinário Germinal, o sofrimento do homem de classe média encarnado pelo Lucien Chardon de Balzac em Ilusões Perdidas.
E não é só isso. As sementes da teoria econômica moderna, dos modelos de crescimento que se desenvolveram a partir dos trabalhos de Robert Solow à revolução das expectativas racionais de Robert Lucas, Thomas Sargent, Edmund Phelps, entre outros, nasceram no período do pós-guerra, o auge da ascensão da classe média nos EUA.
Não é à toa que, por tanto tempo, a desigualdade e a distribuição de renda tornaram-se temas secundários no estudo de economia.
Piketty acaba de nos mostrar o equívoco.
O período do pós-guerra foi uma exceção; a regra não é o crescimento econômico superar a remuneração da riqueza e, sim, o contrário.
O fato inquietante que a obra revela é que já estamos vivendo a inversão dessas variáveis: a remuneração da riqueza já voltou a subir mais rapidamente do que o crescimento, sobretudo nos países desenvolvidos.
O resultado tem sido o aumento da desigualdade e o encolhimento da classe média, como é hoje nos EUA.
Como crescimento baixo vem acompanhado de inflação baixa, o corolário disso é que salários e preços achatados perpetuam a dinâmica da desigualdade, que parece ter se reinstalado no mundo.
No Brasil, sabemos que inflação alta como a atual corrói a renda da classe média e dos mais pobres, contribuindo para o aumento da desigualdade.
O que o livro de Piketty sugere é que uma inflação baixa demais tem o mesmo efeito nefasto sobre a disparidade de renda.
Se isso não é digno de nota para alguns pensadores e formadores de opinião, difícil é saber o que mais seria.
03 de maio de 2014
Monica Baumgarten de Bolle O Estado, de S.Paulo
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