"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

UMA BREVE DEFESA DO CROMOSSOMO Y

O conceito de igualdade foi carregado nas costas do homem branco

O poderoso de Hollywood vê uma reportagem que exalta partes corporais de uma atriz iniciante, manda chamá-la para um teste, pede para ver as tais partes. Tornam-se amantes, e ela aparece em muitos filmes dele.

Harvey Weinstein ou Cecil B. DeMille? O segundo, é claro. A atriz era Julia Faye e a parte anatômica eram os pés, fetiche do diretor de ego de proporções bíblicas, como seus filmes mais conhecidos. Era também republicano, macarthista (amigo do Joe McCarthy original) e até antissemita, pelo menos antes de descobrir que a mãe era de origem judia. “Vocês estão aqui para me agradar, nada mais interessa”, dizia, à la Trump, para atores e extras, a quem tratava com igual desprezo, passando-lhes sermões de horas (“Posso deixar Jesus se sentar? Estou segurando ele há um tempão”, pediu numa dessas “fideladas” o intérprete cansado de Judas Iscariotes em Rei dos Reis).

Quem se lembra dessas coisas certamente não falou nada durante a festa de premiação do cinema em que muitas das mulheres mais lindas do planeta usaram vestido preto para enterrar o Homo hollywoodianus branco e eleger a apresentadora negra Oprah Winfrey, contemplada com o prêmio que leva o nome de DeMille, como a próxima presidente dos Estados Unidos. Dificilmente as muitas contradições desse espetáculo da elite da beleza e da fama teriam resumo mais realista do que o comentário de um leitor algo exasperado diante dos decotes até a cintura das militantes mulheres de preto: “Elas mostram os peitos e não querem que a gente olhe”.

No mundo habitado pela “gente”, um decote infinito numa mulher bonita desencadeia olhares e talvez até alguma ­outra coisa, mas as noções fundamentais do que é certo e do que é errado, geralmente “como meu pai ensinou”, não permitem que o envolvido faça alguma coisa mais séria do que a si mesmo de bobo. Quanto mais enraizadas essas noções, que também podem ser chamadas de superego, mais os homens são seguros de si mesmos e do papel que a força física superior lhes confere. Proteger os mais fracos e até se sacrificar por eles não são responsabilidades fáceis. Faça-se o “teste do Titanic”. Das 2 200 pessoas a bordo, salvaram-se 700. Entre as 425 mulheres, foram 316 sobreviventes. Dos 1 690 homens, 338. Leonardo DiCaprio não estava entre eles.

Em defesa do cromossomo Y — descoberto por uma mulher, a bióloga americana Nettie Stevens —, também não custa lembrar o arco histórico que começa em algum ponto da Grécia antiga e desemboca nos conceitos contemporâneos de igualdade. No lugar onde nasceram a democracia, a filosofia e os fundamentos do pensamento científico, as mulheres ficavam trancadas no gineceu e todo homem com alguma posição social só queria saber de seu paidika, ou seu garoto. Tipo o roteirista bonitão por quem a atriz decadente Norma Desmond se apaixona e que termina assassinando em Crepúsculo dos Deuses, o filme em que DeMille faz o papel de si mesmo. Sem os cromossomos Y e sua extraordinária trajetória no mundo ocidental, seria possível uma mulher protagonizar em 1950 a autorreferente versão hollywoodiana de uma tragédia grega?


15 de janeiro de 2018
Vilma Gryzinski, Revista VEJA

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