"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

ARTESANATO DA CANALHICE: DA FRAUDE AO AUTOENGANO


Ora, um sujeito tão afável e educado não há de ser tão mau...

O charme do canalha está em que a sua pertinácia é instintivamente assimétrica, maleável, táctil. Noutras palavras, o autêntico cafajeste nunca é tedioso porque não costuma percorrer o mesmo caminho duas vezes: muda-o de acordo com as conveniências do momento, até alcançar o sucesso em seus inescrupulosos planos. 
Afinal, ele precisa conhecer bem os incautos que escolhe a dedo e agir de maneira a não revelar jamais as suas verdadeiras intenções, embora as insinue para confundi-los com uma ambigüidade manejada psicologicamente com maestria. 
A sua arte é transformar em atraente mistério a duvida quanto à natureza do seu próprio caráter.
Esta cordialidade perene e sedutora do genuíno embusteiro é, porém, certo indício de que a sua alma está devotada ao malogro. 
Ele tempera o cinismo com imaculada simpatia, é prestativo, cortês e não costuma mostrar-se contrariado, pois isto denota fraqueza. 
Neste exato ponto é importante advertir o seguinte: serpenteante e criativo quando se põe a fraudar alguém, em contrapartida este inato sacripanta reage monocordicamente ao ser pego em flagrante delito, ou quando alguém o tem sob suspeita. 
Nestas ocasiões, com grande lábia ele tergiversa usando de palavras escorregadias, entredentes, se acaso pairam dúvidas sobre a sua conduta; ou nega tudo com total descaro, se por desgraça as evidências dos seus contos-do-vigário simplesmente o soterram. Negar sempre, eis o seu lema.
A hipocrisia com que age o típico canalha aponta para o fato de que ele ainda não ultrapassou a última barreira da moral, pois algo em sua alma ainda faz com que queira parecer bom — ao contrário do sujeito desavergonhado, o qual perdeu a noção de honra e também o filtro do pudor natural que impedia a degenerescência total do caráter. 
Este resquício de dignidade torna o canalha capaz de, eventualmente, verter lágrimas sinceras de compaixão, sentimento de que porém não se deixa impregnar, não obstante lhe dê certa vertigem de bondade, em doses homeopáticas suficientes para tornar a sua consciência leve. 
A possibilidade de uma boa ação totalmente desinteressada lhe dá nojo, é absurda e surreal como a imagem de unicórnios voadores. 
Mas a maldade em estado de pureza também o incomoda, razão pela qual tempera os malefícios com apaziguadoras auto-justificativas e usa da cordialidade como escudo psicológico protetor, para crer que não seria capaz de ultrapassar certos limites. 
Ora, um sujeito tão afável e educado não há de ser tão mau...
O problema maior do canalha está exatamente neste lastimável ponto de tangência: as suas habituais fraudes acabam por levá-lo a acreditar nas mentiras que, com ardilosa sutileza, passa a contar a si mesmo, ao ponto de embelezar retroativamente as más intenções e projetar sobre elas algo que, no futuro, as torne menos tangíveis e, portanto, melhor suportáveis. 
Assim vive o canalha até perder totalmente a bússola do senso de proporções, sem a qual a maldade transforma-se em loucura.
Quando numa sociedade — como a brasileira — o número desse tipo de malucos cresce em progressão geométrica, tenhamos a certeza de que a fraude, o furto e a mentira política acabarão, cedo ou tarde, consagrando-se na forma da lei.
Para apaziguar a consciência dos sem-consciência.

08 de outubro de 2015
Sidney Silveira
 é professor

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