Produção de etanol patina, empresas nacionais são vendidas e
país fica longe da ambição de ser uma “Arábia Saudita verde”
Sertãozinho, no interior de São Paulo, é uma cidade de 112 mil moradores que
vive da cana-de-açúcar. Mas sua aparência não tem nada de grotão miserável
perdido no tempo. Não se veem trabalhadores andrajosos nem famílias sem eira nem
beira vagando pelas ruas, na paisagem humana associada à cultura do açúcar. É
uma cidade de classe média cuja população vive em casas de um andar, fachadas
limpas e pequenos jardins na frente.
Até 2007, ela ocupava o sexto lugar no ranking das melhores cidades brasileiras, medido por pesquisas da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro, que levam em conta emprego, nível de renda, saúde e educação. Sertãozinho era o maior polo nacional de produção de máquinas e equipamentos para o setor do açúcar e do álcool. Na maioria, os trabalhadores de lá são operários especializados.
Dois anos depois, Sertãozinho desabou para o 154º lugar no ranking, e dali não conseguiu sair. Quando o prefeito José Alberto Gimenez, o Zezinho, tomou posse, em janeiro passado, encontrou uma cidade muito diferente da que administrara até 2007. Naquele período de abundância, suas mais de 500 fábricas estavam abarrotadas de encomendas para atender às usinas de todo o Brasil. Faltavam trabalhadores para dar conta da demanda. Os salários subiam. O comércio era pujante e os bares e restaurantes não ficavam vazios como agora.
Gimenez, um homem alto, de pele clara e cabelos acinzentados, bateu com as grandes mãos espalmadas na mesa da sala de reuniões da prefeitura, num prédio cor de uva, construído nos anos 30. Suspirou e empregou a palavra “decadência”. Mas não culpou seu antecessor. “O que derrubou Sertãozinho foi a crise do etanol”, disse. “Nossas fábricas estavam ganhando dinheiro com o grande volume de encomendas para as usinas, tanto novas quanto antigas. Aí o governo começou a se meter nos preços dos combustíveis e bagunçou tudo.”
As dificuldades das usinas chegaram logo à prefeitura. Com quase 2 mil desempregados, Sertãozinho perdeu renda, o que afetou o comércio, a prestação de serviços, a arrecadação pública e os índices de saúde. O efeito dominó da política do governo para os combustíveis se propagou muito além das penas desfiadas por Gimenez: abalou todo o setor de etanol, que movimenta quase 50 bilhões de dólares ao ano e gera cerca de 400 mil empregos permanentes e outros 600 mil temporários. Também contribuiu para o rombo no balanço da Petrobras e fez estragos nas contas externas nacionais, arrastando o saldo comercial para o nível mais baixo dos últimos dez anos.
O quartel-general dos usineiros, a União da Indústria de Cana-de-Açúcar, a Unica, fica no 9º andar de um prédio na avenida Brigadeiro Faria Lima, em São Paulo. A entidade, que congrega todos os donos de usinas, acaba por servir de referência para os outros participantes do setor de etanol, como plantadores de cana e fabricantes de equipamentos para as usinas. E nos últimos cinco anos ela virou um muro de lamentações. Das 430 usinas que existiam no Brasil há cinco anos, 41 fecharam as portas ou foram incorporadas por outras. Para este ano, a previsão da entidade é de que mais dez tenham o mesmo destino.
ircula no Palácio do Planalto um estudo do Itaú BBA que pinta com tintas sombrias a paisagem do futuro do etanol. Das quase 400 usinas atuais, 18% estão quebradas e sem salvação: pesadamente endividadas, elas não têm geração de caixa para se sustentar e pagar a dívida. Outro conjunto de usinas mal e mal pode arcar com as dívidas, mas dificilmente quebrará em curto prazo. O esforço exigido para o pagamento, contudo, impedirá que façam qualquer investimento nos próximos anos.
Por fim, diz o estudo do banco de investimentos, há um grupo de 40% das usinas capitalizado e com caixa para investir. É com essas usinas que o governo terá que contar para suprir a necessidade de etanol no mercado brasileiro nos próximos anos. A dúvida – que não é só do banco, mas do setor e do próprio governo – é se elas terão capacidade para garantir o abastecimento nacional do combustível.
O grande crescimento do etanol se deu após o aparecimento nas ruas brasileiras, em 2003, dos carros flex, que permitiram aos motoristas abastecer com gasolina e álcool, com vantagem para a segunda opção. A segurança de poder usar os dois combustíveis afugentou o temor de se repetir o que ocorrera no começo da década de 90: por falta do combustível, os donos de automóveis movidos exclusivamente a álcool não tinham como abastecê-los. Uma década depois de os carros a álcool terem desaparecido, os flex tomaram conta do mercado.
Com a alta prolongada do preço do petróleo no mundo, o etanol surgiu como uma opção muito mais barata que a gasolina. Boa parte dos consumidores passou a abastecer com o produto, a ponto de, nos anos seguintes, metade dos carros flex rodar com o combustível.
O rápido aumento do consumo provocou uma explosão do setor, impulsionando toda a cadeia do etanol – do plantio da cana até a fabricação de máquinas e equipamentos para atender às novas usinas. Em três anos, 2004 a 2007, surgiram 130 novas usinas só na região Centro-Sul do país. A produção de cana dobrou. O Brasil, que levara 500 anos para produzir 300 milhões de toneladas até 2003, passou a produzir 600 milhões de toneladas de cana em menos de uma década.
Entusiasmado com o crescimento acelerado do setor, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva abandonou a mamona, que considerava a panaceia para resolver futuras dificuldades na geração de energia não poluente, para empunhar a bandeira do etanol. Numa campanha de marketing, passou a chamá-lo de combustível verde-amarelo. O etanol, como repetiu tantas vezes, era a oportunidade de o Brasil livrar-se das oscilações do preço da gasolina, além de virar um grande exportador de um combustível mais limpo. O álcool ganhava espaço nos discursos de Lula quanto mais subia o preço do barril do petróleo. Mas então foi anunciada a descoberta de campos de pré-sal no mar, ao passo que a alta do preço do petróleo começou a pressionar a inflação, preocupando o governo.
A política de Lula em relação aos combustíveis ficou então difícil de entender. Por um lado ela estimulava o aumento da produção do etanol por meio de financiamentos públicos, e por outro passou a segurar artificialmente o preço da gasolina. Com isso, a vantagem que havia em abastecer o carro com etanol começou a diminuir. Como a eficiência energética do álcool é menor, a sua utilização só se torna vantajosa se ele custar, no máximo, 70% do valor da gasolina. E com o preço da gasolina congelado na bomba, o usineiro não podia aumentar o preço do seu produto, sob pena de perder mercado. Sem poder repassar o aumento dos custos aos motoristas, os usineiros passaram a ter prejuízo. A produção caiu e o setor entrou em curto-circuito.
um começo de tarde, Antonio de Pádua Rodrigues, diretor técnico da Unica, um homem grisalho que passou parte da vida no campo, detalhou, desalentado, o início do desmanche do setor. “Houve uma grande euforia em 2007”, disse. “Muitos empresários correram em busca de financiamento para abrir sua usina. Alguns sequer conheciam o negócio, o que era problemático.” Terras para o plantio da cana começaram a ser disputadas, elevando bruscamente o preço do hectare. Não importavam os custos. A corrida pelo etanol coincidiu com os movimentos ambientalistas na Europa e nos Estados Unidos exigindo um combustível mais limpo. E o Brasil despontou como o grande fornecedor de energia limpa e renovável para o mundo.
Um ano depois, o contexto favorável se esvaneceu. A crise financeira de 2008 cortou de súbito as perspectivas de exportação, e se aliou ao congelamento do preço da gasolina internamente. A brusca elevação dos custos de financiamento jogou a dívida das usinas na estratosfera. Endividadas e sofrendo a pressão do achatamento dos preços, muitas delas reduziram ou paralisaram os investimentos. Não só em novas máquinas, mas também na renovação do canavial. Para que a cana tenha maior lucratividade, 20% do canavial tem que ser renovado a cada safra. Caso contrário, a plantação envelhece e a produção cai.
“Ou bem as usinas pagavam as dívidas ou bem investiam em melhorias”, disse Pádua. Para tentar se capitalizar, boa parte delas desovou seus estoques a preços abaixo dos custos de produção. Outras não tiveram alternativa: foram vendidas ou fecharam as portas. Nesse panorama, multinacionais que se preparavam para investir no Brasil tomaram um atalho: em vez de abrir novas usinas, compraram as que estavam em dificuldade. A participação das usinas nacionais no mercado, que era de quase 100%, encolheu para 60%. Quarenta por cento das usinas pertencem hoje a grandes grupos estrangeiros, como o americano Bunge e o francês DuPont. Para coroar as desditas, em 2009 uma seca no interior de São Paulo, o maior centro produtor de cana-de-açúcar, quebrou a safra e derrubou ainda mais a produção de álcool.
engenheiro Adriano Pires é dono do Centro Brasileiro de InfraEstrutura, uma consultoria do Rio especializada em energia. Ele me imprimiu um gráfico com a produção de etanol no Brasil e nos Estados Unidos nos últimos anos. Para ele, o gráfico fornece o quadro mais nítido da oportunidade que o Brasil está perdendo em razão do que ele considera uma “política errática” do governo para o setor.
Desde 2003, os Estados Unidos surgiram como o único possível concorrente de peso do Brasil na produção de etanol. Com a desvantagem de o etanol americano ser feito de milho, com teor energético muito menor do que o da cana, além de menos produtivo e de sujar mais o meio ambiente.
