"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

TERRORISMO, IMIGRAÇÃO E SOCIEDADE NA EUROPA

Não basta a França apregoar “liberté, egalité, fraternité e o laïcité”. É necessário desenvolver novas políticas de inclusão social 

O brutal atentado ao semanário francês Charlie Hebdo, na semana passada, em Paris, me trouxe um turbilhão de recordações e vivências. Como em um “filme cabeça” revivi fragmentos de imagens e experiências de minha vida e alguns episódios a que assisti, outros que eu li.

Lembrei-me dos meus tempos de lavador de pratos em um restaurante italiano na Inglaterra. Trabalhava muitas horas fazendo o que os italianos do restaurante não faziam: limpar banheiro, passar esfregão na cozinha e lavar pratos, copos, talheres e panelas.

Não era maltratado, ainda que, algumas vezes, tivesse que ser um pouco selvagem para não ser humilhado. Aliás, o choque da “selvageria” brasileira na Itália é bem contado por Rubem Fonseca em seu excelente romance O selvagem da ópera, sobre Carlos Gomes. Trata-se daquele olhar incômodo que traz certa imprevisibilidade de comportamento.

Adiante fui “cumin”, ajudante de garçom. Livrava a cara melhor do que no emprego anterior, porque enrolava no portunhol e o gerente do Pavillion era espanhol. Em minhas experiências como estudante e trabalhador em restaurantes e bares, senti que não era dali. Era um imigrante. Um estranho ao lado do ninho.

Em outras viagens pelo Velho Mundo, senti como me olhavam de lado nas paradas de bonde e de trem na Alemanha e na Suíça. Ou em alguns bares da Finlândia. Seria eu um turco? Ou um italiano do sul? Um latino-americano? Parecia. Ainda mais com a barba que cultivei por longos e longos anos.

Das experiências iniciais na Europa, me descobri apenas um rapaz latino-americano com pouco dinheiro no bolso, sem parentes importantes e vindo do interior. No caso, o Brasil, que fica em um canto mal-iluminado e periférico do mundo.

Prosseguindo no replay, relembrei uma cena dramática de deportação no Charles De Gaulle. Famílias chorando, urrando quando seus parentes eram devolvidos aos países de origem. Lembrei-me de meu avô paraibano, cujos traços faciais reencontrei nas vielas da Medina de Marrakesh. Talvez ele tivesse sangue berbere, quem sabe?

 
Mais atrás, recordei uma foto preto e branco em velha revista mostrando turcos descendo do avião e sendo recebidos com flores nos anos 50. Vinham para fazer o trabalho duro da reconstrução da Alemanha. Hoje, quando não estão jogando bola pela seleção germânica, são meio escanteados pelos próprios turcos e por alemães. 
 
Em flashes, minha mente voa para a cobertura jornalística das manifestações de 2005 e 2007 na França: imigrantes e filhos de imigrantes de países árabes e africanos entram em conflito com a polícia no banlieu, algo perto de nossas favelas na periferia de Paris. Guetos perigosos, reduto de marginais e radicais políticos e religiosos, com suas próprias regras e leis, fruto do fracasso da integração dos imigrantes na sociedade francesa.

Na minha memória surge Karim Benzema, do Real Madrid, astro francês de origem argelina, que não canta o hino francês quando joga pela seleção francesa, em protesto contra a discriminação e xenofobia da sociedade francesa. Aconteceu no Brasil em 2014 e foi motivo de polêmica. São os ecos do banlieu.

 
Por que falo de tudo isso que veio dos arquivos de minha memória num momento em que o mundo está chocado com o atentado ao Charlie Hebdo? Não existe uma desculpa para o que foi feito. Nem quero pôr a culpa na sociedade europeia e na sua relação com os imigrantes. Mas não tenho dúvida de que um dos componentes mais relevantes de toda a questão está na forma como a Europa lida com seus imigrantes e suas ex-colônias.
 
Em especial, a França, onde a religião muçulmana é a segunda do país, após o cristianismo, e que tem a maior comunidade muçulmana da Europa. São mais de 5 milhões de pessoas, a maioria esmagadora de gente ordeira, trabalhadora e pacífica frente aos pouco mais de mil jovens franceses que estão sendo treinados ou foram treinados por grupos terroristas.

Porém, o fracasso do Ocidente em enfrentar os desafios que vêm dos radicais do Oriente Médio não decorre apenas da incapacidade de vencer nos campos bélico e de inteligência. Está também, repito, na forma como a Europa se relaciona com seus imigrantes, ao lado de uma derrota fragorosa no campo da comunicação e da cultura. Não basta a França, que aqui aponto como exemplo do primeiro mundo ocidental, apregoar “liberté, egalité, fraternité e o laïcité”. É necessário desenvolver novas políticas de inclusão social e uma nova narrativa para suplantar a dialética do terror.


Membros da extrema-direita francesa protestam em Paris contra as políticas de imigração (Foto: Gonzalo Fuentes / Reuters)
Membros da extrema-direita francesa protestam em Paris contra as políticas de imigração (Imagem: Gonzalo Fuentes / Reuters)

15 de janeiro de 2015
in blog do noblat

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