"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

terça-feira, 28 de outubro de 2014

COMO VAI ACABAR O CAPITALISMO?

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O epílogo de um sistema em desmantelo crônico
por Wolfgang Streeck
 
Mais do que em qualquer momento desde o fim da Segunda Guerra Mundial, há hoje em dia um sentimento generalizado de que o capitalismo está em estado crítico. Em retrospectiva, a crise de 2008 foi apenas a mais recente de uma longa sequência iniciada em meados da década de 70, com o fim da prosperidade do pós-guerra.
Cada crise mostrou-se mais grave do que a anterior, alastrando-se mais ampla e rapidamente por toda a economia global, cada vez mais interligada. O surto de inflação dos anos 70 foi seguido pelo aumento da dívida pública nos anos 80, e o ajuste fiscal dos anos 90 se fez acompanhar por um acentuado aumento da dívida do setor privado. Já faz quatro décadas que o desequilíbrio tem sido mais ou menos a condição normal do mundo industrial avançado, tanto em nível nacional como global.

Com o tempo, as crises do modelo do pós-guerra nos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)[1] se tornaram tão recorrentes que não são mais vistas como meramente econômicas; elas resultaram na redescoberta da antiga noção de “sociedade capitalista” – do capitalismo como uma ordem social e um modo de vida que depende visceralmente do progresso ininterrupto da acumulação de capital privado.

Os sintomas da crise são muitos, mas predominam três tendências de longo prazo nas trajetórias dos países ricos altamente industrializados – ou melhor, cada vez mais desindustrializados. A primeira é um declínio persistente da taxa de crescimento, agravado pelos acontecimentos de 2008. A segunda, associada à anterior, é um aumento também persistente do endividamento total nos principais países capitalistas, onde governos, famílias, empresas e bancos vêm acumulando passivos financeiros nos últimos quarenta anos. A terceira tendência, enfim, consiste no recrudescimento, já há várias décadas, da desigualdade, tanto de renda como de riqueza.

O crescimento constante, a moeda estável e um mínimo de igualdade social, disseminando alguns benefícios do sistema para os que não têm capital, por muito tempo foram considerados pré-requisitos para uma economia política capitalista conseguir a legitimidade de que precisa. Nesse sentido, o mais alarmante é que as tendências críticas mencionadas podem estar se reforçando mutuamente.

Crescem os indícios de que o aumento da desigualdade pode ser um dos fatores do declínio do crescimento, pois a desigualdade trava as melhorias na produtividade e também enfraquece a demanda. O baixo crescimento, por sua vez, reforça a desigualdade ao intensificar a disputa pelos recursos – o chamado conflito distributivo –, tornando mais custosas aos ricos as concessões aos pobres, e fazendo com que os primeiros insistam mais do que nunca na estrita observância do “Efeito Mateus” que rege os mercados livres: “Ao que tem muito, mais lhe será dado e ele terá em abundância; mas ao que não tem, até mesmo o pouco que lhe resta lhe será tirado.”[2]

Além disso, o endividamento crescente, ao mesmo tempo que não consegue deter a redução do crescimento, torna-se mais um componente da desigualdade devido às mudanças estruturais associadas à financeirização da economia – financeirização esta, no entanto, que visava compensar os assalariados e consumidores pelo aumento da desigualdade de renda causada pela estagnação dos salários e pelos cortes nos serviços públicos.

Isso que parece ser um círculo vicioso de tendências nocivas pode continuar para sempre? Ou existem forças contrárias capazes de romper esse círculo? E o que acontecerá, como assistimos há quase quatro décadas, se essas forças contrárias não se materializarem?

Os historiadores nos informam que as crises não são uma novidade para o capitalismo, e podem até ser necessárias para sua saúde em longo prazo. Mas eles estão falando de movimentos cíclicos ou choques aleatórios, após os quais as economias conseguem um novo estado de equilíbrio, pelo menos temporário.
O que estamos vendo, porém, parece ser um processo contínuo de decadência gradual, lento mas aparentemente inexorável. Recuperar-se de um processo de purificação [Reinigungskrise, em alemão] eventual é uma coisa; interromper o encadeamento de tendências de longo prazo é outra bem diferente.
Admitindo que um crescimento cada vez menor, uma desigualdade cada vez maior e o endividamento sempre crescente não sejam sustentáveis indefinidamente – e podem, juntos, resultar numa crise de natureza sistêmica, cujas características temos dificuldade de imaginar –, será que podemos vislumbrar sinais de uma recuperação iminente?
 
Seis anos se passaram desde o auge dessa sequência de crises do pós-guerra. Enquanto a lembrança do abismo de 2008 ainda estava fresca na memória, foram muitas as demandas por “reformas” para evitar nova recaída. Conferências internacionais e reuniões de cúpula de todo tipo se sucederam, mas quase nada resultou desses encontros. Enquanto isso, o setor financeiro, berço do desastre, apresentou uma recuperação completa: lucros, dividendos, salários e bônus para os executivos retornaram ao ponto em que estavam, enquanto uma regulação mais estrita ficou atolada nas negociações internacionais e no lobby doméstico.

Os governos, sobretudo o dos Estados Unidos, continuaram sob o controle das indústrias de fazer dinheiro. Estas, por sua vez, estão sendo generosamente abastecidas de dinheiro barato, criado a partir do nada, para benefício delas, por seus amigos nos bancos centrais; elas então acumulam esse dinheiro, ou investem na dívida pública. O crescimento continua anêmico, assim como os mercados de trabalho; a emissão sem precedentes de dinheiro não conseguiu alavancar a economia; e a desigualdade está alcançando níveis cada vez mais impressionantes, já que o parco crescimento foi apropriado pelo 1% mais rico – e a parte do leão por uma pequena fração destes.

Parece haver poucas razões para ser otimista. Já faz algum tempo que o capitalismo nos países ricos vem se mantendo por meio de injeções generosas de dinheiro sem lastro, sob uma política de expansão monetária cujos arquitetos sabem, melhor do que ninguém, que não pode continuar para sempre.

Várias tentativas foram feitas em 2013 para largar o vício, no Japão e nos Estados Unidos, mas, quando as Bolsas despencaram em resposta à possibilidade de redução gradual do relaxamento monetário, as diligências foram engavetadas.
Em meados de junho último, o Banco de Compensações Internacionais (BIS), na Basileia, Suíça – a mãe de todos os bancos centrais –, declarou que o relaxamento monetário precisava chegar ao fim. Embora ele tenha sido necessário para “evitar o colapso financeiro”, agora era preciso “fazer com que as economias ainda fracas voltem a um crescimento forte e sustentável”, disse o bis em seu relatório anual. Isso, no entanto, estava além das atribuições dos bancos centrais, que:

... não podem implementar as reformas estruturais necessárias para fazer com que as economias retomem o caminho do crescimento real. [...] O que a ação dos bancos centrais conseguiu foi comprar tempo.[...] Mas esse tempo não foi bem empregado, já que os juros baixos e as políticas não convencionais favoreceram o adiamento da redução das dívidas do setor privado, o financiamento dos déficits do governo, e a postergação das reformas necessárias na economia real e no sistema financeiro, por parte das autoridades. Afinal, o dinheiro barato torna mais fácil pedir emprestado do que economizar, mais fácil gastar do que tributar, mais fácil manter tudo como está do que mudar.

