"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

O LIVRO DO CAÇADOR DE CRETINICES E OUTRAS IMBECILIDADES

Saiu o livro do grande Celso Arnaldo: ‘Dilmês, o idioma da mulher sapiens’Celso Arnaldo Araújo 

“Dilmês: o idioma da mulher sapiens”, do jornalista Celso Arnaldo Araújo, acaba de chegar às livrarias já com jeitão de best seller e cara de clássico. 
Há muito tempo os leitores da coluna exigiam que o grande Celso Arnaldo, único PhD em dilmês do planeta, reunisse num livro os textos antológicos, publicados nesta coluna, inspirados no estranho dialeto falado pela presidente da República. 
Ele fez mais que isso. Reescreveu o que parecia irretocável e conseguiu aperfeiçoar o que parecia perfeito.
O cortejo de posts sobre o livro é aberto por uma esplêndida introdução feita pelo próprio autor. A entrada confirma que está começando um banquete. AN

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NO COMEÇO ERA O VERBO
Celso Arnaldo Araújo 
Tive ─ como é mesmo a palavra? ─ uma epifania. Até hoje não sei se palavra tão solene, geralmente reservada a súbitas descobertas filosóficas, pensamentos iluminados, revelações de altas manifestações do espírito, aplica-se realmente ao que senti naquele momento ─ até porque acho que nunca mais terei uma nova epifania diante de qualquer outro fenômeno. Pensando bem: só agora sei que tive mesmo uma epifania ao ouvir Dilma falando pela primeira vez. Lembro bem. Eu estava na cozinha, mais precisamente no fogão, misturando qualquer coisa. Ao lado da geladeira, a TV de 14 polegadas cumpria sua função de pano de fundo, sem merecer minha especial atenção. Mas o acaso ─ só pode ser ─ programou o velho aparelho. A voz que então vinha dele, ao longe, introduzia uma descoberta que, para mim, se transformaria num processo epistemológico ─ para empregar outra palavrinha que só se usa uma vez na vida.
Era uma senhora discorrendo sobre as maravilhas do pré-sal. Só fixei minha atenção e descobri do que ela falava porque a extraordinária forma daquela fala, que captei sem muito esforço, conduziu-me automaticamente ao conteúdo. Aí entra e tal epifania ─ o “súbito entendimento ou compreensão de algo” me fez interromper os trabalhos sobre o fogão e me concentrar na velha TV, depois de aumentar-lhe o volume no controle remoto. Então, a coisa começou a fazer sentido. Ou não.
Era um canal do governo, uma certa TV NBR, especializada em discursos, eventos e entrevistas oficiais para uma única audiência: o traço. Ganhou a minha atenção, naquele momento. Era setembro de 2009 ─ um domingo, creio. E uma senhora austera e altiva, de óculos e tailleur, num tom de voz acima do normal para o contexto, dava uma aula de PowerPoint de pré-sal a uma plateia de engravatados.
O tema exposto não era de meu especial interesse ─ o modo de exposição, sim. Aflorava, naquele momento epifânico, o instinto de quem, como jornalista de revista semanal por quase trinta anos, habituara-se a ouvir e captar os mais diversos padrões da sintaxe em língua portuguesa ─ de garranchos vocais a esculturas oratórias. Aquilo era diferente. Era fora do padrão.