Em 2005, o Brasil produzia 16 bilhões de litros de etanol ao ano, e os Estados Unidos, 14 bilhões. Dois anos depois, a Casa Branca determinou que o etanol integrasse a matriz energética americana, e George W. Bush fixou prazos para que o volume de produção fosse aumentando gradativamente, para substituir em parte os combustíveis fósseis. Embora a estratégia tivesse mais a ver com a intenção do governo americano de reduzir a dependência do petróleo de lugares considerados voláteis, como os países árabes e a Venezuela, do que com preocupações ambientais, ela funcionou. Em 2006, o governo americano criou uma comissão formada pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts, o MIT, e órgãos ligados a energia, ciência e tecnologia e meio ambiente. A CIA, Agência Central de Inteligência, integrou a comissão, que foi encarregada de traçar um programa energético para o país até 2056. Tudo foi detalhado, até os investimentos que deveriam ser feitos para cumprir as metas.
Adriano Pires apontou para o gráfico recém-impresso. “Essa é uma política consistente”, disse. “Em 2007, para atender as metas fixadas, os Estados Unidos já haviam passado à frente do Brasil, produzindo 24 bilhões de litros de etanol contra os 22 bilhões de litros feitos aqui. Em 2008, eles já produziam 35 bilhões de litros, contra 27 bilhões do Brasil.” E completou o raciocínio grifando os números finais com caneta: “Com o equívoco cometido pelo governo e a falta de um projeto para o setor, a produção nacional, em 2011, encolheu para 22 bilhões, enquanto a americana ultrapassou o dobro da nossa, batendo em 52 bilhões de litros.”
Parte desse desempenho americano aconteceu graças aos formidáveis subsídios do governo aos produtores de milho. Afora os subsídios, durante anos os produtores de milho conseguiram barrar a entrada do etanol brasileiro nos Estados Unidos. Confiantes no aumento futuro da produção, e na certeza de que tinham um produto melhor para oferecer, os usineiros brasileiros tentaram derrubar as barreiras tarifárias americanas.
essa época, o engenheiro Marcos Jank, que tinha experiência internacional no agronegócio, ocupava a presidência da Unica. Numa conversa recente, ele contou como se deu a queda de braço com os americanos. “Começamos usando as mesmas armas que eles”, disse. “Abrimos um escritório em Washington e contratamos lobistas para nos ajudarem a mostrar as vantagens do nosso etanol em relação ao etanol americano.” Foram meses de visitas ao Congresso, a grupos de ambientalistas e até a comunidades pró-Israel, interessadas em que os Estados Unidos reduzissem a importação de petróleo de países árabes.
Nessas conversas, o esforço era derrubar mitos em torno do etanol brasileiro. Um deles dizia que o aumento do plantio da cana no Brasil se daria por meio da destruição da floresta amazônica. “Conseguimos provar para os americanos que a nossa cana, além de não invadir a Amazônia, não tinha impacto na produção de alimentos, ao contrário do milho americano”, contou Jank.
Na briga, boa parte dos ambientalistas americanos ficou do lado do Brasil. O etanol brasileiro também ganhou apoio de grandes consumidores de milho, como produtores de gado e frango – que usam o produto como ração – e de fabricantes de alimentos. Eles reclamavam que, por causa da utilização do milho como combustível, a oferta caíra e o preço disparara.
AAgência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos, Apex, juntou-se à ação da Unica. Numa entrevista na sede da entidade, um caixotão de vidro e concreto no Setor Bancário Norte, em Brasília, Mauricio Borges, presidente da agência, contou que um estratagema para chamar a atenção para o etanol brasileiro foi o patrocínio da Fórmula Indy. “Os carros passaram a correr com etanol de cana, com maior desempenho energético”, disse ele.
As corridas também criaram oportunidades de negócio. “Levávamos empresários americanos para acompanhar as corridas e os apresentávamos aos brasileiros de vários setores”, disse Borges. “Acabamos não só estimulando a venda de etanol, mas também fechamos exportações de mais de 1 bilhão de dólares de outros produtos. Diante dos 9 milhões de dólares que gastamos com o patrocínio das corridas, estamos tendo um bom retorno.”
Depois de trinta anos de protecionismo, em 2011 os Estados Unidos derrubaram as barreiras alfandegárias ao etanol brasileiro. Marcos Jank tem uma visão positiva de toda a campanha, mas ela é acompanhada por frustração. “Foi uma vitória espetacular”, avaliou. “Mas, depois de todo o esforço para derrubarmos as barreiras comerciais contra o nosso produto, a produção de etanol no Brasil estava tão deprimida que não tínhamos muito o que exportar”, disse ele, que hoje é consultor na área.
Naquele período, Lula, que havia se transformado no maior garoto propaganda do etanol, mudou drasticamente o seu foco de interesse, abandonando-o em função das jazidas submarinas de petróleo. “Até a descoberta do pré-sal, Lula dizia que, com o etanol, o Brasil seria uma Arábia Saudita verde”, rememorou Adriano Pires. “Mas o presidente rasgou a bandeira do combustível verde e pas-sou a dizer que tínhamos ‘uma Venezuela em petróleo enterrada no fundo do mar’.”
O programa de incentivo à produção do álcool como combustível surgiu nos anos 70, com o Proálcool. O regime militar criou-o para fazer frente à alta do petróleo no mercado internacional. Com as contas externas arruinadas, a ditadura precisava reduzir os custos com a importação do óleo. Foi tão bem-sucedida que, pouco mais de uma década depois, 90% da frota nacional de automóveis era de carro a álcool.
Com a queda no preço do petróleo, o programa foi paulatinamente abandonado junto com os consumidores do carro a álcool. Pouco mais à frente, novamente sob o influxo da conjuntura internacional, o álcool voltou a ser valorizado. E empresários, convenientemente, acreditaram que o programa era para valer.
Acreditaram em discursos, como um de Luciano Coutinho em maio de 2008. No lançamento da política industrial do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, o BNDES, o economista, presidente do banco, disse que o etanol seria apoiado porque envolvia muita inovação para a produção de uma energia limpa. “O etanol nunca foi oficialmente colocado de lado, mas desapareceu do discurso oficial”, disse-me Mansueto Almeida, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o IPEA.
cana-de-açúcar chegou ao Brasil Colônia em 1532. As primeiras mudas foram plantadas na capitania de São Vicente, no litoral paulista, e depois em Pernambuco. Muitas cidades, como Recife, surgiram em torno dos canaviais. Logo a monocultura da cana tornou-se o produto por excelência da economia da América portuguesa. As condições cruéis de escravos no eito e nas senzalas, e a “doce” exploração, sobretudo feminina, nas casas-grandes, marcaram a formação do país e foram tematizadas por Gilberto Freyre.
De modo geral, a produção da cana não propiciou progresso tecnológico, e muito menos a incorporação de escravos à cidadania: exportava-se matéria-prima, não se acumulava capital e evitava-se o florescimento do trabalho assalariado. Afora isso, a plantação intensiva e sem cuidados, principalmente no Nordeste, acabou por arruinar grandes extensões de terra.
O ciclo da cana foi substituído pelo da prata e depois pelo do café, mas o cultivo não desapareceu. No final do século XIX, a cana se expandiu para o interior de São Paulo e Paraná. Os plantadores eram em boa parte imigrantes italianos – como os Ometto e os Biagi, cujos herdeiros são hoje milionários. Com a crise de 1929, foram dispensados das fazendas de café e começaram a plantar suas roças de cana para fazer, basicamente, cachaça. Foi por causa dessa experiência em fazer aguardente que eles adquiriram traquejo na atividade econômica e, muitas décadas depois, produziriam etanol.
No Nordeste foi diferente. A participação da região na cultura da cana é hoje de ínfimos 10%. Os usineiros nordestinos, instalados principalmente em Pernambuco e Alagoas, não produzem etanol, apenas açúcar. Não só pela falta de conhecimento nesse tipo de negócio, mas também porque se acomodaram com a garantia das cotas açucareiras. Desde os anos 60, quando os Estados Unidos romperam com o regime de Fidel Castro, os americanos fizeram uma redistribuição das cotas que eram dadas aos produtores cubanos, que podiam exportar para o país vizinho sem pagamento de tarifas.
Na redistribuição, o Brasil ficou com parte dessas cotas. Como os usineiros do Nordeste tinham mais influência política, foram premiados com todas elas. Uma influência que se explica pela economia cartelizada: dos 102 municípios alagoanos, em 54 existem canaviais, pertencentes a 24 usinas que, por sua vez, são controladas por apenas treze famílias.
sso acabou fazendo com que as usinas do Centro-Sul ficassem sós na produção do etanol. Como energia exige muito mais tecnologia do que a simples transformação de cana em açúcar, o setor fez inúmeros investimentos em inovação. Tanto que o etanol brasileiro é reconhecido como o mais eficiente do mundo. Junto com o ál-cool, todo o setor se expandiu: a plantação, a mecanização de usinas, a distribuição de combustíveis e até os postos de gasolina.
Mas mesmo o setor mais modernizado tem dificuldades em se desenvolver com os seus próprios meios. De acordo com Mansueto Almeida, um dos exemplos mais contundentes da ausência de uma política estratégica para o setor foi a venda de duas empresas do grupo Vo-torantim – a CanaVialis e a Alellyx – no final de 2008, por 290 milhões de dólares, para a americana Monsanto.
A CanaVialis era a maior empresa privada do mundo de desenvolvimento de variedades de cana-de-açúcar. E a Alellyx liderava a pesquisa de biotecnologia para a cana. A Votorantim havia criado as duas companhias como parte de um plano de investimento em novos negócios. Para tanto, recebeu 50 milhões de reais em subsídios a fundo perdido do governo, um financiamento que não precisa ser ressarcido. Parte dos recursos já havia sido desembolsada quando, na crise de 2008, a Votorantim decidiu se desfazer das empresas e focar os seus negócios na sua especialidade. Para isso, tomou mais dinheiro barato do BNDES e comprou a Aracruz Celulose, que havia quebrado.
