O fato de, na cotação mais recente do mercado cambial, o peso argentino custar menos de 10 centavos de real (ou, inversamente, o real brasileiro custar mais de 11 pesos argentinos) mostra uma discrepância numérica e momentânea entre as duas moedas que não inviabilizaria a busca de sua unificação – o que para o presidente Jair Bolsonaro seria a concretização de um “sonho”. No entanto, a despeito de os dois países fazerem parte do Mercosul – um bloco econômico que teoricamente, mas apenas teoricamente, se caracteriza como uma união aduaneira –, outras discrepâncias de natureza macroeconômica entre Brasil e Argentina, ainda mais acentuadas do que as observadas entre as duas moedas, fazem tal “sonho” parecer um delírio.
Na década de 1980, os governos do Brasil e da Argentina chegaram a falar em moeda única, que se chamaria “gaúcho”, que seria utilizada exclusivamente nas transações entre os dois países, mas a ideia foi abandonada, por completa falta de condições para sua adoção. A ideia voltou a ser discutida no âmbito do Mercosul em 1998, quando os países-membros do bloco assinaram o Protocolo de Ushuaia, que previa a criação da moeda única, mas sem definir data para sua concretização, dadas as dificuldades políticas para isso.
Por algum motivo, os atuais governos do Brasil e Argentina ressuscitaram a ideia. Durante sua visita oficial à Argentina, na quinta-feira passada, Bolsonaro comemorou o que considerou o primeiro passo para a criação da moeda única dos dois países, que se chamaria “peso real”. O tema foi apresentado pelo ministro da Economia do Brasil, Paulo Guedes, durante encontro empresarial em Buenos Aires de que participaram o presidente Jair Bolsonaro e ministros argentinos. “A reação dos empresários argentinos foi de que isso deve ser feito logo”, disse Guedes após o encontro. Em seguida, ponderou que a criação da moeda é “conjectura”. Em outro momento, disse que isso é “algo que poderia acontecer em um prazo de 20 anos”.
Bolsonaro parece encantado com a ideia. De volta ao Brasil, afirmou que a criação de uma moeda única poderia se estender para toda a América do Sul, afirmando tratar-se de uma proposta que vem sendo debatida desde 2011 por Guedes. O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), demonstrou ceticismo com a ideia: “Será? Dólar valendo R$ 6,00? Inflação voltando? Espero que não”.
De fato, observando-se a realidade econômica dos dois países, é muito difícil imaginar que ambos venham a adotar uma moeda única num horizonte previsível. A cotação do dólar, lembrada por Maia, é apenas uma das grandes diferenças, não pela grande discrepância da cotação da moeda americana em peso e em real, mas pela velocidade de desvalorização da moeda argentina.
A inflação acumulada de 12 meses no Brasil está abaixo de 5%; na Argentina alcança 55%. Daí a pergunta de Maia a respeito de trazer de volta a inflação da qual o País tanto lutou para se livrar. Por esta e por muitas outras razões – inclusive a necessidade de preservação da política monetária que vem assegurando inflação próxima da meta sem necessidade de apertar o controle da moeda –, o Banco Central (BC) do Brasil tratou de divulgar nota afirmando que não há projetos ou estudos em andamento para uma união monetária com a Argentina. “Há tão somente, como é natural na relação entre parceiros, diálogos sobre estabilidade macroeconômica, bem como debates acerca de redução de riscos e vulnerabilidade e fortalecimento institucional”, completou o BC.
Não se esperaria que a instituição responsável pela preservação da estabilidade da moeda brasileira se manifestasse de outra maneira. Então, por que a ideia foi relançada, e defendida com entusiasmo, por Bolsonaro? A hipótese mais lembrada é o desejo do presidente brasileiro de dar apoio a seu colega argentino Mauricio Macri. Candidato à reeleição, enfrenta séria crise econômica e vai mal nas pesquisas eleitorais. Mas o que a estabilidade da economia brasileira tem a ver com isso?
08 de junho de 2019
Editorial Estadão
Na década de 1980, os governos do Brasil e da Argentina chegaram a falar em moeda única, que se chamaria “gaúcho”, que seria utilizada exclusivamente nas transações entre os dois países, mas a ideia foi abandonada, por completa falta de condições para sua adoção. A ideia voltou a ser discutida no âmbito do Mercosul em 1998, quando os países-membros do bloco assinaram o Protocolo de Ushuaia, que previa a criação da moeda única, mas sem definir data para sua concretização, dadas as dificuldades políticas para isso.
Por algum motivo, os atuais governos do Brasil e Argentina ressuscitaram a ideia. Durante sua visita oficial à Argentina, na quinta-feira passada, Bolsonaro comemorou o que considerou o primeiro passo para a criação da moeda única dos dois países, que se chamaria “peso real”. O tema foi apresentado pelo ministro da Economia do Brasil, Paulo Guedes, durante encontro empresarial em Buenos Aires de que participaram o presidente Jair Bolsonaro e ministros argentinos. “A reação dos empresários argentinos foi de que isso deve ser feito logo”, disse Guedes após o encontro. Em seguida, ponderou que a criação da moeda é “conjectura”. Em outro momento, disse que isso é “algo que poderia acontecer em um prazo de 20 anos”.
Bolsonaro parece encantado com a ideia. De volta ao Brasil, afirmou que a criação de uma moeda única poderia se estender para toda a América do Sul, afirmando tratar-se de uma proposta que vem sendo debatida desde 2011 por Guedes. O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), demonstrou ceticismo com a ideia: “Será? Dólar valendo R$ 6,00? Inflação voltando? Espero que não”.
De fato, observando-se a realidade econômica dos dois países, é muito difícil imaginar que ambos venham a adotar uma moeda única num horizonte previsível. A cotação do dólar, lembrada por Maia, é apenas uma das grandes diferenças, não pela grande discrepância da cotação da moeda americana em peso e em real, mas pela velocidade de desvalorização da moeda argentina.
A inflação acumulada de 12 meses no Brasil está abaixo de 5%; na Argentina alcança 55%. Daí a pergunta de Maia a respeito de trazer de volta a inflação da qual o País tanto lutou para se livrar. Por esta e por muitas outras razões – inclusive a necessidade de preservação da política monetária que vem assegurando inflação próxima da meta sem necessidade de apertar o controle da moeda –, o Banco Central (BC) do Brasil tratou de divulgar nota afirmando que não há projetos ou estudos em andamento para uma união monetária com a Argentina. “Há tão somente, como é natural na relação entre parceiros, diálogos sobre estabilidade macroeconômica, bem como debates acerca de redução de riscos e vulnerabilidade e fortalecimento institucional”, completou o BC.
Não se esperaria que a instituição responsável pela preservação da estabilidade da moeda brasileira se manifestasse de outra maneira. Então, por que a ideia foi relançada, e defendida com entusiasmo, por Bolsonaro? A hipótese mais lembrada é o desejo do presidente brasileiro de dar apoio a seu colega argentino Mauricio Macri. Candidato à reeleição, enfrenta séria crise econômica e vai mal nas pesquisas eleitorais. Mas o que a estabilidade da economia brasileira tem a ver com isso?
08 de junho de 2019
Editorial Estadão
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