O Federal Reserve, o banco central americano, aparentemente tinha essa mesma opinião quando seu presidente era Ben Bernanke, que deixou o cargo no começo deste ano.
No início do segundo semestre de 2013, o banco parecia, mais uma vez, sinalizar que a época do dinheiro fácil estava com os dias contados. Em setembro do ano passado, porém, o esperado retorno às taxas de juros mais altas foi novamente adiado porque “a economia” parecia menos “forte” do que se esperava.

A verdadeira razão, é claro, pela qual é tão difícil retomar as políticas monetárias mais convencionais é que uma instituição internacional como o bis tem mais liberdade de falar o que pensa do que um banco central nacional, politicamente mais exposto. Nas atuais circunstâncias, a única alternativa para sustentar o capitalismo por meio de injeções ilimitadas de dinheiro é tentar reanimá-lo por meio da reforma econômica neoliberal, como resume bem o segundo tópico do Relatório Anual do BIS 2012-13: “Aumentar a flexibilidade: uma chave para o crescimento.”

Em outras palavras, um remédio amargo para muitos, combinado com maiores incentivos para poucos – e mesmo isso dificilmente pode ser considerado promissor em países como os Estados Unidos e o Reino Unido, onde é difícil detectar quais reformas neoliberais ainda há para implementar.
 
E aqui que a discussão sobre a crise e o futuro do capitalismo moderno deve se voltar para a política democrática. O capitalismo e a democracia por muito tempo foram considerados adversários, até que os arranjos do pós-guerra pareceram reconciliá-los. Já bem entrado o século XX, os detentores do capital ainda temiam que as maiorias democráticas fossem abolir a propriedade privada, enquanto os trabalhadores e suas organizações receavam que os capitalistas financiassem recaídas autoritárias em defesa de seus privilégios.

Só na Guerra Fria o capitalismo e a democracia pareciam alinhados, pois o progresso econômico permitiu que o grosso da classe trabalhadora aceitasse um regime de livre mercado e propriedade privada. Hoje, porém, as dúvidas sobre a compatibilidade entre uma economia capitalista e um sistema político democrático voltaram com força total.
Entre as pessoas comuns, disseminou-se não só o sentimento de que a política não faz diferença em suas vidas, como a percepção de que a classe política, cada vez mais fechada em si mesma – unida na afirmação de que “não há alternativa” para ela e suas políticas –, é incompetente e corrupta. Daí a queda na participação eleitoral combinada à alta volatilidade do eleitorado, produzindo resultados cada vez mais fragmentados – devido à ascensão de partidos “populistas” de protesto – e a instabilidade generalizada dos governos.

A legitimidade da democracia no pós-guerra se baseava na premissa de que os Estados eram capazes de intervir nos mercados e corrigir seus resultados, no interesse dos cidadãos. Décadas de desigualdade crescente – bem como a impotência dos governos antes, durante e depois da crise de 2008 – lançaram dúvidas sobre essa ideia. Em resposta a sua crescente irrelevância numa economia de mercado global, governos e partidos políticos nas democracias da OCDE assistiram à transformação da “luta de classes democrática” num circo de mídia, num entretenimento pós-democrático.

Enquanto isso, a passagem da economia política capitalista, do keynesianismo do pós-guerra para o hayekianismo neoliberal,[3] transcorreu sem dificuldades: a fórmula política para o crescimento econômico por meio da redistribuição de cima para baixo foi substituída por outra que espera promover o crescimento por meio da redistribuição de baixo para cima.
A democracia igualitária, antes considerada economicamente produtiva, passou a ser vista como um empecilho à eficiência. Para o hayekianismo contemporâneo, mercados protegidos das distorções das políticas redistributivas trazem mais crescimento.
 
Um tópico-chave da retórica antidemocrática vigente é a crise fiscal do Estado contemporâneo, tal como vista no aumento espantoso da dívida pública desde a década de 70.[4] Esse aumento é atribuído a uma maioria do eleitorado que vive acima das suas posses, explorando o “fundo comum” de suas sociedades, e a políticos oportunistas que compram o apoio de eleitores míopes com um dinheiro que não têm.

A crise fiscal, porém, não foi determinada por um excesso de democracia redistributiva, como se pode constatar pela coincidência do acúmulo da dívida pública com um declínio na participação eleitoral, sobretudo entre as pessoas de menor renda. E mais: o acúmulo da dívida pública acompanhou o enfraquecimento da sindicalização, o desaparecimento das greves, os cortes no Estado de bem-estar e o crescimento disparado da desigualdade de renda.

Por outro lado, a queda dos níveis gerais de tributação e o caráter cada vez mais regressivo dos impostos – como resultado de “reformas” na tributação das empresas e das faixas superiores de renda – colaboraram para a deterioração das finanças públicas. E, ao substituir as receitas tributárias pela dívida, os governos contribuíram ainda mais para a desigualdade, oferecendo oportunidades de investimento seguro para aqueles cujo dinheiro eles já não queriam, ou não podiam, confiscar – ao contrário, passaram a pedir emprestado esse dinheiro. Diferentemente de quem paga impostos, quem compra títulos do governo continua a possuir aquilo que pagou ao Estado; cobra juros sobre esses papéis, que também podem ser transmitidos como herança para os filhos.

Além disso, o aumento da dívida pública pode ser – e está sendo – utilizado politicamente para defender cortes nos gastos do Estado e a privatização dos serviços públicos, restringindo ainda mais a intervenção democrática redistributiva na economia capitalista.

Nas últimas décadas, a economia de mercado foi beneficiada por mais proteções institucionais contra a interferência democrática. Os sindicatos estão em baixa no mundo todo, e em países como os Estados Unidos foram quase erradicados. A política econômica ficou basicamente nas mãos de bancos centrais independentes – desobrigados de prestar contas democraticamente e interessados ​​acima de tudo na saúde e na boa vontade dos mercados financeiros.
Nos países europeus, a política econômica, que abrange a fixação dos salários e a elaboração do orçamento, é cada vez mais governada por organismos supranacionais, como a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu, ambos fora do alcance da democracia popular. Isso efetivamente desdemocratiza o capitalismo europeu – sem, é claro, despolitizá-lo.