Na época, o ministro da Ciência e Tecnologia, Sérgio Rezende, de cujo ministério havia saído parte dos recursos, reclamou do comportamento do Grupo. “Como foram vender duas joias como essas?”, disse. O muxoxo foi a única manifestação de contrariedade. Ao comprar as duas empresas, a Monsanto soltou uma nota informando que a recém-adquirida CanaVialis desenvolvia uma nova planta, geneticamente modificada, que abriria um vasto campo para o aumento da produtividade da cana-de-açúcar.
lmeida não considera que a Votorantim tenha feito algo irregular. Ele critica a falta de controle do governo sobre os financiamentos que concede, sem exigir que as empresas se comprometam com um projeto de longo prazo. “Todos os países que apostaram em inovação fazem exigências ao concederem financiamento para empresas privadas”, disse. “Na Coreia, antes de receber subsídios do governo para se desenvolver tecnologicamente, a Samsung teve de firmar uma série de compromissos, começando com a inovação e terminando com a geração de emprego.”
O mais grave, disse Almeida, é que a Monsanto, uma das maiores empresas do mundo em soluções agrícolas e de biotecnologia, principalmente de milho e soja, passou a controlar também a tecnologia da cana. A Monsanto não vende soja nem milho. Vende sementes, adubos e defensivos. A matéria-prima é bem menos rentável que as mercadorias transformadas pela tecnologia. Agora, fará isso com a cana. “A Monsanto pegou a cereja do bolo da cultura da cana, que é a inovação tecnológica”, disse. E voltou suas críticas ao BNDES: “O banco, em vez de apostar em empresas inovadoras, fica emprestando fortunas, a juros subsidiados, a grupos que não desenvolvem nenhuma tecnologia nova, como o frigorífico JBS.”
Enquanto falava, Almeida era acompanhado por Gesmar dos Santos, outro pesquisador do IPEA, que concordava com a cabeça. Quando teve uma brecha, Santos entrou na discussão. “Existe uma importância estratégica em se manter toda a cadeia tecnológica do conhecimento na mão de residentes”, disse. “Existem cerca de 100 países que podem produzir etanol de cana, principalmente na África, na América do Sul e na América Central. Se esse mercado se desenvolver, o Brasil poderia apostar na cadeia como um todo. Desde o plantio, o desenvolvimento de sementes, até o software e a instalação de empresas nesses países.”
No ano passado, a Finep, Financiadora de Estudos e Projetos do Ministério da Ciência e Tecnologia, abriu um edital de financiamento de 1 bilhão de reais, em parte a fundo perdido, para incentivar a pesquisa do etanol. Entre as empresas que acabaram se beneficiando do fundo figuram a Monsanto, a Basf, a Bayer e a Dow Química, todas multinacionais. “Embora não esteja errado que elas participem, acho que não era o caso de tomarem financiamento público, pois são muito grandes e têm capital”, disse Santos.
Nos Estados Unidos, os créditos para pesquisa em inovação na produção de etanol, no valor de 400 milhões de dólares, foram apenas para firmas americanas. Eram financiamentos na faixa de 5 milhões de dólares, para empresas pequenas, que apostavam em inovação. Depois, concordaram em dar financiamento, em faixas inferiores, para empresas instaladas no país, embora não americanas. “Nada impediria que fôssemos lá disputar financiamento para projetos de desenvolvimento de pesquisa do etanol americano”, disse Santos. “O problema é que não temos o nosso modelo, não sabemos onde queremos chegar.”
s nove horas de uma manhã de janeiro, Marco Antônio Martins Almeida, secretário de Petróleo, Gás Natural e Combustíveis Renováveis do Ministério de Minas e Energia, entrou na sala de reuniões contígua a seu gabinete, em Brasília. Marco Antônio, como pediu para ser chamado, discorda das críticas de que o governo abandonou o setor do etanol. “Não é o fato de o preço da gasolina ter se mantido estável que atrapalhou o setor”, disse. “O que precisa ficar claro é que nenhum programa que quer ser sustentável a longo prazo pode depender de preços conjun-turais.” Marco Antônio acha que o problema do setor são os custos de produção. “Se eles querem ser competitivos, têm de baixar os custos, e não ficar pensando só em aumento de preço”, disse ele, referindo-se aos usineiros.
Sua visão do problema difere da dos produtores. Em 2005, com a alta do petróleo, o mundo inteiro entrou num boom de combustíveis renováveis. Algumas diretivas europeias eram de que toda a gasolina teria de ter um percentual de mistura de 10% de etanol anidro, que é um aditivo. Os Estados Unidos e o Japão também definiram maiores percentuais de mistura. Isso, segundo Marco Antônio, levou produtores brasileiros a uma grande euforia: houve uma corrida dos usineiros brasileiros para aumentar a produção de álcool anidro. Ou seja, não foi Brasília quem gerou a expectativa otimista. “O problema é que veio a crise, o preço da gasolina caiu e muitos países europeus adiaram a adoção de medidas para o aumento da mistura de etanol anidro na gasolina”, disse.
Além da perda de mercado externo, e da diminuição do mercado interno provocada pela redução do consumo do etanol no carro flex, os usineiros sofreram um novo baque.
O governo decidiu reduzir de 25% para 20% a mistura de etanol anidro na gasolina, temendo que, em função da crise, as usinas não tivessem produto para entregar. “Adotamos a medida porque não havia etanol anidro e o que tinha era mais caro que a gasolina. Não poderíamos correr o risco de pressionar o preço da gasolina”, argumentou Marco Antônio.
A desorganização do etanol ocorreu justamente quando o governo decidiu reduzir os impostos dos carros novos para estimular o crescimento econômico. Com os preços mais baixos, a venda de carros disparou. A frota brasileira de carros cresceu de 27 milhões de veículos em 2010 para 31 milhões dois anos depois. A frota flex quase dobrou nesse mesmo período, embora a maioria dos consumidores agora escolha abastecer com gasolina em vez de álcool.
A Petrobras, no entanto, não estava preparada para o novo patamar de consumo de gasolina. Sem aumentos expressivos na produção de petróleo, sem capacidade para produzir mais gasolina por falta de recursos para novos investimentos, e sem o suporte do etanol, a estatal passou a importar mais gasolina. Nunca antes na história deste país se precisou recorrer a tal medida. O Brasil sempre importou petróleo para refinar aqui. Nos dois últimos anos, a estatal importou uma média de 400 mil barris de gasolina por mês, o que contribuiu para a piora do seu caixa. A importação se refletiu negativamente nas contas do comércio exterior, derrubando o saldo da balança comercial, no ano passado, para o mais baixo da década.
m janeiro, o governo finalmente voltou a aprovar o aumento da mistura de etanol à gasolina de 20% para 25%. A medida entra em vigor em maio. Essa era uma antiga reivindicação do setor, que vê aí uma oportunidade de melhorar seus negócios. Para isso, os usineiros se comprometeram a aumentar a produção para 26 bilhões de litros, o que não resolve de todo o problema da Petrobras. Para que a estatal reduzisse a importação de gasolina, os usineiros teriam que aumentar também a produção de etanol para o carro flex, mas isso não está sendo cogitado. “Nós poderíamos produzir 50 bilhões de litros de etanol para abastecer toda a frota flex”, disse Antonio Pádua. “Mas, como os preços de venda não cobrem nossos custos, não temos como aumentar a produção.”
Marco Antônio não se altera ao dizer que, se não houver um rápido aumento da oferta de etanol, a Petrobras e o Brasil continuarão tendo perdas com a importação de gasolina. “Estamos construindo quatro refinarias e nenhuma delas vai produzir gasolina: elas vão produzir diesel, coque, nafta, GLP e querosene de aviação”, disse. O mundo todo, segundo ele, e não só o Brasil e a Petrobras, imaginava um mercado com cada vez mais etanol e menos gasolina, o que não se concretizou. “Agora, estamos tendo que importar gasolina e minhas refinarias estão projetadas para não produzir gasolina”, disse ele, serenamente, como um médico conformado diante de um paciente terminal. “A saída será colocar álcool no mercado ou mudar o projeto das refinarias em construção.”
A possibilidade de o Ministério de Minas e Energia ter errado ao não ter feito um planejamento para evitar que a situação chegasse a esse ponto parece não caber na avaliação de Marco Antônio. “Veja bem”, disse ele com um sorriso tranquilo, fazendo uma indagação. “Minha referência de política pública tem que ser a usina que foi incompetente, que se endividou e não consegue gerar caixa, ou aquela que está bem administrada e não deve nada a ninguém?” Ele mesmo respondeu: “Se eu for ajudar a quebrada, tenho que premiar as bem administradas com rios de dinheiro. Eu preciso levar em conta a situação média do setor, e não usar as quebradas como referência. Não posso salvar empresas. Usinas vão quebrar. Não quero que aconteça, mas empresas quebram todos os dias, em todos os setores, e o governo não fica correndo atrás para salvá-las.”
Ainda que o governo tente recuperar o tempo perdido estimulando a construção de novas usinas, o retorno não se dará em curto prazo. O setor exige um planejamento meticuloso. Em 2010, por exemplo, havia 111 pedidos de instalação de novas usinas em Goiás. Desses, apenas dezessete estão se materializando. “Para produzir etanol é preciso saber produzir”, explicou Carlos Liboni, um engenheiro que hoje ocupa a Secretaria de Indústria e Comércio de Sertãozinho. O investimento é alto, cerca de 6 mil reais por hectare. O canavial precisa estar no máximo a 50 quilômetros da usina. Sem isso, o negócio fica impraticável. Uma tonelada de cana está em torno de 70 reais. A quantidade de cana para encher um caminhão não chega a mil reais. Se o caminhão rodar muito, todo o dinheiro da cana transportada será para pagar o frete.
