"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

domingo, 28 de janeiro de 2018

DELÍRIOS TROPICAIS

RIO — Seguir na estrada um longo julgamento como o de Lula é curioso. Há momentos em que a internet vai para o espaço e as emissoras de rádio desaparecem com zumbidos e estalos insuportáveis. O interessante é ouvir muitos programas diferentes, na medida em que passamos pelo raio de ação das emissoras. Não é a mesma coisa que a Coreia do Norte, onde aquela mulher com trajes típicos anuncia os foguetes de Kim Jong-un. A cobertura é bem desconstraída, até um pouco vaga. Num dos programas, o comentarista reclamava: o juiz está chamando cozinha de kitchen, usando a palavra em inglês.

Imediatamente, alguém vem em socorro e explica que Kitchen é marca da cozinha, a mesma comprada para o tríplex de Guarujá e o sítio de Atibaia, ambos atribuídos a Lula. Em seguida, começam as projeções. Alguns calculam que os recursos vão demorar tanto que Lula poderá ser presidente antes de todos serem julgados.

Isso não confere com minha visão. Mas o que fazer? Havia também uma grande excitação sobre o resultado, algo que para mim era previsível, tanto que já tinha escrito sobre essa novela e esperava o seu fim para que se possa discutir o que importa: a reconstrução do país.

O que senti ao longo do caminho, ouvindo fragmentos de debates, foi uma sensação de, para muitos comentaristas, a novela não pode acabar nunca. Os recursos, restam os recursos. Cada recurso será um capítulo à parte da novela e assim, segundo eles, vamos ter confusão até o fim da campanha de 2018.

Tinha de escrever dois artigos à noite. Fiquei temeroso: será que minha visão não é simples demais? Esperava esse resultado, achava-o um desfecho previsível apesar de toda a marola do PT. Já tinha a experiência do depoimento de Lula em Curitiba. Tudo normal.

Num tema tão emocionalmente carregado como esse, era natural que a fronteira do delírio fosse muitas vezes transposta. Gleise Hoffman, por exemplo, teve visões. Conseguiu achar um cartaz pro Lula na torcida do Bayern. Na verdade, era um cartaz escrito Forza Luca, um torcedor que está internado. O deputado cearense José Guimarães viu ônibus levando apoiadores de Lula da fronteira, mas eram apenas ônibus transportando sacoleiros.

Mas os comentaristas não estão livres de alucinações. Uma delas é imaginar um presidente dirigindo o país da cadeia.

No fim da tarde, a maneira como descreviam o resultado de 3 a 0 me desconcertava. Como escrever artigos daqui a pouco? Entendi que Lula foi condenado por unanimidade. Ouvi, e nesse momento o som do rádio estava audível, que ele deve cumprir a pena na prisão.

Como interpretar frases como essa: com essa condenação o destino eleitoral de Lula ficou incerto? Para um viajante na estrada, com pouca conexão, a tendência é achar que uma pessoa condenada a 12 anos de cadeia tem um destino muito mais definido do que a maioria dos mortais que circula em liberdade.

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Para mim, a leitura de uma condenação unânime e a conclusão de que a pena deve ser cumprida em regime fechado é o dado essencial. Os comentaristas davam uma volta nele, como se não existisse. Só tratavam da eleição de Lula e, com alguma volúpia, das confusões jurídicas que projetavam para o futuro.

Na estrada concluí que havia uma diferença de enfoque. Todos estavam concentrados na eleição de Lula. Mas o que está em jogo a curtíssimo prazo é a liberdade de Lula. Para que Lula continue representando o candidato que vai salvar o Brasil, é preciso que alguém o liberte. Nesse caso, as esperanças vão se voltar para o Supremo, mais especificamente Gilmar Mendes. Aí, sim, talvez tenha alguma emoção no futuro. O Supremo teria de mudar seu próprio entendimento para que Lula não fosse preso, após o julgamento em segunda instância.

Se isso acontecer, será a revelação final de como a instituição faz parte do sistema político e apodreceu velozmente com ele. A ideia de que a lei vale para todos vai ser contestada de uma forma pedagógica.

O Supremo teria de rever às pressas sua decisão, contrariar abertamente a sentença explícita do TR4. E afirmar que Lula não pode ser preso, exceto quando se esgotarem todos os recursos, inclusive no próprio Supremo. Vejo um cenário desse tipo com certa frieza. Afinal, como dizia Guimarães Rosa, o que tem de ser tem muita força. Alguns ministros, como Marco Aurélio Mello, já declaram que a prisão de Lula vai incendiar o país. Vai ficar mais claro ainda o papel do Supremo na degradação nacional e sua cumplicidade objetiva com a corrupção dos políticos.

Há sempre um incêndio no futuro. Na semana passada, era o resultado do júri. Agora, suas consequências. Muitas ameaças não cumpridas acabam sendo a única uma forma de argumentar. E ela fracassa quando se perde o medo de viver numa sociedade em que todos pagam pelos seus crimes.

Em vez de inventar uma saída para Lula, um Supremo com um mínimo de vergonha na cara deveria estar fechando a dos outros políticos, protegidos pelo foro privilegiado.


28 de janeiro de 2018
Fernando Gabeira, O Globo

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