Ainda assim, as classes que dependem do lucro seguem duvidando que a democracia, mesmo em sua atual versão castrada, permita as “reformas estruturais” neoliberais necessárias para o regime se recuperar. Tal como os cidadãos comuns, embora por razões opostas, as elites estão perdendo a fé no governo democrático e em sua adequação para remodelar as sociedades conforme os imperativos do mercado. A teoria da “escolha pública”, segundo a qual a política democrática corrompe a justiça do mercado ao servir a políticos oportunistas e sua clientela, tornou-se consenso entre pessoas da elite assim como a convicção de que o capitalismo de mercado, expurgado da política democrática, será mais eficiente, virtuoso e responsável.

Elogiam-se países como a China, cujo sistema político autoritário é muito mais equipado do que a democracia majoritária, com seu viés igualitário, para lidar com os chamados desafios da “globalização” – uma retórica que começa a emular a celebração que as elites capitalistas faziam do fascismo alemão e italiano (e até mesmo do comunismo stalinista) no período entreguerras, dada a suposta superioridade de sua governança econômica.

Por enquanto, a utopia política da corrente neoliberal convencional é uma “democracia adaptada ao mercado”, sem poderes de correção e favorável a uma redistribuição da base para o topo, “compatível com os incentivos” necessários para estimular o crescimento.
Ainda que esse projeto já esteja bem avançado na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, seus defensores continuam temendo que em algum momento a maioria popular retome as instituições políticas herdadas do pacto social do pós-guerra, num esforço derradeiro para bloquear o avanço de uma solução neoliberal para a crise. Assim, as pressões da elite para neutralizar a democracia igualitária seguem firmes; na Europa, elas se traduzem na contínua transferência da tomada de decisões para instituições supranacionais como o Banco Central Europeu e as reuniões de cúpula de governantes.
 
Será que os dias do capitalismo ficaram para trás? Nos anos 80, abandonou-se a ideia de que o “capitalismo moderno” poderia ser gerido como uma “economia mista”, administrada tecnocraticamente e controlada democraticamente. Mais tarde, na revolução neoliberal, a ordem econômica e social voltou a ser concebida como algo que surgia, benevolamente, da “livre atuação das forças de mercado”.
Com a recessão de 2008, esvaziou-se a promessa de que mercados autorregulados atingiriam o equilíbrio por conta própria, embora não se tenha proposto uma nova fórmula de governança político-econômica. Isso por si só pode ser considerado sintoma de uma crise que afeta o próprio sistema.

Considerando as décadas de declínio do crescimento, o aumento da desigualdade e a escalada da dívida, acredito ter chegado a hora de pensar o capitalismo como fenômeno histórico, que tem início e também um fim. Para tanto, precisamos descartar modelos farisaicos de mudança social e institucional.
Enquanto imaginarmos que o capitalismo terá seu fim decretado, ao estilo leninista, por algum governo ou comitê central, persistiremos na crença de que o capitalismo é eterno. (Na verdade, era o comunismo, centralizado em Moscou, que podia ser encerrado por decreto, e assim foi.) A coisa muda de figura se – em vez de imaginar que uma decisão coletiva, amparada numa nova ordem
previamente concebida, porá termo ao capitalismo – permitirmos que o sistema desmorone por si só.

É um preconceito marxista – ou melhor, modernista – acreditar que o capitalismo como época histórica só terminará quando uma sociedade melhor estiver à vista, com um sujeito revolucionário pronto para implementá-la em prol do avanço da humanidade. Devemos aprender a pensar a aproximação do fim do capitalismo sem nos comprometermos em responder à pergunta sobre o que colocar em seu lugar.

Isso pressupõe um grau de controle político sobre nosso destino comum com o qual sequer podemos sonhar depois do aniquilamento da ação coletiva, e até da esperança nesse tipo de ação, durante a revolução neoliberal globalista. Nem a visão utópica de um futuro alternativo nem um poder sobre-humano de vidência deveriam ser requisitos para validar a afirmação de que o capitalismo está enfrentando seu “crepúsculo dos deuses”.

Estou inclinado a endossar essa afirmação, embora ciente das inúmeras vezes que, no passado, o capitalismo foi declarado morto. Na verdade, todos os principais teóricos já previram seu fim iminente desde que o conceito passou a ser usado, em meados do século XIX – não apenas por críticos radicais como Karl Marx ou Karl Polanyi, mas também por teóricos burgueses como Max Weber, Joseph Schumpeter, Werner Sombart e o próprio Keynes. (Se a história provar que estou errado, pelo menos estarei em boa companhia.)

O fato de que algo não aconteceu, apesar de razoáveis previsões ​​ao contrário, não significa que nunca vá acontecer. Creio que desta vez é diferente: nem mesmo os mestres do capitalismo têm alguma ideia de como fazer o sistema voltar a funcionar plenamente. Pensemos, por exemplo, na publicação no início deste ano das atas das deliberações do conselho do Federal Reserve em 2008 – mostrando que o banco central americano ignorava o verdadeiro estado do sistema financeiro do país –, ou na busca desesperada dos banqueiros centrais pelo momento certo para acabar com o “relaxamento monetário”.
 
progresso capitalista de certo modo destruiu qualquer agente que pudesse impor limites ao sistema. A estabilidade do capitalismo depende de que sua dinâmica seja contida por forças compensatórias – interesses coletivos e instituições que sujeitem a acumulação de capital aos freios e contrapesos sociais. Sem isso, o capitalismo pode ser excessivamente bem-sucedido e acabar sabotando a si mesmo.

A imagem que tenho do fim do capitalismo – um epílogo que acredito já estar sendo escrito – é de um sistema social em desmantelo crônico, por razões que lhe são próprias, independentemente de uma alternativa viável. Embora não se saiba exatamente quando e como o capitalismo vai desaparecer e o que virá em seguida, importa considerar a ausência de alguma força que poderia reverter as três tendências destrutivas – queda de crescimento, igualdade social e estabilidade financeira – e impedi-las de um reforço mútuo. Hoje, diferentemente da década de 30, não há no horizonte nenhuma fórmula político-econômica, à esquerda ou à direita, capaz de fornecer às sociedades capitalistas um novo regime coerente de regulação.

O mais provável é que, com o passar do tempo, ocorra um acúmulo de disfunções pequenas e não tão pequenas – nenhuma necessariamente fatal, porém a maioria sem conserto (e, conforme se multiplicarem, será impossível lidar com cada uma delas individualmente).
Nesse processo, as partes do todo vão se encaixar cada vez menos; atritos de todo tipo vão se propagar; consequências inesperadas vão se disseminar, por razões cada vez mais difíceis de serem determinadas. Incertezas vão proliferar; crises de todo tipo – de legitimidade, de produtividade ou ambas – vão se suceder, enquanto diminuirão ainda mais a previsibilidade e a governabilidade (como vem acontecendo há décadas). Por fim, a miríade de correções provisórias concebidas para gerir crises no curto prazo vai entrar em colapso sob o peso dos desastres diários produzidos por uma ordem social em profunda instabilidade e anomia.
 