Os investimentos na construção de uma usina também são altos. Uma nova usina, de tamanho médio, exige um investimento mínimo de 1 bilhão de reais. “Quem vai investir essa montanha de dinheiro se não tiver segurança de que as regras do jogo não serão mudadas?”, perguntou Liboni. “O fato é que, nos últimos anos, o governo mudou as regras várias vezes. Abaixou o percentual de álcool na mistura de gasolina, congelou preço, não levou para a frente o projeto de biomassa, que era a produção de energia elétrica com o bagaço da cana-de-açúcar. Tudo isso judia muito do setor.”
ma das maiores empresas fabricantes de equipamentos para usinas é a Dedini. A fábrica, uma construção de tijolo aparente com um enorme jardim na frente, fica na entrada de um dos distritos industriais de Sertãozinho. A Dedini é um termômetro da pouca disposição de investir dos empresários da área. José Luiz Olivério é o vice-presidente de Tecnologia e Desenvolvimento da empresa.
Ele contou que em 2008, quando havia a expectativa do boom do setor, o faturamento da Dedini foi de 2,2 bilhões de reais. Desse total, 70% eram encomendas do setor sucroalcooleiro. Três anos depois, o faturamento caiu para 900 milhões, dos quais apenas 45% foram de encomendas para as usinas. “Isso sem que a Dedini perdesse posição no mercado”, disse ele.
O empresário Rubens Ometto, dono do grupo Cosan, nasceu e cresceu dentro de uma usina em Piracicaba, no interior paulista. Sua fortuna é estimada em 2,7 bilhões de dólares, o que faz dele um dos brasileiros mais ricos. Entre os superlativos, está também o de ser o maior produtor e processador mundial de cana-de-açúcar. Ometto é grisalho e tem olhos azuis, escondidos atrás dos óculos de armação preta. Gosta de uma boa conversa, desde que não liguem para ele na hora da novela das nove da noite.
Antes de chegar à fortuna de hoje, quase faliu, rompeu com a mãe, assumiu o controle da Cosan e viu seus negócios se multiplicarem. Em abril de 2008, surpreendeu o mercado ao comprar a rede de postos de combustíveis da Esso, nome da Exxon Mobil no Brasil. À época, a compra da Esso pela Petrobras era tida como certa. A presidente Dilma Rousseff, ainda ministra da Casa Civil, era forte incentivadora do negócio. À saída de uma reunião do conselho da estatal, ela chegou a comentar com alguns interlocutores: “Essa ninguém tira da Petrobras.”
O comentário chegou aos ouvidos de Ometto. Grande financiador das duas campanhas de Lula ao Planalto, o empresário voou para Brasília e deu seu recado ao presidente e à ministra. “Se a Petrobras comprar a Esso, eu vendo a Cosan para uma multinacional no dia seguinte”, disse. Ometto costuma contar a seus interlocutores que Lula, preocupado com a possibilidade de o Brasil perder sua maior empresa de etanol, determinou que a Petrobras recuasse no negócio. Para surpresa do mercado, Ometto ficou com a Esso. Três anos depois, ele venderia 50% da Cosan para a Shell. Juntas, formaram o grupo Raízen de produção e distribuição de combustíveis.
Recentemente, Ometto se interessou por novos negócios. Em maio, investiu 3,4 bilhões de reais na aquisição da Comgás, a maior distribuidora de gás natural do Brasil. Em uma entrevista à revista Exame, no final do ano, ele justificou sua decisão de colocar capital em outros setores: “O mercado de açúcar e de álcool é uma montanha-russa. Estou investindo em setores mais estáveis.”
estrada que leva ao Centro de Tecnologia Canavieira, o CTC, próximo a Piracicaba, é estreita e esburacada. Um desvio à esquerda dá numa entrada arborizada, margeada por um lago bem cuidado. Os blocos de tijolo aparente e concreto, espalhados pela grande área, lembram um campus universitário. Ali trabalham quase 350 cientistas, encarregados de desenvolver alta tecnologia para a cultura da cana.
A pesquisa mais avançada do CTC no momento é o etanol de segunda geração, o projeto 2G. Gustavo Leite, presidente do Centro, considera que o 2G vai mudar a cara da cultura da cana. O etanol de segunda geração é o álcool extraído do bagaço, das folhas e da palha da cana. “Com a mesma produção de cana, a mesma quantidade de terra, de adubo e de fertilizante, será possível multiplicar a produção, já que haverá o aproveitamento de toda a planta.”
Os números apresentados por Gustavo Leite impressionam. Hoje, cada hectare de cana produz, em média, 7 mil litros de etanol. Com o etanol celulósico será possível produzir 30 mil litros no mesmo hectare. Leite se entusiasmou: “Não há planta que possa competir com a cana. Um hectare de cana produz 22 toneladas de etanol celulósico contra 9 do milho.” Sua expectativa é de que o CTC, criado nos anos 70 pela Copersucar, a maior cooperativa de produtores de cana, para desenvolver tecnologicamente o setor, sairá na frente nessa tecnologia.
“Não é à toa que esses grandes grupos estrangeiros estão de olho no Brasil”, disse Leite. “Todos querem desenvolver o etanol de segunda geração da cana-de-açúcar, mas vamos ganhar essa corrida.” Em fevereiro, foi feito o primeiro teste de produção de etanol 2G. Agora o Centro fará investimentos de 100 milhões de reais para construir uma grande usina, que preparará o projeto para operar em larga escala. Só então o 2G será comercializado.
ntônio Eduardo Tonielo Filho, ou Tonho, como é chamado em Sertãozinho, é um dos herdeiros de três usinas na região. Aos 40 anos, ele administra as empresas e ocupa também a função de presidente da entidade que carrega o pomposo nome de Centro Nacional das Indústrias do Setor Sucroenergético e Biocombustíveis, em Sertãozinho. Vestindo uma camisa cáqui com o nome de uma delas, a Virálcool, ele falou das mudanças que o setor vem promovendo. No estado de São Paulo, por determinação legal, a colheita manual de cana terá que desaparecer dentro de dois anos. “O setor está mudando a cara”, disse. “O coronel e o trabalhador semiescravo, tantas vezes retratados, estão desaparecendo em São Paulo”, disse ele.
As máquinas que colhem a cana no lugar são orientadas por GPS. Alguns dos ex-cortadores hoje controlam as máquinas. “Tem até ar-condicionado lá dentro”, disse Tonielo. As usinas tiveram que se adequar a outras mudanças. A legislação ambiental paulistana proíbe que se emita fuligem pelas chaminés e se jogue a água das caldeiras ou do esgoto sem tratamento nos rios. Todos os efluentes têm de ser tratados, e as usinas são obrigadas a construir sistema de esgoto. A fiscalização do trabalho também está mais rígida. Trabalhadores com carteira assinada, assistência médica e odontológica são a maioria. Mas os benefícios, disse Tonielo, aumentaram o custo das usinas nos últimos anos, e não puderam ser repassados para o preço.
As melhorias foram a contrapartida exigida pelos americanos e europeus para importar o etanol brasileiro. “Nós não fizemos isso porque somos bonzinhos”, admitiu Tonielo. “Fizemos porque senão o nosso álcool não entrava lá.” No ano passado, o setor conseguiu exportar 2 bilhões de dólares de etanol para os Estados Unidos. Como a produção de etanol aqui é mais limpa do que a do milho, alguns estados americanos pagaram um preço maior pelo etanol brasileiro, como um prêmio pela produção de um combustível de melhor qualidade. Criou-se uma situação bizarra. Como o álcool produzido aqui foi exportado, o Brasil teve que importar o combustível americano para suprir as necessidades da mistura de 20% de etanol na gasolina. “Estamos limpando o ar dos americanos e sujando o nosso”, ironizou o consultor Adriano Pires.
Tonho Tonielo acha que há má vontade da presidente Dilma Rousseff com o setor. “Ela não quer conversa com a gente”, disse. “Para aumentar o percentual de 20% para 25% da mistura de álcool na gasolina, levou meses para decidir. Nós não temos interlocução. A maioria dos nossos pleitos cai no vazio.” E reclamou com seu forte sotaque caipira: “A muié é dura demais.” Mas ele, de certa forma, entende essa má vontade: “A sociedade vê os usineiros como uns exploradores, uns aproveitadores de subsídios do governo. Não é nada disso. Nós evoluímos muito, embora ainda existam alguns que denigram a nossa imagem.”
médico Paulo Saldiva, chefe do Departamento de Patologia da Universidade de São Paulo, fez recentemente um robusto estudo analisando o impacto do etanol no meio ambiente. Um dos resultados foi que, em São Paulo, os índices de emissão de poluentes na atmosfera caíram graças à maior utilização do etanol. O que foi percebido lá fora. Na Suécia, frotas de ônibus já estão rodando com o etanol feito no interior de São Paulo. É a essa perspectiva que os usineiros brasileiros se agarram para acreditar que há futuro para o setor. Ainda que fora do Brasil.
O governo americano adotou recentemente medidas para reduzir a emissão de gases de efeito estufa, embora não tenha assinado o Protocolo de Kyoto. Estabeleceu que, em 2022, os Estados Unidos irão consumir 140 bilhões de litros de etanol, em substituição à gasolina. Desse total, só 57 bilhões sairão do milho. Os outros 80 bilhões de litros terão que vir de fontes mais limpas. E 15 bilhões de litros virão do etanol da cana. “Temos condições de nos tornarmos os maiores exportadores do mundo”, disse o consultor Marcos Jank. “Mas isso só acontecerá se o governo, em vez de atrapalhar, se mexer de maneira coerente. O governo ficou anestesiado com o pré-sal. Depois disso, nada aconteceu. Venderam o pirão antes do peixe. Viramos o país do pré-sal que importa gasolina. E, se nada mudar, seremos o país do etanol da cana que compra etanol do milho.”
