O senhor deve ser da Inglaterra”, diz o vendedor de uma drogaria em Menlo Park, na Califórnia. E, quando me referi a Donald Trump, ele disse: “Bem, não vou começar a falar sobre como as coisas estão do seu lado do Atlântico. A sua Theresa May está sendo (palavrão) pelos burocratas em Bruxelas.”
Tenho de concordar. Comecei a comparar Brexit e Trump e a me perguntar o que é pior. A diferença, em primeiro lugar, está entre a loucura do Brexit britânico e a loucura do homem nos EUA. May pode ser uma pessoa rígida, inexpressiva e inexperiente, mas comparada com Trump ela se assemelha à Madre Teresa.
INSANIDADE – É o Brexit propriamente dito que é um ato de insanidade coletiva e autodestruição. A cada semana, novas evidências surgem do quão prejudicial ele será para todas as áreas da vida nacional e, principalmente, para a classe trabalhadora. Ela será a mais afetada pelo declínio que já é sentido dos ganhos reais.
Trump é um dos poucos políticos estrangeiros conhecidos que apoiou o Brexit, mas agora ele tem se aproximado mais do presidente francês, Emmanuel Macron, do que de May e até tem se calado sobre as glórias esperadas do Brexit. O que não significa que se tornou mais contido ou responsável. O homem que vimos durante a campanha era narcisista, misógino, indisciplinado, um tirano caprichoso. Nos seus seis primeiros meses na presidência, ele vem confirmando todos os epítetos.
Ele não conseguiu até agora fechar sua conta no Twitter. Em sua campanha contra a apresentadora da MSNBC, Mika Brzezinski, ele a qualificou de “maluca e com um baixo QI”, o que levou o comentarista neoconservador Bill Kristol a responder também pelo Twitter: “Caro @Donald Trump. Você é um porco. Atenciosamente, Bill Kristol.”
CHARLATÃO VULGAR – Mais recentemente, Trump denunciou no Twitter o próprio secretário de Justiça, Jeff Sessions, como se ele, que foi um dos seus principais apoiadores, agora estivesse do lado de Hillary Clinton. Diariamente, acordamos e pensamos: “Como esse charlatão vulgar pode ser presidente dos EUA?” O problema fundamental é o caráter desse indivíduo, mais do que sua ideologia e políticas. E, o que é surreal, agora há uma discussão séria quanto a se o presidente tem poderes para perdoar seus parentes, funcionários e ele próprio.
Mas, na loucura do homem nos EUA e na loucura do Brexit, do outro lado do Atlântico, alguns sintomas são similares, como também suas causas. Os danos que provocam não têm precedentes. Washington e Londres, capitais conhecidas no geral por seus governos estáveis e eficientes, hoje estão numa extraordinária confusão. Muitos cargos do alto escalão no Departamento de Estado, por exemplo, ainda estão vagos.
Não surpreende o fato de a chanceler alemã, Angela Merkel, afirmar que os europeus não podem mais confiar nos seus aliados do outro lado do Canal da Mancha e do Atlântico. Rússia e China riram o tempo todo durante a reunião do G-20, em Hamburgo, e depois o China Daily declarou, em sua página de capa, que “em meio às preocupações com o protecionismo americano e o Brexit, China e Alemanha devem liderar os esforços em favor da globalização e do livre-comércio”
SERÁ O FIM? – Então, este é o fim do Ocidente? Ou pelo menos do Ocidente anglo-saxônico? A primeira vez que ouvi o argumento de que a conjunção Trump e Brexit marcaria o declínio secular dos anglo-saxões foi da parte de um antigo primeiro-ministro finlandês e, desde então, tenho ouvido vários observadores externando a mesma opinião.
O século 19 pertenceu à Grã-Bretanha, o século 20 (pelo menos pós-1945), aos Estados Unidos. O neoliberalismo, que exerceu uma espécie de dominação ideológica global entre o fim da União Soviética, em 1991, e a crise financeira de 2008, é um produto anglo-saxão característico. E é a raiz do descontentamento generalizado e genuíno que os populistas exploraram para conquistar o poder na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. E o argumento continua, não sem alguma satisfação com as coisas que vão mal, especialmente na França.
Mas cuidado, meus amigos, com o que desejam. Vocês podem imaginar um século 21 não mais anglo-saxônico, gloriosamente iluminado pelas políticas esclarecidas de Emmanuel Macron e Justin Trudeau. No entanto, o Fortinbras que dominará a cena após a autodestruição do Hamlet anglo-saxão, provavelmente, terá o rosto de um Xi Jinping, Vladimir Putin ou Recep Tayyip Erdogan.
FUTURO IMPREVISÍVEL – De qualquer modo, este é um caso muito claro de interpretação prematura exagerada. Outro futuro ainda é possível. No ano passado, quando perguntei a um cientista político americano muito prestigiado como reagiria a um governo Trump, ele respondeu que seria um teste muito interessante do sistema político dos EUA.
Quando retomamos nossa conversa, na semana passada, na Universidade Stanford, concordamos que, até agora, o equilíbrio de poderes contemplado na Constituição parece estar funcionando. Os tribunais, por duas vezes, bloquearam lei que Trump sancionou sobre proibição de viagens. É impensável que a independência do Judiciário seja contestada como vem ocorrendo na Polônia. Amparada na grande tradição da 1.ª Emenda, a imprensa livre tem feito exatamente o que pretendiam os fundadores do país. Esse equilíbrio é mais frágil no campo da política externa, mas um Congresso dominado pelos republicanos acaba de aprovar lei ampliando as sanções contra Rússia, Coreia do Norte e Irã, tornando mais difícil, deliberadamente, para o presidente revogá-las.
Desde que Trump não entre em guerra com a Coreia do Norte, ou faça qualquer outra loucura equivalente, depois de quatro anos de uma presidência abominável, os EUA emergirão com sua democracia e sua reputação internacional combalidas, mas que poderão ser reparadas. A democracia britânica também vem funcionando à velha maneira parlamentar, produzindo uma real chance de que conseguiremos nos recuperar em tempo da loucura do Brexit, com uma saída da União Europeia mais branda – ou desistir da saída, como deveríamos. Isso não quer dizer que outros países não têm os próprios problemas. Sim, os anglo-saxões estão abatidos, e em grande parte em razão da sua própria e lamentável estupidez, mas é cedo para colocá-los fora do jogo.
(Timothy Garton Ash é professor de Estudos Europeus na Universidade Oxford, o artigo foi enviado por João Amaury Belem)
07 de agosto de 2017
Timothy Garton Ash
Estadão
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