Conceber o fim do capitalismo como um processo, e não como um evento, levanta a questão de como definir o capitalismo. Sociedades são entidades complexas que não morrem da mesma maneira que os organismos: com a rara exceção da extinção total, a descontinuidade sempre está acompanhada de alguma continuidade. Se dizemos que uma sociedade acabou, queremos dizer que desapareceram certas características de sua organização que consideramos essenciais, embora outras possam muito bem ter sobrevivido.

O capitalismo está vivo, moribundo ou morto? Comecemos por defini-lo como uma sociedade moderna que assegura sua reprodução coletiva como um efeito colateral, não intencional, da maximização competitiva do lucro. Uma maximização feita de forma individualmente racional, em busca da acumulação de capital, por meio de um “processo de trabalho” que combina propriedade privada do capital com mercantilização da força de trabalho, cumprindo a promessa de Bernard Mandeville[5] de que os vícios privados se transformam em benefícios públicos. É essa promessa que o capitalismo contemporâneo não pode mais cumprir – e que encerra sua existência histórica como ordem social sustentável, previsível, legítima e que se autorreproduz.

O fim do capitalismo assim definido não deve seguir nenhum plano. À medida que a deterioração avança, é inevitável que provoque gritas e tentativas de intervenção coletiva. Mas por um bom tempo estas provavelmente serão do tipo ludita: locais, dispersas, descoordenadas, “primitivas” – aumentando a desordem sem conseguir criar uma ordem nova; na melhor das hipóteses, colaborando involuntariamente para o surgimento dessa ordem nova.

Poderíamos pensar que uma tal crise de longa duração abriria muitas oportunidades para agentes reformistas ou revolucionários. Parece, no entanto, que o capitalismo desorganizado está desorganizando não só a si mesmo como também a sua oposição, privando-a da capacidade de derrotar o sistema, ou então de salvá-lo. Assim, para que chegue ao fim, ele deve providenciar sua própria destruição – é exatamente o que estamos testemunhando hoje.
 
Mas por que o capitalismo, sejam quais forem suas deficiências, haveria de estar em crise, se a ele não existe nenhuma oposição digna desse nome? Quando o comunismo implodiu em 1989, o fato foi amplamente considerado como o triunfo final do capitalismo, como “o fim da história”. Mesmo hoje, depois de 2008, a “velha esquerda” continua à beira da extinção em todos os lugares, enquanto uma nova “nova esquerda” ainda não apareceu. As massas, os pobres e os despossuídos, assim como os que estão relativamente bem, parecem firmemente presos nas garras do consumismo, com posses, ação e organização coletivas completamente fora de moda. Sendo a única opção disponível, por que o capitalismo não haveria de continuar? Por simples falta de alternativa?

À primeira vista, há de fato muita coisa que contraria a afirmação de que o capitalismo morreu. As pessoas, por exemplo, podem se acostumar com a desigualdade, sobretudo com a mãozinha do entretenimento e da repressão política. Além disso, abundam exemplos de reeleições de governos que cortaram gastos sociais e privatizaram serviços públicos.
Quanto à deterioração ambiental, ela prossegue, lenta em comparação com o tempo de vida humana, de modo que é possível negá-la e ao mesmo tempo aprender a conviver com ela. Os avanços tecnológicos que permitem um ganho de tempo – como o fracking, que viabiliza a extração do gás armazenado em rochas – não devem ser descartados; e, se há limites para os poderes apaziguadores do consumismo, é evidente que não estamos perto deles.

Além disso, adaptar-se a regimes de trabalho que consomem mais tempo e mais vida pode ser considerado um desafio competitivo, uma oportunidade para a realização pessoal. Definições culturais de “vida boa” sempre foram elásticas e podem muito bem ser esticadas ainda mais para se adequar ao avanço da mercantilização geral, pelo menos enquanto os desafios radicais ou religiosos à reeducação pró-capitalista puderem ser suprimidos, ridicularizados ou marginalizados.

Por fim, a maioria das atuais teorias sobre a estagnação se aplica unicamente ao Ocidente rico, ou apenas aos Estados Unidos, não a China, Rússia, Índia ou Brasil – países para os quais a fronteira do crescimento econômico pode estar prestes a migrar, com vastas terras virgens à espera do avanço capitalista. (Mesmo considerando que as últimas avaliações sobre a performance econômica desses países tenham se mostrado bem menos otimistas do que eram dois ou três anos atrás.)

Penso que não enfrentar oposição nenhuma, mais que uma vantagem, pode ser uma desvantagem para o capitalismo. Os sistemas sociais só têm a ganhar com a heterogeneidade interna, o pluralismo de princípios que os blinda da dedicação a uma única finalidade, criando outras metas que também devem ser cumpridas para que o sistema seja sustentável.

O capitalismo, tal como o conhecemos, se beneficiou muito com a ascensão de movimentos opostos ao domínio do lucro e do mercado. O socialismo e o sindicalismo impuseram um freio na transformação de tudo em mercadoria, impedindo o capitalismo de destruir seus alicerces não capitalistas – a confiança, a boa-fé, o altruísmo, a solidariedade no seio das famílias e das comunidades, e assim por diante.

Sob o keynesianismo e o fordismo, a oposição mais ou menos leal ao capitalismo garantiu e ajudou a estabilizar a demanda agregada, especialmente nas recessões. Onde as circunstâncias eram favoráveis​​, a organização da classe trabalhadora serviu até mesmo como um “chicote da produtividade”, forçando o capital a embarcar em conceitos mais avançados de produção. É nesse sentido que o economista britânico Geoffrey Hodgson argumentou que o capitalismo só pode sobreviver enquanto não for totalmente capitalista – enquanto ainda não tiver se livrado, ou livrado a sociedade, das “impurezas necessárias”. Vista dessa forma, a derrota que o capitalismo infligiu a sua oposição pode ter sido uma vitória de Pirro, que o alforriou de forças compensatórias que, embora às vezes inconvenientes, na verdade lhe davam apoio. Será que o capitalismo vitorioso se tornou o pior inimigo de si mesmo?
 
Karl Polanyi[6] escreveu sobre os limites sociais à expansão do mercado, tese que constituiu a base de seu conceito das três “mercadorias fictícias”: trabalho, terra (ou natureza) e dinheiro. Ele define a mercadoria fictícia como um bem ao qual as leis da oferta e da procura se aplicam apenas de modo parcial e imperfeito, e que do contrário poderia ser destruído; portanto, só pode ser tratado como mercadoria se a mercantilização for cuidadosamente circunscrita e regulada.