Um ponto fora da curva. Não tenho a mais vaga lembrança de alguma sentença que tenha me chamado mais a atenção naquela exposição na TV oficial. Foi o conjunto da obra que impactou. A senhora do pré-sal dava a impressão de ir buscar seus raciocínios numa camada mais profunda que a do seu tema no dia ─ e o que vinha à tona não era nada bom. Aliás, era extraordinário. Frases que começavam, mas não terminavam, perdendo-se em rodeios desesperantes. Outras que terminavam mal tinham começado. Palavras que redundavam e se encavalavam, desafiando qualquer sequência. Enfim, a notável falta de clareza passava a impressão de uma especialista não especializada no tema que tentava explanar.
A estranheza foi ainda maior porque, em tese, ela era uma super-expert no assunto. Os créditos na base da tela da TV identificavam a oradora: Dilma Rousseff, chefe da Casa Civil do governo Lula e ex-ministra das Minas e Energia. Sim, a mesma Dilma que os cronistas políticos de Brasília já ventilavam como a candidata de Lula à sua sucessão ─ depois que a escolha mais natural, José Dirceu, fora alvejada de morte pelos desdobramentos do mensalão.
O fato é que saí muitíssimo mal impressionado de meu primeiro encontro com Dilma Rousseff. Concedi, porém, o benefício da dúvida a quem podia ser nossa primeira presidente mulher: fora um mau dia dela. Estava nervosa por algum motivo, só podia ser. Algo a perturbara, antes da palestra, afetando seu discurso. Uma autoridade desse nível, ex-ministra do pré-sal e de todas as outras energias, e agora uma espécie de chanceler dos subterrâneos do governo Lula, não poderia falar daquele jeito. Não demorou muito para, ouvindo-a em outros contextos, sobre os mais variados assuntos, concluir que a Dilma do pré-sal era a da superfície também.
A pré-candidata passou a ter em mim um fiel seguidor ─ em carne e osso, não nas redes sociais.
Um fenômeno clássico, na acepção kantiana do termo, é próprio do mundo como nós o experimentamos. A Dilma que publicamente passou a “experimentar” o Brasil com sua estranha novilíngua era um fenômeno. Em tese, uma pessoa que pensava o Brasil daquela forma não poderia comandar o país ─ mas isso não foi detectado na época pela mídia e pela oposição. Para mim, em particular, ouvir Dilma ─ sim, era eu ─ acabaria se tornando um hábito. Eu diria: uma obsessão com método.
Nos breves intervalos de minha atividade jornalística, passei a prestar atenção à agenda da provável candidata, que àquela altura cruzava o Brasil levando mensagens que não recomendariam um candidato a vereador em Centro do Guilherme, interior do Maranhão, onde 95,32% da população vive em extrema pobreza.
Uma porcentagem que equivalia a seus pensamentos. Como este: “Nós precisamos de uma coisa importante em nosso país, que é nossa autoestima. Olhar para nós mesmos e sabê (sic) que esse país conta fundamentalmente conosco.” Nessas pequenas pílulas da Dra. Dilma, estava a raiz do idioma que dali a meses passaria a governar o Brasil: palavras de um estrato mais culto, como “autoestima” e “fundamental”, pegando carona num pensamento indigente, que era a tônica de suas declarações, agravada por uma tendência a cacoetes de vulgarismo, como corruptelas (você = ocê) e o desprezo ao infinitivo dos verbos. Não era apenas, contudo, uma questão de gramática, mas de gestão. “Esse povo que pode e teve (sic) muitas vezes desempregado. Nós não queremos isso. Nós queremos todos os brasileiros empregados.”
Uma presidente que queria ver todos os brasileiros empregados, incluindo bebês de colo e pacientes de casas de repouso, acionaria automaticamente o sinal de alerta, ao estilo Apolo 13: “Brasília, temos um problema.”

