"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quarta-feira, 20 de maio de 2015

A METRÓPOLE BIOGRAFADA


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A infância modorrenta da Capital da Solidão, título do livro lançado em 2003, durou quase 350 anos, O século 19 agonizava quando o ajuntamento urbano que nasceu com o colégio dos jesuítas deixou de ser  “um vilarejo que só por acaso se chamava São Paulo”. Chegou à adolescência em 1900, ponto de partida de A Capital da Vertigem ─ Uma História de São Paulo de 1900 a 1954. 
No início do segundo volume da obra de Roberto Pompeu de Toledo, a cidade que se transformaria na maior da América Latina tem 239.820 habitantes e ainda perde para o Rio de Janeiro no ranking demográfico nacional. Mas já ganhava velocidade a assombrosa sequência de saltos e avanços no tempo e no espaço que, nas cinco décadas seguintes, apressariam a gestação do áspero colosso.
“A São Paulo cuja trajetória este livro acompanha começa preparando-se para o destino de metrópole e termina metrópole de pleno direito”, resume o autor na introdução. Os leitores que apertem os cintos para a atordoante viagem que vai do início do século 20 ao Quarto Centenário da megalópole que já não podia parar. Vertigem é pouco. 
A obra de Pompeu de Toledo ─ ainda em curso, para felicidade dos que se angustiam com o ponto final de livros admiráveis ─ é muito mais que uma história de São Paulo, como ressalva modestamente o título.
A continuação da saga da Capital da Solidão agora transformada em Capital da Vertigem reafirma à exaustão que cidade é feito gente. Todas nascem, crescem, sofrem, alegram-se. Têm pais, preceptores, babás, amigos e inimigos. Têm virtudes e defeitos. Erram, acertam, ganham musculatura, definham ─ mas pouquíssimas morrem. Ora com os freios nos dentes, ora obediente às vontades dos donos do poder, a cidade é um organismo vivo em permanente movimento. Filha e mãe, portanto duplamente incestuosa, RESERVA a alguns eleitos arrebatamentos amorosos que nem sempre são correspondidos. Por tudo isso, algumas não cabem em relatos de bons historiadores: merecem grandes biógrafos.
Cada parágrafo do livro de Pompeu de Toledo avisa aos berros que São Paulo encontrou o seu biógrafo nesse paulistano de sobrenome quatrocentão, formado em Direito pela Faculdade do Largo de São Francisco, que trocou as tardes nos tribunais pelas noites nas redações de jornais ou revistas. Sobretudo num Brasil saturado de repórteres desprovidos  de raciocínio lógico, redatores que tratam o idioma a pontapés e editores googledependentes, é quase ofensivo enxergar um mero jornalista onde se vê com nitidez o escritor de tão fina linhagem, que se entrega ao que faz com a determinação de um operário das letras.
“Ele é o melhor e mais aplicado pesquisador que conheci”, testemunha Suzana Camargo, uma notável especialista em pesquisas que participou das exumações que abrangem meio século. “Quase tudo ele descobre sozinho. Só pede o que tem cara de impossível”. As aparências enganam: nada parece faltar na procissão de revelações relevantes, divertidas, esclarecedoras, surpreendentes, inverossímeis, todas indispensáveis. No primeiro capítulo, por exemplo, convive-se páginas a fio com a figura paulistaníssima, e sem similares, do Conselheiro Antonio Prado. O prefeito aristocrata contracena com a mãe, Dona Veridiana, irmãos e filhos hoje pendurados nas placas com nomes de rua.
No capítulo que encerra essa viagem atordoante, celebra-se o Quarto Centenário em companhia de descendentes de nobres do Segundo Império e netos de imigrantes que reinam na indústria e no comércio. 
Entre a primeira palavra a última linha do livro, desfilam o dono do primeiro automóvel e a dona do primeiro bordel (assediada pelos primeiros fregueses), cirurgias arquitetônicas que sepultaram a paisagem provinciana, a inauguração do Teatro Municipal, os palacetes dos barões do café, os edifícios dos pioneiros da indústria, crimes passionais, a fundação do Corinthians, insurreições armadas, a República Velha e a que nasceu em 1930, muitos líderes populistas, poucos administradores de rara visão e mais, muito mais.
A biografia de uma cidade, ensina a obra de Pompeu de Toledo, só terá consistência se reforçada por biografias resumidas de personagens que moldaram o rosto, o destino e a alma da biografada.  
O primeiro arranha-céu da metrópole, por exemplo, é um monumento à incurável megalomania de Giuseppe Martinelli, um imigrante italiano que se tornara milionário no Brasil e fazia questão de que todos soubessem disso. O edifício erguido na década de 20 deveria ter cinco andares. Acabou com 30, cinco dos quais ocupados pela família do proprietário. 
Também a expansão da cidade registra as digitais de forasteiros decididos a fazer fortuna. Bairros como o Brás e a Mooca são filhotes das fábricas ali fincadas pelos industriais (e condes) Rodolfo Crespi e Francisco Matarazzo ─ que preferiu ver a vida passar das janelas do palacete na Avenida Paulista.
Ao contrário da lenda, Matarazzo não se valeu da moradia mitológica para para aproximar-se de potentados nativos que já sobraçavam bastões de mando quando a colônia ainda era dividida em capitanias hereditárias. 
O livro revela que a maioria dos casarões da Paulista abrigava famílias originárias do Líbano. Informações semelhantes promovem retoques históricos sempre bem-vindos. 
Um deles: Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Anita Malfatti e outros astros do evento ocorrido em 1922 eram efetivamente talentosos, mas a Semana de Arte Moderna não foi lá essas coisas. E Não teria feito tanto barulho se não fosse a vaia encomendada por Paulo Prado, um dos patrocinadores da ousadia, para deixar claro que aquela semana no Teatro Municipal não poderia ser enterrada na cova rasa da indiferença.
Barulhos de verdade foram os produzidos por greves, revoltas, rebeliões e, sobretudo, pelo que por pouco não se transformou na única guerra civil da história do Brasil: a Revolução Constitucionalista de 1932. 
Os episódios aqui mencionados, convém ressalvar, compõem um diminuto recorte do painel montado por Pompeu de Toledo.  O livro nada deve aos magníficos monumentos que se multiplicaram no período de que trata o segundo volume da biografia de São Paulo. E ainda falta o terceiro

20 de maio de 2015
AUGUSTO NUNES
Publicado na edição impressa de VEJA

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