Os mercados, porém, têm a tendência inerente a expandir-se além de seu domínio original (o comércio de bens materiais), para todas as outras esferas da vida, sejam ou não aptas à condição de mercadoria (ou mercantilização); em termos marxistas, os mercados tendem a subsumir tudo na lógica da acumulação de capital. Assim, se não for contida por instituições de controle, a expansão do mercado corre o risco permanente de sabotar a si mesma, levando de cambulhada a viabilidade do sistema capitalista econômico e social.

Tudo indica que hoje a expansão do mercado alcançou um limiar crítico no âmbito das três mercadorias fictícias de Polanyi, já que as salvaguardas institucionais que as protegeram contra a mercantilização sofreram erosão em várias frentes. Parece que é isso que está por trás da busca, em todas as sociedades capitalistas avançadas, de um novo regime de trabalho, em particular uma nova distribuição do tempo entre as atividades com fins sociais e econômicos; um regime de produção e consumo de energia ambientalmente sustentável; e um regime financeiro estável para a produção e a alocação de dinheiro.

Nas três áreas, as sociedades estão procurando limitações mais eficazes à lógica de expansão dos mercados, numa tentativa de conter as pressões cada vez maiores do sistema de emprego sobre o trabalho humano; dos sistemas capitalistas de produção e consumo sobre os recursos naturais finitos; e do sistema financeiro e bancário sobre a confiança das pessoas, por meio de pirâmides cada vez mais complexas de dinheiro, crédito e débito.
 
Examinando cada uma das três zonas de crise citadas por Polanyi, podemos notar que foi a mercantilização excessiva do dinheiro que derrubou a economia mundial em 2008: a transformação de uma oferta ilimitada de crédito barato em “produtos” financeiros cada vez mais sofisticados gerou uma bolha imobiliária de tamanho inimaginável. A desregulamentação dos mercados financeiros dos Estados Unidos, a partir dos anos 80, havia abolido as restrições à mercantilização do dinheiro concebidas depois da Grande Depressão. A “financeirização”, como o processo passou a ser conhecido, parecia ser o último recurso para que a potência hegemônica do capitalismo global recuperasse o crescimento e a lucratividade da sua economia.

Uma vez livre das amarras, a indústria de fazer dinheiro investiu boa parte de seus colossais recursos em lobbies que pressionaram pelo fim de todas as regras de precaução, e ainda passaram a perna nas poucas que restaram. Olhando para trás, é fácil perceber os enormes riscos que acompanharam a mudança do antigo regime D-M-D (dinheiro–mercadoria–dinheiro) para o novo regime d-d (dinheiro gerando dinheiro).

Em relação à natureza, há uma inquietação crescente no que diz respeito à tensão entre o princípio capitalista de expansão infinita e o suprimento finito de recursos naturais. Discursos neomalthusianos de correntes variadas ganharam popularidade nos anos 70. Embora alguns deles sejam hoje considerados prematuramente alarmistas, ninguém duvida que, se estendido ao mundo todo, o padrão de consumo de energia das sociedades capitalistas ricas destruirá as precondições essenciais para a vida humana.

Parece estar se configurando uma corrida entre o esgotamento da natureza e a inovação tecnológica – substituindo materiais naturais por artificiais, prevenindo ou reparando danos ambientais, planejando abrigos contra a degradação inevitável da biosfera. Resta uma pergunta até hoje sem resposta: como mobilizar os enormes recursos coletivos necessários para tudo isso em sociedades regidas pelo “individualismo possessivo” (na expressão do cientista político canadense C. B. Macpherson)? Que atores e instituições podem garantir o bem coletivo de um ambiente habitável, num mundo onde reina a competição, seja na produção, seja no consumo?

Quanto à mercantilização do trabalho humano, esta pode ter atingido um ponto crítico. A desregulamentação dos mercados de trabalho, sob a pressão da concorrência internacional, desfez quaisquer perspectivas de uma limitação generalizada da jornada laboral. Também tornou o emprego mais precário para uma parcela crescente da população. Com o avanço da participação das mulheres no mercado – em parte devido à insuficiência do salário para o sustento de uma família –, as horas mensais vendidas pelas famílias aos empregadores aumentaram, enquanto os salários não acompanharam a escalada da produtividade ‒especialmente no coração do capitalismo, os Estados Unidos.
 
Ao mesmo tempo, não obstante a desregulamentação e o aniquilamento dos sindicatos, os mercados de trabalho não absorvem toda a mão de obra, e um desemprego residual da ordem de 7% a 8% passou a ser considerado normal, mesmo num país como a Suécia.
O trabalho semiescravo se expandiu em muitos setores, inclusive nos serviços, em especial nos países periféricos, fora do alcance das autoridades e do que resta dos sindicatos no centro capitalista, e também longe dos olhos dos consumidores. Na competição entre essa mão de obra e aquela de países com tradição de proteções trabalhistas fortes, as condições de trabalho se deterioram na periferia e o desemprego se torna endêmico no centro.
 
Enquanto isso, multiplicam-se as queixas de que o trabalho está invadindo a vida familiar, e aumentam as pressões para que os mercados de trabalho entrem numa corrida sem fim para elevar seu “capital humano”. Não bastasse, a mobilidade global permite aos empregadores substituir a mão de obra local insubmissa por imigrantes mais dóceis, o que acarreta um enfraquecimento dos movimentos sociais contestatórios, agora sem solidariedade social ou de classe. Ao mesmo tempo, surgem conflitos políticos perniciosos em torno da diversidade étnica, até em países tradicionalmente liberais, como Holanda, Suécia e Noruega.
 
Ao longo de toda a história do capitalismo, discutiu-se como e onde a acumulação de capital deve ser restringida a fim de proteger as três mercadorias fictícias da mercantilização total. Mas a desordem mundial nessas três áreas, concomitante, é hoje uma outra coisa: é o resultado de um veloz e bem-sucedido ataque dos mercados a um amplo leque de instituições e atores, herdados do passado ou construídos em longas lutas políticas, que por algum tempo conteve o avanço do capitalismo em limites socialmente aceitáveis.
 
Trabalho, terra e dinheiro passaram a ser zonas de crise simultaneamente depois que a “globalização” dotou as relações de mercado e as cadeias de produção de uma capacidade sem precedentes de atravessar as fronteiras políticas e jurídicas nacionais. E isso ocasionou uma desorganização fundamental das instituições que mal ou bem tinham conseguido domesticar o “espírito animal” capitalista, para o bem da sociedade como um todo e também do próprio capitalismo.
Não é só em relação às mercadorias fictícias que a acumulação de capital pode estar pedindo arrego.
 