13 de fevereiro de 2014
por CONSUELO DIEGUEZ
Revista Piauí, 78
Até 2007, ela ocupava o sexto lugar no ranking das melhores cidades brasileiras, medido por pesquisas da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro, que levam em conta emprego, nível de renda, saúde e educação. Sertãozinho era o maior polo nacional de produção de máquinas e equipamentos para o setor do açúcar e do álcool. Na maioria, os trabalhadores de lá são operários especializados.
Dois anos depois, Sertãozinho desabou para o 154º lugar no ranking, e dali não conseguiu sair. Quando o prefeito José Alberto Gimenez, o Zezinho, tomou posse, em janeiro passado, encontrou uma cidade muito diferente da que administrara até 2007. Naquele período de abundância, suas mais de 500 fábricas estavam abarrotadas de encomendas para atender às usinas de todo o Brasil. Faltavam trabalhadores para dar conta da demanda. Os salários subiam. O comércio era pujante e os bares e restaurantes não ficavam vazios como agora.
Gimenez, um homem alto, de pele clara e cabelos acinzentados, bateu com as grandes mãos espalmadas na mesa da sala de reuniões da prefeitura, num prédio cor de uva, construído nos anos 30. Suspirou e empregou a palavra “decadência”. Mas não culpou seu antecessor. “O que derrubou Sertãozinho foi a crise do etanol”, disse. “Nossas fábricas estavam ganhando dinheiro com o grande volume de encomendas para as usinas, tanto novas quanto antigas. Aí o governo começou a se meter nos preços dos combustíveis e bagunçou tudo.”
As dificuldades das usinas chegaram logo à prefeitura. Com quase 2 mil desempregados, Sertãozinho perdeu renda, o que afetou o comércio, a prestação de serviços, a arrecadação pública e os índices de saúde. O efeito dominó da política do governo para os combustíveis se propagou muito além das penas desfiadas por Gimenez: abalou todo o setor de etanol, que movimenta quase 50 bilhões de dólares ao ano e gera cerca de 400 mil empregos permanentes e outros 600 mil temporários. Também contribuiu para o rombo no balanço da Petrobras e fez estragos nas contas externas nacionais, arrastando o saldo comercial para o nível mais baixo dos últimos dez anos.
O quartel-general dos usineiros, a União da Indústria de Cana-de-Açúcar, a Unica, fica no 9º andar de um prédio na avenida Brigadeiro Faria Lima, em São Paulo. A entidade, que congrega todos os donos de usinas, acaba por servir de referência para os outros participantes do setor de etanol, como plantadores de cana e fabricantes de equipamentos para as usinas. E nos últimos cinco anos ela virou um muro de lamentações. Das 430 usinas que existiam no Brasil há cinco anos, 41 fecharam as portas ou foram incorporadas por outras. Para este ano, a previsão da entidade é de que mais dez tenham o mesmo destino.
ircula no Palácio do Planalto um estudo do Itaú BBA que pinta com tintas sombrias a paisagem do futuro do etanol. Das quase 400 usinas atuais, 18% estão quebradas e sem salvação: pesadamente endividadas, elas não têm geração de caixa para se sustentar e pagar a dívida. Outro conjunto de usinas mal e mal pode arcar com as dívidas, mas dificilmente quebrará em curto prazo. O esforço exigido para o pagamento, contudo, impedirá que façam qualquer investimento nos próximos anos.
Por fim, diz o estudo do banco de investimentos, há um grupo de 40% das usinas capitalizado e com caixa para investir. É com essas usinas que o governo terá que contar para suprir a necessidade de etanol no mercado brasileiro nos próximos anos. A dúvida – que não é só do banco, mas do setor e do próprio governo – é se elas terão capacidade para garantir o abastecimento nacional do combustível.
O grande crescimento do etanol se deu após o aparecimento nas ruas brasileiras, em 2003, dos carros flex, que permitiram aos motoristas abastecer com gasolina e álcool, com vantagem para a segunda opção. A segurança de poder usar os dois combustíveis afugentou o temor de se repetir o que ocorrera no começo da década de 90: por falta do combustível, os donos de automóveis movidos exclusivamente a álcool não tinham como abastecê-los. Uma década depois de os carros a álcool terem desaparecido, os flex tomaram conta do mercado.
Com a alta prolongada do preço do petróleo no mundo, o etanol surgiu como uma opção muito mais barata que a gasolina. Boa parte dos consumidores passou a abastecer com o produto, a ponto de, nos anos seguintes, metade dos carros flex rodar com o combustível.
O rápido aumento do consumo provocou uma explosão do setor, impulsionando toda a cadeia do etanol – do plantio da cana até a fabricação de máquinas e equipamentos para atender às novas usinas. Em três anos, 2004 a 2007, surgiram 130 novas usinas só na região Centro-Sul do país. A produção de cana dobrou. O Brasil, que levara 500 anos para produzir 300 milhões de toneladas até 2003, passou a produzir 600 milhões de toneladas de cana em menos de uma década.
Entusiasmado com o crescimento acelerado do setor, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva abandonou a mamona, que considerava a panaceia para resolver futuras dificuldades na geração de energia não poluente, para empunhar a bandeira do etanol. Numa campanha de marketing, passou a chamá-lo de combustível verde-amarelo. O etanol, como repetiu tantas vezes, era a oportunidade de o Brasil livrar-se das oscilações do preço da gasolina, além de virar um grande exportador de um combustível mais limpo. O álcool ganhava espaço nos discursos de Lula quanto mais subia o preço do barril do petróleo. Mas então foi anunciada a descoberta de campos de pré-sal no mar, ao passo que a alta do preço do petróleo começou a pressionar a inflação, preocupando o governo.
A política de Lula em relação aos combustíveis ficou então difícil de entender. Por um lado ela estimulava o aumento da produção do etanol por meio de financiamentos públicos, e por outro passou a segurar artificialmente o preço da gasolina. Com isso, a vantagem que havia em abastecer o carro com etanol começou a diminuir. Como a eficiência energética do álcool é menor, a sua utilização só se torna vantajosa se ele custar, no máximo, 70% do valor da gasolina. E com o preço da gasolina congelado na bomba, o usineiro não podia aumentar o preço do seu produto, sob pena de perder mercado. Sem poder repassar o aumento dos custos aos motoristas, os usineiros passaram a ter prejuízo. A produção caiu e o setor entrou em curto-circuito.
um começo de tarde, Antonio de Pádua Rodrigues, diretor técnico da Unica, um homem grisalho que passou parte da vida no campo, detalhou, desalentado, o início do desmanche do setor. “Houve uma grande euforia em 2007”, disse. “Muitos empresários correram em busca de financiamento para abrir sua usina. Alguns sequer conheciam o negócio, o que era problemático.” Terras para o plantio da cana começaram a ser disputadas, elevando bruscamente o preço do hectare. Não importavam os custos. A corrida pelo etanol coincidiu com os movimentos ambientalistas na Europa e nos Estados Unidos exigindo um combustível mais limpo. E o Brasil despontou como o grande fornecedor de energia limpa e renovável para o mundo.
Um ano depois, o contexto favorável se esvaneceu. A crise financeira de 2008 cortou de súbito as perspectivas de exportação, e se aliou ao congelamento do preço da gasolina internamente. A brusca elevação dos custos de financiamento jogou a dívida das usinas na estratosfera. Endividadas e sofrendo a pressão do achatamento dos preços, muitas delas reduziram ou paralisaram os investimentos. Não só em novas máquinas, mas também na renovação do canavial. Para que a cana tenha maior lucratividade, 20% do canavial tem que ser renovado a cada safra. Caso contrário, a plantação envelhece e a produção cai.
“Ou bem as usinas pagavam as dívidas ou bem investiam em melhorias”, disse Pádua. Para tentar se capitalizar, boa parte delas desovou seus estoques a preços abaixo dos custos de produção. Outras não tiveram alternativa: foram vendidas ou fecharam as portas. Nesse panorama, multinacionais que se preparavam para investir no Brasil tomaram um atalho: em vez de abrir novas usinas, compraram as que estavam em dificuldade. A participação das usinas nacionais no mercado, que era de quase 100%, encolheu para 60%. Quarenta por cento das usinas pertencem hoje a grandes grupos estrangeiros, como o americano Bunge e o francês DuPont. Para coroar as desditas, em 2009 uma seca no interior de São Paulo, o maior centro produtor de cana-de-açúcar, quebrou a safra e derrubou ainda mais a produção de álcool.
engenheiro Adriano Pires é dono do Centro Brasileiro de InfraEstrutura, uma consultoria do Rio especializada em energia. Ele me imprimiu um gráfico com a produção de etanol no Brasil e nos Estados Unidos nos últimos anos. Para ele, o gráfico fornece o quadro mais nítido da oportunidade que o Brasil está perdendo em razão do que ele considera uma “política errática” do governo para o setor.
Desde 2003, os Estados Unidos surgiram como o único possível concorrente de peso do Brasil na produção de etanol. Com a desvantagem de o etanol americano ser feito de milho, com teor energético muito menor do que o da cana, além de menos produtivo e de sujar mais o meio ambiente.
