Não basta a França apregoar “liberté, egalité, fraternité e o laïcité”. É necessário desenvolver novas políticas de inclusão social
O brutal atentado ao semanário francês Charlie Hebdo, na semana passada, em Paris, me trouxe um turbilhão de recordações e vivências. Como em um “filme cabeça” revivi fragmentos de imagens e experiências de minha vida e alguns episódios a que assisti, outros que eu li.
Lembrei-me dos meus tempos de lavador de pratos em um restaurante italiano na Inglaterra. Trabalhava muitas horas fazendo o que os italianos do restaurante não faziam: limpar banheiro, passar esfregão na cozinha e lavar pratos, copos, talheres e panelas.
Não era maltratado, ainda que, algumas vezes, tivesse que ser um pouco selvagem para não ser humilhado. Aliás, o choque da “selvageria” brasileira na Itália é bem contado por Rubem Fonseca em seu excelente romance O selvagem da ópera, sobre Carlos Gomes. Trata-se daquele olhar incômodo que traz certa imprevisibilidade de comportamento.
Adiante fui “cumin”, ajudante de garçom. Livrava a cara melhor do que no emprego anterior, porque enrolava no portunhol e o gerente do Pavillion era espanhol. Em minhas experiências como estudante e trabalhador em restaurantes e bares, senti que não era dali. Era um imigrante. Um estranho ao lado do ninho.
Em outras viagens pelo Velho Mundo, senti como me olhavam de lado nas paradas de bonde e de trem na Alemanha e na Suíça. Ou em alguns bares da Finlândia. Seria eu um turco? Ou um italiano do sul? Um latino-americano? Parecia. Ainda mais com a barba que cultivei por longos e longos anos.
Das experiências iniciais na Europa, me descobri apenas um rapaz latino-americano com pouco dinheiro no bolso, sem parentes importantes e vindo do interior. No caso, o Brasil, que fica em um canto mal-iluminado e periférico do mundo.
Prosseguindo no replay, relembrei uma cena dramática de deportação no Charles De Gaulle. Famílias chorando, urrando quando seus parentes eram devolvidos aos países de origem. Lembrei-me de meu avô paraibano, cujos traços faciais reencontrei nas vielas da Medina de Marrakesh. Talvez ele tivesse sangue berbere, quem sabe?
Mais atrás, recordei uma foto preto e branco em velha revista mostrando turcos descendo do avião e sendo recebidos com flores nos anos 50. Vinham para fazer o trabalho duro da reconstrução da Alemanha. Hoje, quando não estão jogando bola pela seleção germânica, são meio escanteados pelos próprios turcos e por alemães.
Em flashes, minha mente voa para a cobertura jornalística das manifestações de 2005 e 2007 na França: imigrantes e filhos de imigrantes de países árabes e africanos entram em conflito com a polícia no banlieu, algo perto de nossas favelas na periferia de Paris. Guetos perigosos, reduto de marginais e radicais políticos e religiosos, com suas próprias regras e leis, fruto do fracasso da integração dos imigrantes na sociedade francesa.
Na minha memória surge Karim Benzema, do Real Madrid, astro francês de origem argelina, que não canta o hino francês quando joga pela seleção francesa, em protesto contra a discriminação e xenofobia da sociedade francesa. Aconteceu no Brasil em 2014 e foi motivo de polêmica. São os ecos do banlieu.
Por que falo de tudo isso que veio dos arquivos de minha memória num momento em que o mundo está chocado com o atentado ao Charlie Hebdo? Não existe uma desculpa para o que foi feito. Nem quero pôr a culpa na sociedade europeia e na sua relação com os imigrantes. Mas não tenho dúvida de que um dos componentes mais relevantes de toda a questão está na forma como a Europa lida com seus imigrantes e suas ex-colônias.
Em especial, a França, onde a religião muçulmana é a segunda do país, após o cristianismo, e que tem a maior comunidade muçulmana da Europa. São mais de 5 milhões de pessoas, a maioria esmagadora de gente ordeira, trabalhadora e pacífica frente aos pouco mais de mil jovens franceses que estão sendo treinados ou foram treinados por grupos terroristas.
Porém, o fracasso do Ocidente em enfrentar os desafios que vêm dos radicais do Oriente Médio não decorre apenas da incapacidade de vencer nos campos bélico e de inteligência. Está também, repito, na forma como a Europa se relaciona com seus imigrantes, ao lado de uma derrota fragorosa no campo da comunicação e da cultura. Não basta a França, que aqui aponto como exemplo do primeiro mundo ocidental, apregoar “liberté, egalité, fraternité e o laïcité”. É necessário desenvolver novas políticas de inclusão social e uma nova narrativa para suplantar a dialética do terror.