Na superfície, o consumo de bens e serviços continua em alta, e a premissa implícita da economia moderna – de que o desejo humano e a capacidade de consumir são ilimitados – parece comprovada por uma visita a qualquer shopping center. Ainda assim, o temor de que os mercados de bens de consumo possam, em algum momento, ficar saturados – talvez no decorrer de uma dissociação pós-materialista entre as aspirações humanas e a aquisição de mercadorias – é endêmico entre os produtores que dependem do lucro. Isso por si só reflete o fato de que há muito tempo o consumo nas sociedades capitalistas maduras se dissociou das necessidades materiais.
 
Hoje grande parte do consumo não está atrelada ao valor de uso da mercadoria: o que conta é seu valor simbólico, sua aura ou halo. É por isso que os profissionais da indústria pagam mais do que nunca pelo marketing – publicidade, design dos produtos e inovação. Mesmo assim, os valores intangíveis da cultura tornam o sucesso comercial difícil de prever, certamente mais do que na época em que era possível alcançar o crescimento suprindo, gradualmente, todos os lares de um país com uma máquina de lavar.
 
Sem oposição, o capitalismo se entrega a seus próprios mecanismos, que não incluem a autocontenção. A busca do lucro é interminável, e não poderia ser diferente. O princípio de que “menos” pode ser “mais” não pode ser honrado por uma sociedade capitalista: ele lhe deve ser imposto, ou não haverá termo para o seu avanço, por mais que assim ele acabe consumindo a si mesmo.
 
No momento, posso afirmar que já estamos observando a agonia do capitalismo, provocada pelo desmantelamento de uma oposição – ele morre de uma overdose de si mesmo. Para ilustrar, vou apontar cinco doenças sistêmicas do capitalismo avançado de hoje; todas elas resultam, de várias maneiras, do enfraquecimento das restrições -– tradicionais, institucionais e políticas – ao seu avanço. São elas: estagnação, redistribuição oligárquica, pilhagem do setor público, corrupção e anarquia global.
 
Seis anos depois da quebra do banco de investimentos Lehman Brothers, entraram na moda previsões de que a estagnação econômica vai se prolongar por um bom tempo. Discutiu-se muito um artigo do economista americano Robert Gordon, que sustentava que as principais inovações impulsoras de produtividade e crescimento econômico desde o século XIX só poderiam acontecer uma única vez, como o aumento da velocidade dos transportes ou a instalação de água encanada nas cidades. Comparada a elas, a recente difusão da tecnologia da informação produziu aumentos menores da produtividade, se é que houve algum.
 
Embora o argumento de Gordon possa soar um tanto determinista tecnologicamente, parece plausível que, só se a tecnologia abrir oportunidades sempre novas de aumento da produtividade, o capitalismo atingirá o nível de crescimento necessário para compensar a classe trabalhadora por ajudar os outros a acumular capital.
Em todo caso, no que parece ser uma reflexão posterior, Gordon baseia sua previsão de baixo ou nenhum crescimento em seis fatores não tecnológicos, que chamou de “ventos contrários”, capazes de causar uma estagnação de longo prazo, “mesmo que a inovação continuasse [...] no mesmo ritmo dos vinte anos anteriores a 2007”. Entre esses fatores ele inclui dois que, como venho defendendo, há algum tempo se imbricam ao baixo crescimento: a desigualdade e “o excesso de endividamento dos consumidores e do governo”.
 
É espantoso como as atuais teorias sobre a estagnação estão próximas das teorias marxistas do subconsumo dos anos 70 e 80. Recentemente, ninguém menos que Lawrence Summers, ou “Larry” – amigo de Wall Street, arquiteto-chefe da desregulamentação financeira no governo de Bill Clinton, e primeira opção de Barack Obama para a presidência do Federal Reserve, que recuou diante da oposição do Congresso –, se uniu aos teóricos da estagnação.
Em novembro de 2013, na conferência anual do Fundo Monetário Internacional, Summers confessou ter perdido a esperança de que as taxas de juros próximas a zero iriam gerar um crescimento econômico significativo no futuro previsível, num mundo que estaria sofrendo de excesso de capital. A previsão de Summers de uma “estagnação secular” como o “novo normal” recebeu uma aprovação surpreendentemente ampla de seus colegas economistas, incluindo o neokeynesiano Paul Krugman.
 
O que Summers mencionou apenas de passagem é que o fracasso evidente da política de juros baixos, ou mesmo negativos, em reviver os investimentos coincidiu com um longo período de aumento da desigualdade social, nos Estados Unidos e em outros países. Como Keynes bem sabia, a concentração de renda reduz a demanda efetiva e leva os donos do capital a procurar oportunidades de lucro especulativo fora da “economia real”. Essa pode ter sido uma das causas da “financeirização” do capitalismo iniciada na década de 80.
 
Tem-se a impressão de que as poderosas elites do capitalismo global estão se resignando a um crescimento baixo ou mesmo inexistente no futuro previsível. O que não exclui altos lucros no setor financeiro, provenientes basicamente de operações especulativas com dinheiro barato fornecido pelos bancos centrais.
 
Poucos parecem temer que o dinheiro gerado para evitar que a estagnação se transforme em deflação cause inflação, já que não existem mais os sindicatos que poderiam reivindicar uma parcela desse dinheiro. Agora a preocupação é com uma inflação muito pequena, e não muito grande – vem despontando o consenso de que uma economia saudável exige uma inflação anual de pelo menos 2%, se não mais. Mas a única inflação à vista é a das bolhas no preço dos ativos, e Summers teve o cuidado de preparar seu público para muitas delas.
 
Para os capitalistas e seus associados, o futuro parece turbulento. O baixo crescimento vai lhes negar recursos adicionais com os quais poderiam resolver conflitos distributivos e apaziguar o descontentamento. Há bolhas à espera de uma agulha, prontas para estourar sem aviso, e não é certo se os países vão recuperar a capacidade de cuidar das vítimas a tempo.
A economia estagnada que parece se configurar estará longe de ser uma economia estacionária ou estável; à medida que o crescimento declina e o risco aumenta, a luta pela sobrevivência se tornará mais intensa.
O restauro dos limites à mercantilização que a globalização tornou obsoletos é substituído pela busca de novos caminhos para extrair os recursos da natureza, aumentar e intensificar a jornada de trabalho, e incentivar o que o jargão chama de “criatividade financeira”, num esforço desesperado para manter a marcha dos lucros e da acumulação de capital.
 
Pode-se imaginar o cenário de “estagnação com chance de bolhas” como uma batalha de todos contra todos, marcada por ocasionais crises de pânico, quando encenar o “fim do jogo” se tornará um passatempo popular.
 