Comecei a despachar esses “momentos Dilma” a Augusto Nunes, titular absoluto da seleção principal do jornalismo brasileiro ─ também um cultor da boa língua e um atento crítico da estupidez política, então assinando uma coluna de enorme repercussão no site da revista VEJA. Impressionado, ele passou a publicá-los como posts assinados por mim.
Dilma era uma fonte inesgotável. Com o tempo, não satisfeito em apenas coletar o que os jornais reproduziam, passei a pesquisar as atuações de Dilma em vídeos e áudios disponibilizados na internet. Perdi horas destrinchando discursos e entrevistas dela pelos rincões do Brasil ─ manifestações das quais, imagino, ninguém tomara conhecimento fora do Palácio. Àquela altura, admito, já havia sido estabelecida minha dependência mental ao dilmês, pelo que ele tem de mais fascinante: seu poder de empobrecer qualquer raciocínio.
Minhas breves notas sobre frases isoladas publicadas na coluna de Augusto Nunes transformaram-se, logo, em crônicas extensas, nas quais dissecava terríveis discursos e entrevistas dela, do bom-dia ao até logo. Em janeiro de 2010, o Portal do Planalto facilitou minha vida. Passou a publicar todos os discursos na íntegra ─ sem correções, além da eliminação dos vulgarismos. Sopa no mel. O material tornara-se abundante. E ainda mais convidativo. Eram vários discursos e incontáveis entrevistas por semana. E, em todos, tomava corpo uma hipótese: a indicação de Dilma à Presidência fora um grande equívoco. Um erro de pessoa.
Augusto transformou-me num personagem: o Caçador de Cretinices. O apelido traía um viés de humor ─ quase sempre involuntários ─ que meus textos incorporavam ao falar de Dilma. Depois, o titular da coluna também pespegou um apelido em Dilma ─ o Neurônio Solitário. Enfim, consagrou-se o nome do novo idioma da política brasileira: dilmês. Mas o humor, nesse caso, ia até certo ponto. Independentemente de suas aparições desastrosas, ela crescia nas pesquisas.
E, mesmo que no fundo torcesse para que aquilo fosse adiante, de tempos em tempos, durante o desenrolar da campanha, eu e Augusto ─ ele, na criação da maioria dos títulos de meus posts e também em textos próprios ─ passamos a dar um tom um pouco mais austero às exposições das dilmices.
Em 16 de maio de 2010, cinco meses antes do primeiro turno das eleições presidenciais, a coluna destacava: “Celso Arnaldo sobre Dilma Rousseff: a desmontagem da farsa exige mais que uma galhofa.”
Eu resumia:
Há oito meses, ouço tudo o que Dilma diz em público. Não lhe ouvi ainda uma frase inteligente. Um raciocínio límpido, criativo. Uma tirada esperta. Um jogo de palavras que faça sentido lógico e tenha algum requinte metafórico. Uma boa ideia própria. Uma resposta satisfatória e sincera. Um pensamento superior que denote em juízo superior sobre nossas mazelas e nosso futuro. Um cacoete de estadista. Uma réplica ferina.
E prossegui:
Só construções que não param de pé, o mais absoluto desconhecimento das leis básicas da argumentação e da articulação de modernos conceitos de estado. Uma incultura geral inédita entre pessoas públicas com curso superior. Não consegue reproduzir, sem erros grosseiros, máximas, ditados e aforismos que já fazem parte da psique popular. Em Dilma, nada se salva. Não domina nenhum tema, nada lhe é familiar.
Em primeiro de junho de 2010, Augusto intitulou assim a análise que fiz da participação de Dilma num fórum da revista Exame em que suas declarações, pela deturpação original, geraram polêmica: “O caçador de cretinices reconhece: ‘Definitivamente, o dilmês não é uma língua fácil.’” Falando nesse evento sobre o déficit da Previdência Social, que nem de longe seria amenizado em seu governo, Dilma afirmou: “Nós temos uma coisa que é uma vantagem. O tal do bônus demográfico, né, o tal do bônus demográfico nada mais é que isso: a sua população em idade ativa, idade de trabalhar, é maior que sua população dependente: o jovem, criança e velho.” Nesse instante, a reação de Dilma pareceu clara: percebera que o “velho” não caíra bem. E tentou emendar: “Mais de terceira idade, porque terceira idade tá ficando difícil, né, gente vai tê (sic) de estendê (sic) ela um pouco mais pra lá.”
Pânico na época: o “estendê ela” soou como um anúncio de que os “velhos” teriam de contribuir mais tempo com o INSS. Parece que não era isso. Foi uma tentativa de chiste de Dilma com sua própria idade ─ claro que malsucedida. O dilmês não é mesmo uma língua fácil.
Em 9 de julho de 2010, escrevi: “Quem é incapaz de dizer o que pensa não sabe pensar. Nem pode governar um país.” O texto abria com a primeira declaração de Dilma ao iniciar sua campanha paulista na Praça da Sé: “E não podia (sic) estarmos (sic) no melhor lugar. A poucos metros daqui, São Paulo cumeçô (sic).”
Consagrada no segundo turno, e após a primeira entrevista de Dilma ao Jornal da Band, publiquei em 5 de novembro de 2010: “A presidente eleita já não merece a leniência do sarcasmo que reservamos à candidata.”
Duas semanas depois, em 20 de novembro de 2010, a coluna retomava o humor, já que agora seriam quatro anos inevitáveis pela frente. Escrevi: “Dilma é uma fábula criada pela mente fantasiosa de LuLa Fontaine.” A conclusão do meu comentário parecia muito dura, mas era o que se avizinhava: “Dilma na Presidência, com essa gravíssima fragilidade mental, será joguete na mão da petralhada sedenta por mais oito anos de butim.”
Era a antevisão do predomínio da má forma de sua fala sobre o previsível conteúdo de seu governo.