Em 2005, o Brasil produzia 16 bilhões de litros de etanol ao ano, e os Estados Unidos, 14 bilhões. Dois anos depois, a Casa Branca determinou que o etanol integrasse a matriz energética americana, e George W. Bush fixou prazos para que o volume de produção fosse aumentando gradativamente, para substituir em parte os combustíveis fósseis. Embora a estratégia tivesse mais a ver com a intenção do governo americano de reduzir a dependência do petróleo de lugares considerados voláteis, como os países árabes e a Venezuela, do que com preocupações ambientais, ela funcionou. Em 2006, o governo americano criou uma comissão formada pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts, o MIT, e órgãos ligados a energia, ciência e tecnologia e meio ambiente. A CIA, Agência Central de Inteligência, integrou a comissão, que foi encarregada de traçar um programa energético para o país até 2056. Tudo foi detalhado, até os investimentos que deveriam ser feitos para cumprir as metas.
Adriano Pires apontou para o gráfico recém-impresso. “Essa é uma política consistente”, disse. “Em 2007, para atender as metas fixadas, os Estados Unidos já haviam passado à frente do Brasil, produzindo 24 bilhões de litros de etanol contra os 22 bilhões de litros feitos aqui. Em 2008, eles já produziam 35 bilhões de litros, contra 27 bilhões do Brasil.” E completou o raciocínio grifando os números finais com caneta: “Com o equívoco cometido pelo governo e a falta de um projeto para o setor, a produção nacional, em 2011, encolheu para 22 bilhões, enquanto a americana ultrapassou o dobro da nossa, batendo em 52 bilhões de litros.”
Parte desse desempenho americano aconteceu graças aos formidáveis subsídios do governo aos produtores de milho. Afora os subsídios, durante anos os produtores de milho conseguiram barrar a entrada do etanol brasileiro nos Estados Unidos. Confiantes no aumento futuro da produção, e na certeza de que tinham um produto melhor para oferecer, os usineiros brasileiros tentaram derrubar as barreiras tarifárias americanas.
essa época, o engenheiro Marcos Jank, que tinha experiência internacional no agronegócio, ocupava a presidência da Unica. Numa conversa recente, ele contou como se deu a queda de braço com os americanos. “Começamos usando as mesmas armas que eles”, disse. “Abrimos um escritório em Washington e contratamos lobistas para nos ajudarem a mostrar as vantagens do nosso etanol em relação ao etanol americano.” Foram meses de visitas ao Congresso, a grupos de ambientalistas e até a comunidades pró-Israel, interessadas em que os Estados Unidos reduzissem a importação de petróleo de países árabes.
Nessas conversas, o esforço era derrubar mitos em torno do etanol brasileiro. Um deles dizia que o aumento do plantio da cana no Brasil se daria por meio da destruição da floresta amazônica. “Conseguimos provar para os americanos que a nossa cana, além de não invadir a Amazônia, não tinha impacto na produção de alimentos, ao contrário do milho americano”, contou Jank.
Na briga, boa parte dos ambientalistas americanos ficou do lado do Brasil. O etanol brasileiro também ganhou apoio de grandes consumidores de milho, como produtores de gado e frango – que usam o produto como ração – e de fabricantes de alimentos. Eles reclamavam que, por causa da utilização do milho como combustível, a oferta caíra e o preço disparara.
AAgência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos, Apex, juntou-se à ação da Unica. Numa entrevista na sede da entidade, um caixotão de vidro e concreto no Setor Bancário Norte, em Brasília, Mauricio Borges, presidente da agência, contou que um estratagema para chamar a atenção para o etanol brasileiro foi o patrocínio da Fórmula Indy. “Os carros passaram a correr com etanol de cana, com maior desempenho energético”, disse ele.
As corridas também criaram oportunidades de negócio. “Levávamos empresários americanos para acompanhar as corridas e os apresentávamos aos brasileiros de vários setores”, disse Borges. “Acabamos não só estimulando a venda de etanol, mas também fechamos exportações de mais de 1 bilhão de dólares de outros produtos. Diante dos 9 milhões de dólares que gastamos com o patrocínio das corridas, estamos tendo um bom retorno.”
Depois de trinta anos de protecionismo, em 2011 os Estados Unidos derrubaram as barreiras alfandegárias ao etanol brasileiro. Marcos Jank tem uma visão positiva de toda a campanha, mas ela é acompanhada por frustração. “Foi uma vitória espetacular”, avaliou. “Mas, depois de todo o esforço para derrubarmos as barreiras comerciais contra o nosso produto, a produção de etanol no Brasil estava tão deprimida que não tínhamos muito o que exportar”, disse ele, que hoje é consultor na área.
Naquele período, Lula, que havia se transformado no maior garoto propaganda do etanol, mudou drasticamente o seu foco de interesse, abandonando-o em função das jazidas submarinas de petróleo. “Até a descoberta do pré-sal, Lula dizia que, com o etanol, o Brasil seria uma Arábia Saudita verde”, rememorou Adriano Pires. “Mas o presidente rasgou a bandeira do combustível verde e pas-sou a dizer que tínhamos ‘uma Venezuela em petróleo enterrada no fundo do mar’.”
O programa de incentivo à produção do álcool como combustível surgiu nos anos 70, com o Proálcool. O regime militar criou-o para fazer frente à alta do petróleo no mercado internacional. Com as contas externas arruinadas, a ditadura precisava reduzir os custos com a importação do óleo. Foi tão bem-sucedida que, pouco mais de uma década depois, 90% da frota nacional de automóveis era de carro a álcool.
Com a queda no preço do petróleo, o programa foi paulatinamente abandonado junto com os consumidores do carro a álcool. Pouco mais à frente, novamente sob o influxo da conjuntura internacional, o álcool voltou a ser valorizado. E empresários, convenientemente, acreditaram que o programa era para valer.
Acreditaram em discursos, como um de Luciano Coutinho em maio de 2008. No lançamento da política industrial do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, o BNDES, o economista, presidente do banco, disse que o etanol seria apoiado porque envolvia muita inovação para a produção de uma energia limpa. “O etanol nunca foi oficialmente colocado de lado, mas desapareceu do discurso oficial”, disse-me Mansueto Almeida, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o IPEA.
cana-de-açúcar chegou ao Brasil Colônia em 1532. As primeiras mudas foram plantadas na capitania de São Vicente, no litoral paulista, e depois em Pernambuco. Muitas cidades, como Recife, surgiram em torno dos canaviais. Logo a monocultura da cana tornou-se o produto por excelência da economia da América portuguesa. As condições cruéis de escravos no eito e nas senzalas, e a “doce” exploração, sobretudo feminina, nas casas-grandes, marcaram a formação do país e foram tematizadas por Gilberto Freyre.
De modo geral, a produção da cana não propiciou progresso tecnológico, e muito menos a incorporação de escravos à cidadania: exportava-se matéria-prima, não se acumulava capital e evitava-se o florescimento do trabalho assalariado. Afora isso, a plantação intensiva e sem cuidados, principalmente no Nordeste, acabou por arruinar grandes extensões de terra.
O ciclo da cana foi substituído pelo da prata e depois pelo do café, mas o cultivo não desapareceu. No final do século XIX, a cana se expandiu para o interior de São Paulo e Paraná. Os plantadores eram em boa parte imigrantes italianos – como os Ometto e os Biagi, cujos herdeiros são hoje milionários. Com a crise de 1929, foram dispensados das fazendas de café e começaram a plantar suas roças de cana para fazer, basicamente, cachaça. Foi por causa dessa experiência em fazer aguardente que eles adquiriram traquejo na atividade econômica e, muitas décadas depois, produziriam etanol.
No Nordeste foi diferente. A participação da região na cultura da cana é hoje de ínfimos 10%. Os usineiros nordestinos, instalados principalmente em Pernambuco e Alagoas, não produzem etanol, apenas açúcar. Não só pela falta de conhecimento nesse tipo de negócio, mas também porque se acomodaram com a garantia das cotas açucareiras. Desde os anos 60, quando os Estados Unidos romperam com o regime de Fidel Castro, os americanos fizeram uma redistribuição das cotas que eram dadas aos produtores cubanos, que podiam exportar para o país vizinho sem pagamento de tarifas.
Na redistribuição, o Brasil ficou com parte dessas cotas. Como os usineiros do Nordeste tinham mais influência política, foram premiados com todas elas. Uma influência que se explica pela economia cartelizada: dos 102 municípios alagoanos, em 54 existem canaviais, pertencentes a 24 usinas que, por sua vez, são controladas por apenas treze famílias.
sso acabou fazendo com que as usinas do Centro-Sul ficassem sós na produção do etanol. Como energia exige muito mais tecnologia do que a simples transformação de cana em açúcar, o setor fez inúmeros investimentos em inovação. Tanto que o etanol brasileiro é reconhecido como o mais eficiente do mundo. Junto com o ál-cool, todo o setor se expandiu: a plantação, a mecanização de usinas, a distribuição de combustíveis e até os postos de gasolina.
Mas mesmo o setor mais modernizado tem dificuldades em se desenvolver com os seus próprios meios. De acordo com Mansueto Almeida, um dos exemplos mais contundentes da ausência de uma política estratégica para o setor foi a venda de duas empresas do grupo Vo-torantim – a CanaVialis e a Alellyx – no final de 2008, por 290 milhões de dólares, para a americana Monsanto.
A CanaVialis era a maior empresa privada do mundo de desenvolvimento de variedades de cana-de-açúcar. E a Alellyx liderava a pesquisa de biotecnologia para a cana. A Votorantim havia criado as duas companhias como parte de um plano de investimento em novos negócios. Para tanto, recebeu 50 milhões de reais em subsídios a fundo perdido do governo, um financiamento que não precisa ser ressarcido. Parte dos recursos já havia sido desembolsada quando, na crise de 2008, a Votorantim decidiu se desfazer das empresas e focar os seus negócios na sua especialidade. Para isso, tomou mais dinheiro barato do BNDES e comprou a Aracruz Celulose, que havia quebrado.