Passemos à segunda doença, a redistribuição oligárquica. Não há nenhuma indicação de que a tendência de longo prazo para uma desigualdade crescente será rompida tão cedo, ou mesmo algum dia. A desigualdade deprime o crescimento, por razões keynesianas e outras. Mas o dinheiro fácil fornecido pelos bancos centrais para promover o crescimento – fácil para o capital, mas não para o trabalho, é claro – aumenta ainda mais a desigualdade, expandindo o setor financeiro e incentivando o investimento especulativo, em vez do produtivo.
 
Assim, a redistribuição para o topo se torna oligárquica: em vez de servir ao interesse coletivo no progresso econômico, como prometido pela teoria econômica neoclássica, ela se transforma na extração de recursos de sociedades cada vez mais empobrecidas.
Penso em países como a Rússia e a Ucrânia, mas também a Grécia e a Espanha, e, cada vez mais, os Estados Unidos. Na redistribuição oligárquica, corta-se o vínculo keynesiano entre os lucros dos ricos e os salários dos pobres, apartando o destino das elites econômicas do das massas. Isso foi antecipado nos memorandos de triste fama distribuídos pelo Citibank em 2005 e 2006 a um círculo seleto de clientes mais ricos, para lhes assegurar que sua prosperidade não dependia mais da prosperidade dos assalariados.
 
A redistribuição oligárquica e a tendência à “plutonomia”,[7] mesmo em países ainda considerados democratas, evocam o pesadelo de elites confiantes em que sobreviverão ao sistema social que as torna ricas. Os capitalistas plutonômicos não precisam mais se preocupar com o crescimento econômico nacional, já que suas fortunas transnacionais crescem independentemente dele. Daí o êxodo dos super-ricos russos ou gregos: eles pegam seu dinheiro – ou o de seus concidadãos – e fogem, de preferência para a Suíça, a Grã-Bretanha ou os Estados Unidos.
 
A possibilidade de salvar a si mesmo e a sua família, proporcionada pelo mercado de capitais globalizado, oferece aos ricos a maior tentação possível, que é passar para o modo “fim do jogo” – vender tudo, pegar o dinheiro, queimar as pontes e deixar para trás apenas terra arrasada.
 
Intimamente relacionada a essa doença vem a terceira, a pilhagem do setor público por meio do subfinanciamento e da privatização. Sua origem está na dupla transição, ocorrida desde a década de 70, do Estado dos impostos para o Estado da dívida e, por fim, para o Estado do ajuste ou da austeridade.
 
A causa principal dessa virada foram as novas oportunidades que os mercados de capital mundiais ofereceram desde os anos 80 para a fuga de impostos, a evasão fiscal, a busca de regimes de tributação mais favoráveis e a extorsão de benefícios fiscais dos governos, praticada por empresas e pessoas de renda elevada. As tentativas de acabar com o déficit público se basearam quase exclusivamente em cortes nos gastos governamentais – tanto em previdência social como em investimentos na infraestrutura física e no capital humano.
 
À medida que os ganhos na renda ficavam cada vez mais concentrados no 1% mais rico, o setor público das economias capitalistas encolheu, muitas vezes de forma dramática, privado de sustento em favor da riqueza de uma oligarquia com mobilidade internacional. A privatização – realizada sem levar em conta a contribuição que o investimento público na produtividade e na coesão social poderia ter dado para o crescimento econômico e a equidade social – foi parte desse processo.
 
Mesmo antes de 2008, era um consenso admitir que a crise fiscal do Estado pós-guerra precisava ser resolvida por meio da redução dos gastos governamentais, e não pelo aumento de impostos, sobretudo impostos sobre os ricos. A consolidação das finanças públicas por meio da austeridade foi imposta às sociedades, e continua sendo, embora provavelmente deprima o crescimento. Essa parece ser mais uma indicação de que a economia dos oligarcas foi apartada da economia das pessoas comuns, já que os ricos não mais esperam ter de pagar pela maximização de sua renda à custa dos não ricos, ou por buscar seus interesses em detrimento da economia como um todo.
 
O que pode estar aflorando aqui é a tensão fundamental descrita por Marx entre, de um lado, a natureza cada vez mais social da produção numa economia e numa sociedade avançada, e, de outro lado, a propriedade privada dos meios de produção. Como o aumento da produtividade requer mais investimento público, ele tende a se tornar incompatível com a acumulação privada dos lucros, obrigando as elites capitalistas a escolher entre as duas coisas. O resultado é o que já estamos vendo hoje: estagnação econômica combinada com redistribuição oligárquica.
 
Ao lado do declínio do crescimento econômico, do aumento da desigualdade e da transferência do setor público para a propriedade privada, a corrupção é a quarta doença do capitalismo contemporâneo.
 
Em sua tentativa de reabilitar o capitalismo resgatando seus fundamentos éticos, Max Weber traçou uma linha divisória nítida entre capitalismo e ganância, apontando para as origens do capitalismo que, ele acreditava, estavam na tradição religiosa do protestantismo. Segundo Weber, a ganância sempre existiu, em todos os lugares e em todos os momentos (não é uma característica distintiva do capitalismo, podendo até subvertê-lo); o capitalismo não se baseia no desejo de ficar rico, mas sim na autodisciplina, no esforço metódico, na administração responsável, na devoção sóbria a uma vocação e a uma organização racional da vida.
 
Para Weber, os valores culturais do capitalismo iriam se enfraquecer quando o sistema amadurecesse e se transformasse numa “gaiola de ferro” – a regulação burocrática e as restrições impostas pela concorrência tomariam o lugar das ideias culturais que em sua origem serviram para desvincular a acumulação de capital do consumo hedonista e de instintos primitivos de monopolização de recursos.
 
O que ele não poderia prever, porém, foi a revolução neoliberal ocorrida no último terço do século XX e as oportunidades sem precedentes que ela ofereceu para a acumulação de riquezas enormes.
Com o devido respeito a Weber, a fraude e a corrupção sempre foram companheiras do capitalismo. Mas há boas razões para acreditar que, quando o setor financeiro passou a dominar a economia, elas se tornaram tão difundidas que a justificativa ética de Weber para o capitalismo agora parece se aplicar a um mundo inteiramente diverso.
 
Hoje as finanças são uma “indústria”. Nela, é difícil distinguir a inovação da distorção ou da violação das normas; o retorno financeiro para atividades semilegais e ilegais é especialmente elevado; a discrepância de informação e de remuneração entre empresas e autoridades reguladoras é extrema; a porta giratória entre essas duas esferas oferece possibilidades intermináveis​​de corrupção sutil ou não tanto; as maiores empresas não são apenas “grandes demais para falir”, mas também grandes demais para ir para a cadeia, dada sua importância para a política econômica nacional e a receita tributária; e a fronteira entre empresas privadas e Estado é menos nítida do que em qualquer outra área, como mostra o pacote de socorro de 2008, ou o estratosférico número de antigos (e futuros) funcionários de empresas financeiras no governo americano.
 
