Poucas vezes, talvez, a vida terá imitado tanto a arte como nos últimos dias na ilha de Kos, na Grécia, um recanto paradisíaco, para o qual afluem milhares de europeus, nos meses de verão no Hemisfério Norte, a fim de desfrutar uma temporada de hedonismo sob o esplendor do sol no mar Egeu. Sobretudo em tempos de xepa de feira na economia grega.
Mas, como na música de Gilberto Gil e do pessoal dos Paralamas, a novidade veio dar à praia, mostrando um mundo em que tudo é tão desigual: “de um lado este Carnaval, do outro, a fome total”.
As centenas de turistas que ali chegam querem ficar o máximo que puderem, relaxando da vida que consideram estressante. Mas Kos fica a apenas cinco quilômetros da costa turca. Tornou-se o caminho mais curto para se chegar à União Europeia para aqueles que fogem dos horrores da guerra e da miséria na Síria, no Iraque, no Afeganistão, na Palestina, no Curdistão, no Paquistão ou em Bangladesh.
ELDORADO ALEMÃO
Os imigrantes querem chegar a Kos, recompor as forças e prosseguir. Em busca de dias melhores; em busca de um sono tranquilo para seus filhos. Há muito caminho pela frente. Há que cruzar muitas fronteiras, até chegar à Alemanha, o Eldorado de liberdade e prosperidade, a despeito de neonazistas cada vez mais atrevidos…
O milagre risonho das sereias que seduziam os argonautas de Ulisses virou “um pesadelo tão medonho, ali naquela praia, ali naquela areia”. Sonhos despedaçados para cada lado. Os felizes poetas já não podem tomar um saboroso vinho ou sorver uma deliciosa dose de uzo em paz. Os esfomeados invadem a delegacia de polícia, logo ali, para conseguir a autorização de viagem. “No food, no water, no WC!”.
De um lado do porto, veleiros, hotéis e restaurantes luxuosos; do outro, tendas repletas de famílias exaustas, desesperadas.
Mas o “paradoxo estendido na areia” está do outro lado do canal. Muitos nem sequer conseguem chegar à ilha de Kos. Está estampado, ali na areia, na figura de um menino sírio, de 3 anos. O pequeno barco em que estava com seu irmão e seus pais não conseguiu vencer os cinco quilômetros de mar que os separavam de Kos.
O retrato de Aylan Kurdi, já sem vida, é a evidência do nosso fracasso como seres humanos. Tentaram antes emigrar para o Canadá. Foram recusados. Agora, os hipócritas daquele país concedem ao solitário pai o visto que não lhe serve senão para salvar sua própria vida.
CHEGARAM A KOS
Alguns tiveram mais sorte que a família do pequeno Aylan: chegaram a Kos. Com mais sorte, conseguirão suplantar o gás de pimenta dos soldados macedônios; com mais sorte ainda, atravessarão a pé a Sérvia; com mais e mais sorte, acharão uma brecha no arame farpado que quer impedir-lhes o acesso à Hungria; mais sorte será necessária para conseguir um traficante de pessoas que os faça cruzar a Áustria sem ser num baú frigorífico.
Por fim, chegarão à Alemanha, o paraíso. Com muita sorte, não serão molestados por arautos do racismo e da intolerância. É mais uma novidade na praia: o nazifascismo, quem diria, ainda não morreu.
12 de setembro de 2015
Sandra Starling
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