"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

DISPUTA DE PODER

O episódio da prisão de membros da Polícia Legislativa do Senado acusados de estarem agindo para obstruir as investigações sobre senadores envolvidos na Lava-Jato é a explicitação de uma disputa entre o Ministério Público, a Polícia Federal e o Poder Legislativo, empenhado em aprovar uma legislação que limite as investigações.

Esses limites, segundo os parlamentares, são os da lei, que consideram estar sendo ultrapassada em muitos casos. Já o Ministério Público e o próprio juiz Sérgio Moro acham que os políticos querem colocar obstáculos ao combate à corrupção.

É provável que o presidente do Senado, Renan Calheiros, que responde a 9 processos no Supremo, a maioria ligada à Lava-Jato, faça reclamação ao STF pelo que teria sido invasão do Senado pela Polícia Federal.

A alegação oficial é que a ação da PF foi contra funcionários do Senado, que não têm foro privilegiado, e por isso ela tem validade apenas com a autorização de um juiz de primeira instância. Como, porém, diversos computadores e outros instrumentos eletrônicos foram apreendidos, é provável que informações sobre senadores venham a ser reveladas.

Nesse caso, a Polícia Federal pode alegar que é uma “prova achada”, isto é, que surgiu indiretamente de outra investigação, não devendo ser anulada, mas o Supremo certamente será chamado a decidir a disputa. Há rumores no Senado de que os integrantes da Polícia Legislativa faziam trabalhos paralelos que podiam incluir a vigilância de senadores por seus adversários políticos no próprio Senado.

Episódios recentes mostram como a disputa entre polícia do Senado e PF vem se agravando. Além do caso do apartamento da senadora Gleisi Hoffmann, que integrantes da Polícia Legislativa tentaram proteger impedindo a ação da PF, houve outro caso, mais grave.

Quando a Polícia Federal chegou à Casa da Dinda, onde reside o senador Fernando Collor, a Polícia Legislativa foi acionada e enviou para lá um batalhão de homens armados que tentaram impedir que computadores e outros documentos fossem retirados da residência, inclusive a frota de carros importados. Por pouco não houve confronto físico.

A ação da PF no Senado reforçou a iniciativa de aprovar lei contra o abuso de autoridade, que o MP considera um atentado à magistratura, comprometendo o combate à corrupção. O procurador Carlos Fernando dos Santos Lima disse ao “Estadão” que a lei sobre o abuso de autoridade representa um golpe contra a Lava-Jato: “A aprovação da lei de abuso de autoridade pode significar o fim da Lava-Jato; inclusive eu pessoalmente, se essa lei for aprovada, não vou continuar”.

Ele considera que o projeto pretende criar constrangimentos para quem investiga situações envolvendo pessoas poderosas, especialmente empresários e políticos. Com a aprovação da lei, Carlos Fernando diz que os investigadores serão ameaçados “por corruptos e bandidos em geral, porque vão estar expostos a todo tipo de retaliação”.

A atuação da Polícia Legislativa foi considerada a de uma “organização criminosa armada”, e os agentes presos estarão sujeitos às penas da lei 12.850, de 2 de agosto de 2013. As investigações indicam que ela atuava como uma “guarda pretoriana” ou, como registrei ontem na coluna, uma milícia a serviço da proteção dos senadores.

Por enquanto não há denúncia direta de que esse grupo obedecia a Renan, mas as investigações caminham nessa direção. Nesse caso, as malhas do § 2º do art. 2º da lei que trata da organização criminosa se abateriam sobre Renan, agravando ainda mais sua situação: “A pena é agravada para quem exerce o comando, individual ou coletivo, da organização criminosa, ainda que não pratique pessoalmente atos de execução”.

O artigo 2º, § 5º, esclarece: “Se houver indícios suficientes de que o funcionário público integra organização criminosa, poderá o juiz determinar seu afastamento cautelar do cargo, emprego ou função, sem prejuízo da remuneração, quando a medida se fizer necessária à investigação ou instrução processual”.

“Indícios”, diz o texto legal, e não provas. “Investigação”, e não ação penal. Se a Procuradoria-Geral da República, em resposta a uma provável reclamação do Senado, encaminhar ao STF pedido de afastamento de Renan da presidência da Casa, a crise institucional ganhará proporções perigosas.



26 de outubro de 2016
Merval Pereira, O Globo

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