Em agosto de 2009, Fernando Henrique Cardoso parece ter descoberto a América ao afirmar que um mundo sem drogas é tão difícil quanto um mundo sem sexo. Presente à reunião de criação da Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia, no Rio, FHC defendeu a descriminalização do uso da maconha, a adoção de política de redução de danos e o atendimento a usuário de drogas na rede pública de saúde.
Em fevereiro do mesmo ano, o ex-presidente – que um dia disse que fumou mas não tragou – anunciou ser favorável à descriminalização da maconha para consumo pessoal, defendendo a sua legalização. Depois de velho, quis bancar o avançadinho. Favor não me interpretar mal. Sempre fui favorável à descriminalização do uso das drogas. Quem quer se matar, que se mate. O tabaco, o grande legado indígena ao Ocidente, matou e continha matando, e boa parte da humanidade fumou e continua fumando. Verdade que hoje tabagismo e religião são hábitos mais cultivados em países pobres. Se você não está proibido de chupar câncer, porque estaria proibido de fumar maconha?
Minha restrição à declaração de FHC é de outra ordem. Para começar, seria importante que dissesse isto quando era presidente. Ou, melhor ainda, quando era candidato a presidente. Mas, na época, isto era um risco de perder eleição. Continuando, considero absolutamente oportunistas as atuais defesas da descriminalização das drogas. As drogas estão há muito descriminalizadas, não só no Brasil, como em todo Ocidente.
Quando você viu, leitor, pela última vez, alguém ser preso por consumo de drogas? Talvez há uns trinta anos. De lá para cá, o consumo de toda e qualquer droga não implica punição alguma. As raves são regadas a drogas, não há quem não saiba disto, desde a polícia aos pais dos adolescentes que delas participam. As escolas têm distribuidores em seus portões, e ai do professor que ousar denunciar o uso da droga numa escola. Está arriscando sua vida. Os professores sabem disto e todos permanecem silentes.
Enquanto o ato tipificado como crime não é norma, o problema não existe: continua sendo crime. Quando se torna norma, o problema é mais delicado. O Estado apela então à hipocrisia. Foi o que ocorreu com a prostituição nas últimas décadas. Impotente ante o comércio sexual, os legisladores, na Suécia e em alguns Estados americanos, decidiram que prostituir-se não é crime. Mas pagar os serviços de uma prostituta virou crime. Absolve-se a profissional e pune-se o cliente. De que viverão então as moças?
Ainda há pouco, a França passou a militar no batalhão da hipocrisia. Começou mal o governo de François Hollande. No jornalismo on line, vimos fotos das profissionais parisienses manifestando nas ruas e ostentando cartazes em defesa do ofício:
LIBERTÉ? EGALITÉ? FRATERNITÉ? PUTES ELIMINÉES?
Segundo o Nouvel Observateur, os partidos políticos são todos favoráveis à abolição da prostituição. Em 2011, o Parlamento adotou uma resolução que preconisa a penalização dos clientes. Sob o argumento de que a prostituição é uma violência às mulheres e às prostitutas, mesmo as « tradicionais », que são vulneráveis social e economicamente, a França pretende extirpar a dita mais antiga das profissões. Os socialistas jamais se curam da mania de utopia.
São Paulo é emblemática no que diz respeito a esta hipocrisia. Já comentei o assunto. Enquanto José Serra proíbe o fumo – o mesmo José Serra que defendeu a indústria tabageira em Santa Cruz do Sul, quando era candidato à presidência da República – na Cracolândia centenas de farrapos humanos consomem crack à luz do dia e ao lado de viaturas da polícia, que parecem ter por função protege-los. Hoje, numa rave, um adolescente entorpecido pelo ecstasy ou pela cocaína, pode ser advertido e expulso da festa se ousar acender um cigarro.
Essa gente que hoje defende a liberação das drogas está chovendo no molhado. As drogas há muito estão liberadas. Só não vê quem não quer. Por outro lado, ao afirmar que um mundo sem drogas é tão difícil quanto um mundo sem sexo, FHC está proferindo uma solene bobagem, indigna de sua carreira universitária. Álcool e tabagismo à parte, as demais drogas são decorrências do mundo contemporâneo. Se a cerveja existia desde o antigo Egito, se o vinho data dos tempos bíblicos, de lá para cá os seres humanos viveram muito bem sem maconha, cocaína ou crack.
Sem sexo não há seres humanos. Drogas são optativas. A humanidade não vai extinguir-se se não consumir drogas. Mas se extingue se não houver sexo.
Está provocando celeuma o projeto do deputado Jean Wyllys legalizando a maconha e concedendo anistia aos traficantes, que seriam perdoados de forma retroativa. Segundo os jornais, o projeto de Lei 7270/14 prevê anistia para quem foi condenado por venda da maconha. A medida vale para as condenações anteriores à aprovação da lei. Segundo o texto, o perdão é para “todos que, antes da sanção da lei, cometeram crime previsto na lei antidrogas, sempre que a droga que tiver sido objeto da conduta anteriormente ilícita por elas praticada tenha sido a cannabis, derivados e produtos da cannabis”.
Em entrevista ao Congresso em Foco, Jean disse que a soltura do traficante é uma questão de coerência. “Se a venda for legalizada, não faz sentido a pessoa continuar presa. A gente precisa ser uma sociedade solidária, discutir. Nós temos a quarta maior população carcerária do mundo”, disse ele hoje.
Longe de mim defender o deputado, produto espúrio dos BBBs da vida. Mas não podemos negar-lhe coerência, pelo menos no que diz respeito à legalização da droga. É a chispa da ferradura quando bate na calçada. Quanto à anistia retroativa dos traficantes, o deputado está sendo cúmplice de criminosos julgados e condenados. Algo como jogar as leis e o Judiciário ao lixo. Enquanto tráfico é crime, traficante é criminoso. Daí o projeto de lei. Quando traficar for lícito, deixam de existir crime e criminoso.
Há mais de década venho afirmando que o debate é ocioso. Hipocritamente, lá de vez em quando, para mostrar serviço, a polícia prende algum traficante. De preferência, os megatraficantes, que sempre podem render um bom suborno. É a mesma hipocrisia brandida no tratamento da prostituição no Brasil. Prostituição não é crime, muito menos pagar prostitutas. Mas a organização da prostituição é. Ora, toda profissional precisa de uma infraestrutura para trabalhar com tranqüilidade. Da mesma forma, se o consumo das drogas é permitido – como de fato o é – como terão os consumidores acesso às drogas se não houver um distribuidor? Se maconha ou cocaína não são vendidas em farmácias, é preciso que alguém as forneça.
Todos os dias nos chegam notícias, de todos os cantos do mundo, mostrando que o combate ao tráfico é batalha há muito perdida. Em qualquer esquina de São Paulo, você está distante poucos minutos da droga. Na periferia, maconha se compra até na padaria. O tráfico é lucrativo porque a droga é – ao menos teoricamente – ilegal. Dito isto, jamais usei droga alguma e não saberia distinguir cocaína de farinha nem maconha de alfafa. Não tenho, nos círculos que freqüento ou freqüentei, nenhum amigo que use drogas. Aliás, nenhum de meus amigos nem mesmo fuma. Não que os escolha por estas ou aquelas práticas. São afinidades eletivas. Mais ainda, meu povo geralmente não tem carro nem assiste televisão.
Mas não me parece sensato proibir alguém de suicidar-se. Que mais não seja, a proibição tem se revelado inútil.
21 de março de 2014
janer cristaldo
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