Após a falência da distribuidora de energia Enron, em 2001, e da gigante das telecomunicações WorldCom, em 2002, parecia que a fraude e a corrupção tinham alcançado níveis históricos na economia dos Estados Unidos. Mas o que veio à tona depois de 2008 superou tudo: agências de classificação de risco de crédito remuneradas pelos próprios emissores de papéis podres para lhes atribuir as melhores notas; um sistema bancário paralelo em paraísos fiscais; lavagem de dinheiro e assessoria para a evasão fiscal em grande escala como atividades corriqueiras dos maiores bancos; a venda, para clientes desavisados, ​​de papéis concebidos para que outros clientes pudessem apostar contra eles; os principais bancos de todo o mundo fixando, de forma fraudulenta, as taxas de juros e o preço do ouro; e por aí afora.
 
Nos últimos anos, vários bancos grandes pagaram bilhões de dólares em multas por atividades desse naipe. Mas as sanções, que à primeira vista podem parecer significativas, são minúsculas se comparadas ao balanço dos bancos – e todas essas multas decorreram de acordos extrajudiciais, de casos que os governos não quiseram ou não se atreveram a levar aos tribunais.
 
O declínio moral do capitalismo pode estar conectado a seu declínio econômico, à luta pelas oportunidades remanescentes de lucro, mais feia a cada dia e se transformando numa pilhagem de bens em escala gigantesca. Seja como for, para o público, hoje, o capitalismo passa uma imagem profundamente cínica; o sistema é visto por muitos como um cipoal de truques sujos para garantir que os ricos fiquem ainda mais ricos. Ninguém acredita num renascimento moral do capitalismo. A tentativa weberiana de evitar que ele fosse confundido com a ganância fracassou, já que o capitalismo se tornou, mais do que nunca, sinônimo de corrupção.
 
Chegamos, finalmente, à quinta doença, a anarquia global. O capitalismo global precisa de um centro para garantir sua periferia e fornecer a ela um regime monetário digno de confiança. Até a década de 20, esse papel coube à Grã-Bretanha, e de 1945 até a década de 70, aos Estados Unidos; os anos intermediários, quando faltava um centro e várias potências aspiravam a assumir esse papel, foram uma época de caos econômico e também político.
 
Relações estáveis ​​entre as moedas dos países partícipes da economia capitalista mundial são vitais para o fluxo de mercadorias e capitais, que por sua vez é essencial para a acumulação de capital; essa estabilidade precisa ser garantida por um banqueiro global de última instância. Também é necessário um centro que funcione, para apoiar regimes na periferia dispostos a tolerar a extração a baixo preço de suas matérias-primas. Além disso, é indispensável a colaboração local para conter a oposição tradicionalista à expansão das fronteiras do capitalismo.
 
O capitalismo contemporâneo sofre cada vez mais de anarquia global, já que os Estados Unidos não estão mais aptos a desempenhar seu papel do pós-guerra, e uma ordem mundial multipolar não se vislumbra no horizonte. Embora não haja (ainda?) confrontos entre grandes potências, a função do dólar como moeda de reserva internacional está sendo contestada – e não poderia ser diferente, dado o desempenho declinante da economia americana, seus níveis crescentes de endividamento público e privado, e a experiência recente de várias crises financeiras avassaladoras.
 
A busca de uma alternativa internacional, talvez sob a forma de uma cesta de moedas, está empacada, uma vez que os Estados Unidos não abrem mão do privilégio de se endividar na própria moeda. Além disso, as medidas de estabilização tomadas por organizações internacionais sob orientação de Washington tendem cada vez mais a ter efeitos desestabilizadores na periferia do sistema, como no caso das bolhas inflacionárias que o “relaxamento monetário” no centro causou em países como Brasil e Turquia.
 
Militarmente, os Estados Unidos já foram derrotados ou levados a um impasse em três grandes guerras terrestres desde os anos 70 – no Vietnã, no Iraque e no Afeganistão. No futuro, Washington provavelmente vai pensar duas vezes antes de lançar seus soldados em conflitos locais. Novos e sofisticados instrumentos de violência estão sendo implementados para tranquilizar governos aliados e inspirar confiança nos Estados Unidos como um garantidor global dos direitos oligárquicos à propriedade, e como um porto seguro para as famílias oligárquicas e seus tesouros.
 
Tais instrumentos incluem o uso de “forças especiais” altamente secretas para localizar e destruir inimigos potenciais; aeronaves não tripuladas capazes de matar qualquer pessoa em praticamente qualquer canto; confinamento e tortura de um número desconhecido de pessoas num sistema mundial de prisões secretas; e a vigilância abrangente da oposição potencial em todos os lugares, com a ajuda de tecnologia cibernética.
Se isso bastará para restaurar a ordem global, sobretudo à luz da ascensão da China como rival econômica – e, em menor medida, militar – dos Estados Unidos, ainda não se sabe.


[1]A OCDE reúne 34 países ricos, incluindo os Estados Unidos e a maioria dos europeus. É um fórum de pesquisa, debate e propostas de políticas públicas.
 
[2]Uma referência ao versículo 29 do capítulo 25 do Evangelho de São Mateus, usado pelo sociólogo da ciência americano Robert Merton para descrever a “vantagem cumulativa”: quem tem mais dinheiro acumula mais.
 
[3]O inglês John Maynard Keynes (1883–1946) apontou que o livre mercado, sozinho, não dava conta de pôr fim aos períodos de recessão e desemprego; ele prescreveu intervenções do Estado para aumentar a demanda por bens e serviços, por meio dos salários e dos investimentos públicos. Seu rival ideológico foi o austríaco Friedrich Hayek (1899–1992), um economista neoclássico que acreditava que o mercado livre tendia ao equilíbrio, e temia que um poder excessivo do Estado levasse à perda das liberdades individuais.
 
[4]Em média, o valor das dívidas públicas da Áustria, Bélgica, Canadá, França, Alemanha, Itália, Japão, Holanda, Noruega, Suécia, Reino Unido e Estados Unidos passou de pouco mais de 40% do PIB em 1970 para quase 100% do PIB em 2011, segundo a OCDE.
 
[5]O filósofo e economista político anglo-holandês Bernard de Mandeville (1670–1733) é autor de A Fábula das Abelhas, ou Vícios Privados, Benefícios Públicos, em que defendia que as ações movidas por interesses individuais egoístas geram prosperidade e beneficiam o coletivo.
 
[6]O economista político Karl Polanyi (1866–1964), nascido na Áustria de pais húngaros, é autor do clássico A Grande Transformação: As Origens de Nossa Época.
 
[7]Uma sociedade em que uma minoria controla a maior parte das riquezas.

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