15 de janeiro de 2015
in blog do noblat
Lembrei-me dos meus tempos de lavador de pratos em um restaurante italiano na Inglaterra. Trabalhava muitas horas fazendo o que os italianos do restaurante não faziam: limpar banheiro, passar esfregão na cozinha e lavar pratos, copos, talheres e panelas.
Não era maltratado, ainda que, algumas vezes, tivesse que ser um pouco selvagem para não ser humilhado. Aliás, o choque da “selvageria” brasileira na Itália é bem contado por Rubem Fonseca em seu excelente romance O selvagem da ópera, sobre Carlos Gomes. Trata-se daquele olhar incômodo que traz certa imprevisibilidade de comportamento.
Adiante fui “cumin”, ajudante de garçom. Livrava a cara melhor do que no emprego anterior, porque enrolava no portunhol e o gerente do Pavillion era espanhol. Em minhas experiências como estudante e trabalhador em restaurantes e bares, senti que não era dali. Era um imigrante. Um estranho ao lado do ninho.
Em outras viagens pelo Velho Mundo, senti como me olhavam de lado nas paradas de bonde e de trem na Alemanha e na Suíça. Ou em alguns bares da Finlândia. Seria eu um turco? Ou um italiano do sul? Um latino-americano? Parecia. Ainda mais com a barba que cultivei por longos e longos anos.
Das experiências iniciais na Europa, me descobri apenas um rapaz latino-americano com pouco dinheiro no bolso, sem parentes importantes e vindo do interior. No caso, o Brasil, que fica em um canto mal-iluminado e periférico do mundo.
Prosseguindo no replay, relembrei uma cena dramática de deportação no Charles De Gaulle. Famílias chorando, urrando quando seus parentes eram devolvidos aos países de origem. Lembrei-me de meu avô paraibano, cujos traços faciais reencontrei nas vielas da Medina de Marrakesh. Talvez ele tivesse sangue berbere, quem sabe?
Mais atrás, recordei uma foto preto e branco em velha revista mostrando turcos descendo do avião e sendo recebidos com flores nos anos 50. Vinham para fazer o trabalho duro da reconstrução da Alemanha. Hoje, quando não estão jogando bola pela seleção germânica, são meio escanteados pelos próprios turcos e por alemães.
Em flashes, minha mente voa para a cobertura jornalística das manifestações de 2005 e 2007 na França: imigrantes e filhos de imigrantes de países árabes e africanos entram em conflito com a polícia no banlieu, algo perto de nossas favelas na periferia de Paris. Guetos perigosos, reduto de marginais e radicais políticos e religiosos, com suas próprias regras e leis, fruto do fracasso da integração dos imigrantes na sociedade francesa.
Na minha memória surge Karim Benzema, do Real Madrid, astro francês de origem argelina, que não canta o hino francês quando joga pela seleção francesa, em protesto contra a discriminação e xenofobia da sociedade francesa. Aconteceu no Brasil em 2014 e foi motivo de polêmica. São os ecos do banlieu.
Por que falo de tudo isso que veio dos arquivos de minha memória num momento em que o mundo está chocado com o atentado ao Charlie Hebdo? Não existe uma desculpa para o que foi feito. Nem quero pôr a culpa na sociedade europeia e na sua relação com os imigrantes. Mas não tenho dúvida de que um dos componentes mais relevantes de toda a questão está na forma como a Europa lida com seus imigrantes e suas ex-colônias.
Em especial, a França, onde a religião muçulmana é a segunda do país, após o cristianismo, e que tem a maior comunidade muçulmana da Europa. São mais de 5 milhões de pessoas, a maioria esmagadora de gente ordeira, trabalhadora e pacífica frente aos pouco mais de mil jovens franceses que estão sendo treinados ou foram treinados por grupos terroristas.
Porém, o fracasso do Ocidente em enfrentar os desafios que vêm dos radicais do Oriente Médio não decorre apenas da incapacidade de vencer nos campos bélico e de inteligência. Está também, repito, na forma como a Europa se relaciona com seus imigrantes, ao lado de uma derrota fragorosa no campo da comunicação e da cultura. Não basta a França, que aqui aponto como exemplo do primeiro mundo ocidental, apregoar “liberté, egalité, fraternité e o laïcité”. É necessário desenvolver novas políticas de inclusão social e uma nova narrativa para suplantar a dialética do terror.
Membros da extrema-direita francesa protestam em Paris contra as políticas de imigração (Imagem: Gonzalo Fuentes / Reuters)
15 de janeiro de 2015
in blog do noblat
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