O presidente Jair Bolsonaro sancionou, com muitos vetos, uma lei com mudanças na política contra drogas. O texto agora prevê e facilita a internação involuntária de usuários de droga, quando ocorre sem o consentimento.
A lei diz que ela se dará a pedido de familiar ou do responsável legal ou, na absoluta falta deste, de servidor público da área de saúde, da assistência social ou dos órgãos públicos integrantes do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad), com exceção de servidores da área de segurança pública.
A internação involuntária só deverá ocorrer após a formalização da decisão por médico responsável, será indicada depois da avaliação sobre o tipo de droga utilizada, o padrão de uso e na hipótese comprovada da impossibilidade de utilização de outras alternativas terapêuticas previstas na rede de atenção à saúde.
Esse tipo de internação perdurará apenas pelo tempo necessário à desintoxicação, no prazo máximo de 90 dias, tendo seu término determinado pelo médico responsável. No entanto, a nova lei permite à família ou ao representante legal, a qualquer tempo, requerer ao médico a interrupção do tratamento.
A decisão é polêmica, e libertários ficam arrepiados com a possibilidade de abuso de poder por parte das autoridades. Afinal, por essa ótica, só quem efetivamente comete um crime ou representa uma ameaça direta à sociedade deveria sofrer coerção estatal.
Para o especialista em Direito da Medicina e professor da Universidade Positivo (UP) Gabriel Schulman, do ponto de vista legal, no Brasil só é possível tirar a liberdade de alguém para punir ou para tratar.
“A minha preocupação é até que ponto essas mudanças vão dar conta, porque a lei fala em desintoxicação. O que faz a pessoa usar a droga, não é a droga. A questão não é tratar a droga, mas de atender a pessoa, as necessidades que fizeram fazer o uso nocivo”, explica.
Schulman entende que a internação sem o consentimento deve ocorrer em casos específicos, com o único objetivo de tratar a saúde do dependente.
“Internação forçada significa, estritamente, a restrição à liberdade da opção do tipo de tratamento. É medida que, a princípio, não se justifica. A finalidade tem que ser protetiva, não de segregação. Ao longo do tratamento eu tenho que assegurar a liberdade máxima possível”, comenta.
Para ele, a pessoa pode e deve ter acesso ao plano individual de atendimento – uma novidade na lei, que prevê avaliação multidisciplinar, objetivos e atividades de reintegração social com a participação de familiares ou responsáveis.
O especialista alerta sobre a possibilidade da família ter a decisão sobre o que fazer com o dependente. “A gente está tratando o usuário ou se livrando de um incômodo. Quanto mais você invade [a liberdade], mais tem que proteger. Em alguns casos cabe internação? Sim, mas nem sempre”, explica.
De acordo. É preciso tomar muito cuidado com abusos, como nos casos antigos de manicômios também. Mas o abuso não deve tolher o uso, princípio básico do direito. O ponto de vista libertário ignora, em minha opinião, a condição concreta de certos indivíduos, como se eles tivessem de fato a capacidade de escolha.
Entendo o argumento libertário, e o respeito. Mas meu lado conservador e pragmático fala mais alto aqui. Sou autor, afinal, de Confissões de um ex-libertário. Quando vemos o que acontece na Cracolândia em SP, ou no skid row em Los Angeles, espalhando sujeira, ratos e doenças pelas cidades, seringas usadas no meio da rua onde brincam crianças, o realismo precisa se impor.
Há, como fica claro, várias restrições ao uso da coerção pelo estado. Mas no limite entendo que há casos, sim, em que somente uma internação involuntária pode surtir efeito, proteger o próprio indivíduo e também a sociedade. Não é como no filme “Minority Report”, tampouco é arbítrio puro contra inocentes. A lei pune quem dirige de forma irresponsável, por exemplo, mesmo que o excesso de velocidade em si não tenha causado vítimas, ainda.
Para a presidente da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas (ABEAD), Sabrina Presman, a internação involuntária deve ser realizada em casos específicos e acompanhada, de perto, pelas autoridades. “É uma forma de preservar à vida, sem dúvida. Deixar uma pessoa se matando, sem condições psiquiátricas, sem autopreservação, sem tratamento, isso sim é afronta aos direitos humanos.”
Sabrina pondera sobre a aplicação em situações de extrema gravidade. “Não é pra qualquer paciente, uma modalidade pra internar uma pessoa que não queira. É uma forma de salvar a vida dela quando não tem condição, seja pela doença psiquiatra, seja pelas drogas”, opina.
Essa mudança na lei, portanto, é uma medida desesperada para uma situação de emergência. Um viciado em crack ou heroína que está perambulando por vias públicas sem qualquer capacidade de uso racional de suas faculdades perdeu o direito à liberdade, assim como a única forma de familiares ajudarem um dependente químico muitas vezes é a internação forçada. São valores conflitantes, dilemas morais, e por isso polêmicos. Devemos evitar as conclusões muito binárias e simplistas aqui.
Os fanáticos acham, porém, que só existe um único princípio válido, uma pedra filosofal que deve nortear tudo na vida em sociedade. Não é tão simples assim, e ninguém deixa de ser liberal só porque acredita que o estado tem alguns direitos sobre o cidadão que abandonou sua própria volição, sua capacidade de escolher. A medida sancionada pelo presidente é polêmica, sem dúvida. Mas eu apoio!
08 de junho de 2019
Rodrigo Constantino, Gazeta do Povo, PR
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