Só no terceiro ano de seu primeiro mandato, a deformidade das ideias de Dilma passou a chamar a atenção de outras pessoas na rede. Começou por alguns blogs bem-humorados, como o do jornalista e radialista gaúcho Guilherme Macalossi, de Farroupilha, que criou a página Dilmês, no Facebook, reproduzindo as grandes gafes de Dilma. Enfim, o chocante idioma chegou à grande mídia. E em grande estilo: um editorial do Estado de S.Paulo, publicado em 21 de abril de 2013, com o título de “Dilmês castiço”. Escreveu o editorialista:
Já se tornou proverbial a dificuldade que a presidente Dilma Rousseff tem de concatenar ideias, vírgulas e concordâncias quando discursa de improviso. No entanto, diante da paralisia do Brasil e da desastrada condução da política econômica, o que antes causaria somente riso e seria perdoável agora começa a preocupar. O despreparo da presidente da República, que se manifesta com frases estabanadas e raciocínio tortuoso, indica tempos muito difíceis pela frente, pois é principalmente dela que se esperam a inteligência e a habilidade para enfrentar o atual momento do país. No mais recente atentado à lógica, à história e à língua pátria, ocorrido no último dia 16/4, Dilma comentava o que seu governo pretende fazer em relação à inflação e, lá pelas tantas, disparou: “E eu quero adentrar pela questão da inflação e dizer a vocês que a inflação foi uma conquista desses dez últimos anos do governo do presidente Lula e do meu governo”.
Encampado, enfim, pela grande imprensa, o dilmês deixava de ser um dialeto só conhecido dos frequentadores da coluna de Augusto Nunes para se tornar um “idioma” oficial. O que não quer dizer que tenha se enquadrado nos cânones da boa língua.
No dia 24 de setembro de 2015, quase cinco anos depois do triunfo nas urnas da fábula de LuLa Fontaine, Dilma Rousseff embarcou para Nova York. Pela quarta vez, abriria a Assembleia Geral da ONU, prerrogativa de um dirigente brasileiro desde 1948. Na decolagem do helicóptero presidencial do Palácio do Planalto para o hangar do Aerodilma no aeroporto de Brasília, câmaras que documentavam a partida registraram um princípio de incêndio numa das turbinas da aeronave. As chamas se apagaram em segundos e o helicóptero decolou, sem problemas. Foi um fogo assustador, embora fugaz, visto à noite por todo o Brasil nos jornais da TV.
Já em Nova York, uma sorridente Dilma chegava a seu hotel quando os repórteres quiseram saber se o susto fora grande. Ela não sabia de nada: “No meu helicóptero? Não. Hoje?”
Parecia não saber mesmo ─ melhor para Dilma, poupada do risco. Mas essa negativa da presidente, embora tenha causado alguma perplexidade, já que o Brasil inteiro vira a labareda, fugia à regra: não havia nela, surpreendentemente, um elemento, um toque de dilmês. É que a resposta não continha maiores problemas de sintaxe, nenhuma estranhamento. Mas, espere: nunca confie no dilmês, como o dilmês não confia no sujeito ─ como se verá ao longo destas páginas. O fecho da resposta de Dilma, esse sim, é dilmês puro. Antes de entrar no hotel e sair da visão dos jornalistas, culminou sua microentrevista com uma frase de três palavras, sendo duas iguais, embora com sentidos semânticos totalmente diferentes, e uma vígula entre elas: “Ninguém viu, viu?”
Um exemplo do espírito mais puro e castiço do dilmês que inspirou este livro.

14 de dezembro de 2015
Augusto Nunes

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