Na época, o ministro da Ciência e Tecnologia, Sérgio Rezende, de cujo ministério havia saído parte dos recursos, reclamou do comportamento do Grupo. “Como foram vender duas joias como essas?”, disse. O muxoxo foi a única manifestação de contrariedade. Ao comprar as duas empresas, a Monsanto soltou uma nota informando que a recém-adquirida CanaVialis desenvolvia uma nova planta, geneticamente modificada, que abriria um vasto campo para o aumento da produtividade da cana-de-açúcar.
lmeida não considera que a Votorantim tenha feito algo irregular. Ele critica a falta de controle do governo sobre os financiamentos que concede, sem exigir que as empresas se comprometam com um projeto de longo prazo. “Todos os países que apostaram em inovação fazem exigências ao concederem financiamento para empresas privadas”, disse. “Na Coreia, antes de receber subsídios do governo para se desenvolver tecnologicamente, a Samsung teve de firmar uma série de compromissos, começando com a inovação e terminando com a geração de emprego.”
O mais grave, disse Almeida, é que a Monsanto, uma das maiores empresas do mundo em soluções agrícolas e de biotecnologia, principalmente de milho e soja, passou a controlar também a tecnologia da cana. A Monsanto não vende soja nem milho. Vende sementes, adubos e defensivos. A matéria-prima é bem menos rentável que as mercadorias transformadas pela tecnologia. Agora, fará isso com a cana. “A Monsanto pegou a cereja do bolo da cultura da cana, que é a inovação tecnológica”, disse. E voltou suas críticas ao BNDES: “O banco, em vez de apostar em empresas inovadoras, fica emprestando fortunas, a juros subsidiados, a grupos que não desenvolvem nenhuma tecnologia nova, como o frigorífico JBS.”
Enquanto falava, Almeida era acompanhado por Gesmar dos Santos, outro pesquisador do IPEA, que concordava com a cabeça. Quando teve uma brecha, Santos entrou na discussão. “Existe uma importância estratégica em se manter toda a cadeia tecnológica do conhecimento na mão de residentes”, disse. “Existem cerca de 100 países que podem produzir etanol de cana, principalmente na África, na América do Sul e na América Central. Se esse mercado se desenvolver, o Brasil poderia apostar na cadeia como um todo. Desde o plantio, o desenvolvimento de sementes, até o software e a instalação de empresas nesses países.”
No ano passado, a Finep, Financiadora de Estudos e Projetos do Ministério da Ciência e Tecnologia, abriu um edital de financiamento de 1 bilhão de reais, em parte a fundo perdido, para incentivar a pesquisa do etanol. Entre as empresas que acabaram se beneficiando do fundo figuram a Monsanto, a Basf, a Bayer e a Dow Química, todas multinacionais. “Embora não esteja errado que elas participem, acho que não era o caso de tomarem financiamento público, pois são muito grandes e têm capital”, disse Santos.
Nos Estados Unidos, os créditos para pesquisa em inovação na produção de etanol, no valor de 400 milhões de dólares, foram apenas para firmas americanas. Eram financiamentos na faixa de 5 milhões de dólares, para empresas pequenas, que apostavam em inovação. Depois, concordaram em dar financiamento, em faixas inferiores, para empresas instaladas no país, embora não americanas. “Nada impediria que fôssemos lá disputar financiamento para projetos de desenvolvimento de pesquisa do etanol americano”, disse Santos. “O problema é que não temos o nosso modelo, não sabemos onde queremos chegar.”
s nove horas de uma manhã de janeiro, Marco Antônio Martins Almeida, secretário de Petróleo, Gás Natural e Combustíveis Renováveis do Ministério de Minas e Energia, entrou na sala de reuniões contígua a seu gabinete, em Brasília. Marco Antônio, como pediu para ser chamado, discorda das críticas de que o governo abandonou o setor do etanol. “Não é o fato de o preço da gasolina ter se mantido estável que atrapalhou o setor”, disse. “O que precisa ficar claro é que nenhum programa que quer ser sustentável a longo prazo pode depender de preços conjun-turais.” Marco Antônio acha que o problema do setor são os custos de produção. “Se eles querem ser competitivos, têm de baixar os custos, e não ficar pensando só em aumento de preço”, disse ele, referindo-se aos usineiros.
Sua visão do problema difere da dos produtores. Em 2005, com a alta do petróleo, o mundo inteiro entrou num boom de combustíveis renováveis. Algumas diretivas europeias eram de que toda a gasolina teria de ter um percentual de mistura de 10% de etanol anidro, que é um aditivo. Os Estados Unidos e o Japão também definiram maiores percentuais de mistura. Isso, segundo Marco Antônio, levou produtores brasileiros a uma grande euforia: houve uma corrida dos usineiros brasileiros para aumentar a produção de álcool anidro. Ou seja, não foi Brasília quem gerou a expectativa otimista. “O problema é que veio a crise, o preço da gasolina caiu e muitos países europeus adiaram a adoção de medidas para o aumento da mistura de etanol anidro na gasolina”, disse.
Além da perda de mercado externo, e da diminuição do mercado interno provocada pela redução do consumo do etanol no carro flex, os usineiros sofreram um novo baque.
O governo decidiu reduzir de 25% para 20% a mistura de etanol anidro na gasolina, temendo que, em função da crise, as usinas não tivessem produto para entregar. “Adotamos a medida porque não havia etanol anidro e o que tinha era mais caro que a gasolina. Não poderíamos correr o risco de pressionar o preço da gasolina”, argumentou Marco Antônio.
A desorganização do etanol ocorreu justamente quando o governo decidiu reduzir os impostos dos carros novos para estimular o crescimento econômico. Com os preços mais baixos, a venda de carros disparou. A frota brasileira de carros cresceu de 27 milhões de veículos em 2010 para 31 milhões dois anos depois. A frota flex quase dobrou nesse mesmo período, embora a maioria dos consumidores agora escolha abastecer com gasolina em vez de álcool.
A Petrobras, no entanto, não estava preparada para o novo patamar de consumo de gasolina. Sem aumentos expressivos na produção de petróleo, sem capacidade para produzir mais gasolina por falta de recursos para novos investimentos, e sem o suporte do etanol, a estatal passou a importar mais gasolina. Nunca antes na história deste país se precisou recorrer a tal medida. O Brasil sempre importou petróleo para refinar aqui. Nos dois últimos anos, a estatal importou uma média de 400 mil barris de gasolina por mês, o que contribuiu para a piora do seu caixa. A importação se refletiu negativamente nas contas do comércio exterior, derrubando o saldo da balança comercial, no ano passado, para o mais baixo da década.
m janeiro, o governo finalmente voltou a aprovar o aumento da mistura de etanol à gasolina de 20% para 25%. A medida entra em vigor em maio. Essa era uma antiga reivindicação do setor, que vê aí uma oportunidade de melhorar seus negócios. Para isso, os usineiros se comprometeram a aumentar a produção para 26 bilhões de litros, o que não resolve de todo o problema da Petrobras. Para que a estatal reduzisse a importação de gasolina, os usineiros teriam que aumentar também a produção de etanol para o carro flex, mas isso não está sendo cogitado. “Nós poderíamos produzir 50 bilhões de litros de etanol para abastecer toda a frota flex”, disse Antonio Pádua. “Mas, como os preços de venda não cobrem nossos custos, não temos como aumentar a produção.”
Marco Antônio não se altera ao dizer que, se não houver um rápido aumento da oferta de etanol, a Petrobras e o Brasil continuarão tendo perdas com a importação de gasolina. “Estamos construindo quatro refinarias e nenhuma delas vai produzir gasolina: elas vão produzir diesel, coque, nafta, GLP e querosene de aviação”, disse. O mundo todo, segundo ele, e não só o Brasil e a Petrobras, imaginava um mercado com cada vez mais etanol e menos gasolina, o que não se concretizou. “Agora, estamos tendo que importar gasolina e minhas refinarias estão projetadas para não produzir gasolina”, disse ele, serenamente, como um médico conformado diante de um paciente terminal. “A saída será colocar álcool no mercado ou mudar o projeto das refinarias em construção.”
A possibilidade de o Ministério de Minas e Energia ter errado ao não ter feito um planejamento para evitar que a situação chegasse a esse ponto parece não caber na avaliação de Marco Antônio. “Veja bem”, disse ele com um sorriso tranquilo, fazendo uma indagação. “Minha referência de política pública tem que ser a usina que foi incompetente, que se endividou e não consegue gerar caixa, ou aquela que está bem administrada e não deve nada a ninguém?” Ele mesmo respondeu: “Se eu for ajudar a quebrada, tenho que premiar as bem administradas com rios de dinheiro. Eu preciso levar em conta a situação média do setor, e não usar as quebradas como referência. Não posso salvar empresas. Usinas vão quebrar. Não quero que aconteça, mas empresas quebram todos os dias, em todos os setores, e o governo não fica correndo atrás para salvá-las.”
Ainda que o governo tente recuperar o tempo perdido estimulando a construção de novas usinas, o retorno não se dará em curto prazo. O setor exige um planejamento meticuloso. Em 2010, por exemplo, havia 111 pedidos de instalação de novas usinas em Goiás. Desses, apenas dezessete estão se materializando. “Para produzir etanol é preciso saber produzir”, explicou Carlos Liboni, um engenheiro que hoje ocupa a Secretaria de Indústria e Comércio de Sertãozinho. O investimento é alto, cerca de 6 mil reais por hectare. O canavial precisa estar no máximo a 50 quilômetros da usina. Sem isso, o negócio fica impraticável. Uma tonelada de cana está em torno de 70 reais. A quantidade de cana para encher um caminhão não chega a mil reais. Se o caminhão rodar muito, todo o dinheiro da cana transportada será para pagar o frete.
Os investimentos na construção de uma usina também são altos. Uma nova usina, de tamanho médio, exige um investimento mínimo de 1 bilhão de reais. “Quem vai investir essa montanha de dinheiro se não tiver segurança de que as regras do jogo não serão mudadas?”, perguntou Liboni. “O fato é que, nos últimos anos, o governo mudou as regras várias vezes. Abaixou o percentual de álcool na mistura de gasolina, congelou preço, não levou para a frente o projeto de biomassa, que era a produção de energia elétrica com o bagaço da cana-de-açúcar. Tudo isso judia muito do setor.”
ma das maiores empresas fabricantes de equipamentos para usinas é a Dedini. A fábrica, uma construção de tijolo aparente com um enorme jardim na frente, fica na entrada de um dos distritos industriais de Sertãozinho. A Dedini é um termômetro da pouca disposição de investir dos empresários da área. José Luiz Olivério é o vice-presidente de Tecnologia e Desenvolvimento da empresa.
Ele contou que em 2008, quando havia a expectativa do boom do setor, o faturamento da Dedini foi de 2,2 bilhões de reais. Desse total, 70% eram encomendas do setor sucroalcooleiro. Três anos depois, o faturamento caiu para 900 milhões, dos quais apenas 45% foram de encomendas para as usinas. “Isso sem que a Dedini perdesse posição no mercado”, disse ele.
O empresário Rubens Ometto, dono do grupo Cosan, nasceu e cresceu dentro de uma usina em Piracicaba, no interior paulista. Sua fortuna é estimada em 2,7 bilhões de dólares, o que faz dele um dos brasileiros mais ricos. Entre os superlativos, está também o de ser o maior produtor e processador mundial de cana-de-açúcar. Ometto é grisalho e tem olhos azuis, escondidos atrás dos óculos de armação preta. Gosta de uma boa conversa, desde que não liguem para ele na hora da novela das nove da noite.
Antes de chegar à fortuna de hoje, quase faliu, rompeu com a mãe, assumiu o controle da Cosan e viu seus negócios se multiplicarem. Em abril de 2008, surpreendeu o mercado ao comprar a rede de postos de combustíveis da Esso, nome da Exxon Mobil no Brasil. À época, a compra da Esso pela Petrobras era tida como certa. A presidente Dilma Rousseff, ainda ministra da Casa Civil, era forte incentivadora do negócio. À saída de uma reunião do conselho da estatal, ela chegou a comentar com alguns interlocutores: “Essa ninguém tira da Petrobras.”
O comentário chegou aos ouvidos de Ometto. Grande financiador das duas campanhas de Lula ao Planalto, o empresário voou para Brasília e deu seu recado ao presidente e à ministra. “Se a Petrobras comprar a Esso, eu vendo a Cosan para uma multinacional no dia seguinte”, disse. Ometto costuma contar a seus interlocutores que Lula, preocupado com a possibilidade de o Brasil perder sua maior empresa de etanol, determinou que a Petrobras recuasse no negócio. Para surpresa do mercado, Ometto ficou com a Esso. Três anos depois, ele venderia 50% da Cosan para a Shell. Juntas, formaram o grupo Raízen de produção e distribuição de combustíveis.
Recentemente, Ometto se interessou por novos negócios. Em maio, investiu 3,4 bilhões de reais na aquisição da Comgás, a maior distribuidora de gás natural do Brasil. Em uma entrevista à revista Exame, no final do ano, ele justificou sua decisão de colocar capital em outros setores: “O mercado de açúcar e de álcool é uma montanha-russa. Estou investindo em setores mais estáveis.”
estrada que leva ao Centro de Tecnologia Canavieira, o CTC, próximo a Piracicaba, é estreita e esburacada. Um desvio à esquerda dá numa entrada arborizada, margeada por um lago bem cuidado. Os blocos de tijolo aparente e concreto, espalhados pela grande área, lembram um campus universitário. Ali trabalham quase 350 cientistas, encarregados de desenvolver alta tecnologia para a cultura da cana.
A pesquisa mais avançada do CTC no momento é o etanol de segunda geração, o projeto 2G. Gustavo Leite, presidente do Centro, considera que o 2G vai mudar a cara da cultura da cana. O etanol de segunda geração é o álcool extraído do bagaço, das folhas e da palha da cana. “Com a mesma produção de cana, a mesma quantidade de terra, de adubo e de fertilizante, será possível multiplicar a produção, já que haverá o aproveitamento de toda a planta.”
Os números apresentados por Gustavo Leite impressionam. Hoje, cada hectare de cana produz, em média, 7 mil litros de etanol. Com o etanol celulósico será possível produzir 30 mil litros no mesmo hectare. Leite se entusiasmou: “Não há planta que possa competir com a cana. Um hectare de cana produz 22 toneladas de etanol celulósico contra 9 do milho.” Sua expectativa é de que o CTC, criado nos anos 70 pela Copersucar, a maior cooperativa de produtores de cana, para desenvolver tecnologicamente o setor, sairá na frente nessa tecnologia.
“Não é à toa que esses grandes grupos estrangeiros estão de olho no Brasil”, disse Leite. “Todos querem desenvolver o etanol de segunda geração da cana-de-açúcar, mas vamos ganhar essa corrida.” Em fevereiro, foi feito o primeiro teste de produção de etanol 2G. Agora o Centro fará investimentos de 100 milhões de reais para construir uma grande usina, que preparará o projeto para operar em larga escala. Só então o 2G será comercializado.
ntônio Eduardo Tonielo Filho, ou Tonho, como é chamado em Sertãozinho, é um dos herdeiros de três usinas na região. Aos 40 anos, ele administra as empresas e ocupa também a função de presidente da entidade que carrega o pomposo nome de Centro Nacional das Indústrias do Setor Sucroenergético e Biocombustíveis, em Sertãozinho. Vestindo uma camisa cáqui com o nome de uma delas, a Virálcool, ele falou das mudanças que o setor vem promovendo. No estado de São Paulo, por determinação legal, a colheita manual de cana terá que desaparecer dentro de dois anos. “O setor está mudando a cara”, disse. “O coronel e o trabalhador semiescravo, tantas vezes retratados, estão desaparecendo em São Paulo”, disse ele.
As máquinas que colhem a cana no lugar são orientadas por GPS. Alguns dos ex-cortadores hoje controlam as máquinas. “Tem até ar-condicionado lá dentro”, disse Tonielo. As usinas tiveram que se adequar a outras mudanças. A legislação ambiental paulistana proíbe que se emita fuligem pelas chaminés e se jogue a água das caldeiras ou do esgoto sem tratamento nos rios. Todos os efluentes têm de ser tratados, e as usinas são obrigadas a construir sistema de esgoto. A fiscalização do trabalho também está mais rígida. Trabalhadores com carteira assinada, assistência médica e odontológica são a maioria. Mas os benefícios, disse Tonielo, aumentaram o custo das usinas nos últimos anos, e não puderam ser repassados para o preço.
As melhorias foram a contrapartida exigida pelos americanos e europeus para importar o etanol brasileiro. “Nós não fizemos isso porque somos bonzinhos”, admitiu Tonielo. “Fizemos porque senão o nosso álcool não entrava lá.” No ano passado, o setor conseguiu exportar 2 bilhões de dólares de etanol para os Estados Unidos. Como a produção de etanol aqui é mais limpa do que a do milho, alguns estados americanos pagaram um preço maior pelo etanol brasileiro, como um prêmio pela produção de um combustível de melhor qualidade. Criou-se uma situação bizarra. Como o álcool produzido aqui foi exportado, o Brasil teve que importar o combustível americano para suprir as necessidades da mistura de 20% de etanol na gasolina. “Estamos limpando o ar dos americanos e sujando o nosso”, ironizou o consultor Adriano Pires.
Tonho Tonielo acha que há má vontade da presidente Dilma Rousseff com o setor. “Ela não quer conversa com a gente”, disse. “Para aumentar o percentual de 20% para 25% da mistura de álcool na gasolina, levou meses para decidir. Nós não temos interlocução. A maioria dos nossos pleitos cai no vazio.” E reclamou com seu forte sotaque caipira: “A muié é dura demais.” Mas ele, de certa forma, entende essa má vontade: “A sociedade vê os usineiros como uns exploradores, uns aproveitadores de subsídios do governo. Não é nada disso. Nós evoluímos muito, embora ainda existam alguns que denigram a nossa imagem.”
médico Paulo Saldiva, chefe do Departamento de Patologia da Universidade de São Paulo, fez recentemente um robusto estudo analisando o impacto do etanol no meio ambiente. Um dos resultados foi que, em São Paulo, os índices de emissão de poluentes na atmosfera caíram graças à maior utilização do etanol. O que foi percebido lá fora. Na Suécia, frotas de ônibus já estão rodando com o etanol feito no interior de São Paulo. É a essa perspectiva que os usineiros brasileiros se agarram para acreditar que há futuro para o setor. Ainda que fora do Brasil.
O governo americano adotou recentemente medidas para reduzir a emissão de gases de efeito estufa, embora não tenha assinado o Protocolo de Kyoto. Estabeleceu que, em 2022, os Estados Unidos irão consumir 140 bilhões de litros de etanol, em substituição à gasolina. Desse total, só 57 bilhões sairão do milho. Os outros 80 bilhões de litros terão que vir de fontes mais limpas. E 15 bilhões de litros virão do etanol da cana. “Temos condições de nos tornarmos os maiores exportadores do mundo”, disse o consultor Marcos Jank. “Mas isso só acontecerá se o governo, em vez de atrapalhar, se mexer de maneira coerente. O governo ficou anestesiado com o pré-sal. Depois disso, nada aconteceu. Venderam o pirão antes do peixe. Viramos o país do pré-sal que importa gasolina. E, se nada mudar, seremos o país do etanol da cana que compra etanol do milho.”
13 de fevereiro de 2014
por CONSUELO DIEGUEZ
Revista Piauí, 78
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