Imagine que você tem alguns vizinhos inadimplentes. Como ser 'legal' com eles?
Todo mundo sabe como reunião de condomínio é um saco. Castigo pra uma noite depois do trabalho. Não é ótimo quando alguém resolve que uma "churrasqueira" (aquilo que faz fumaça e deixa tudo com cheiro de gordura) é um gênero de primeira necessidade?
Muita gente suspeita de que, quando alguém quer ser síndico, é porque gosta de mandar ou tem muito tempo livre ou é muito limpinho ou, pior, está faltando ação na cama. Aliás, quem é muito limpinho é porque não tem mesmo uma boa cama suja.
Penso nesse roteiro abaixo com intenções experimentais. Sempre que ouço pessoas "de boa vontade" (recentemente uma leitora me lembrou esta excelente frase, "desconfiar da bondade dos bons"!) falarem sobre como o mundo seria melhor se fizéssemos o que elas acham que deveríamos fazer, me lembro de reuniões de condomínio --principalmente quando se enfrenta o velho problema da inadimplência.
Todo adulto sabe que o órgão mais sensível do homem é o bolso (menos os mentirosos). Pesquisas recentes mostram que casais toleram mais facilmente adultérios sexuais do que financeiros. Ele até pode comer a secretária, mas se der um apartamento pra ela, é demais. Ela até pode dar pro professor de tênis, mas se ganhar mais do que diz que ganha, aí ele não suporta. O adultério financeiro é mais intolerável do que o sexual, portanto. Que vá o corpo, mas que fiquem os anéis.
Sigamos em nossa proposta de pôr as utopias no laboratório. Como eu dizia, o convívio em condomínios é a prova cabal de que qualquer utopia política é coisa de mau caráter ou iniciante em filosofia. Vejamos.
Imagine que você tem alguns vizinhos inadimplentes. Agora pense, como ser "legal" com os inadimplentes? Alguém na reunião conta que o cara do 41 está com câncer. Como ele nunca vem às reuniões, por razões óbvias, como vocês poderão checar? Pedirão exames via oficial de Justiça? E se for verdade? Dividirão a dívida do condomínio entre vocês? Todo doente terá desconto? Mas a separada do 61, que cuida sozinha de três filhos porque o marido era um traste, pergunta: "Eu já acordo às seis todo dia pra trabalhar e levar meus filhos na escola (a perua escolar está um absurdo!), por que devo arcar com a inadimplência dos outros? E se eu ficar doente? Vocês vão cuidar de mim e meus três filhos?".
Outro devedor, do 11, só sai de casa ao meio-dia. Dizem que é artista, por isso é difícil pagar as contas. Entretanto, trocou de carro recentemente, e você continua com aquele coreano que comprou em quatro anos de parcelamento, cinco anos atrás. Como proceder? Invadir a casa pra ver se ele de fato tem essa "atividade nobre que não vale pelo que se ganha mas pelo serviço que se presta à cultura"? E se for? Vão bancá-lo?
E a família do 52? O marido perdeu o emprego, apesar de a esposa (que já está com aquele rosto opaco de mulher que não bebe há muito tempo) trabalhar como uma louca. Perdoamos a dívida deles? Ou instituímos que todos devem dar uma contribuição para o caixa da família do 52?
Mas o pior mesmo foi a experiência do último inadimplente em questão. A síndica anterior, que era muito magra e silenciosa (vivia com gatos pela casa), conseguiu leiloar o apartamento 43, por que a dívida estava muito alta. No dia do despejo, o zelador conta pelos cantos que a filhinha do casal chorava perguntando porque aqueles homens estavam tirando-a do quarto dela. Dizem as más (ou boas?) línguas que fotos nas redes sociais apareceram com dizeres do tipo: "Parem com a violência nos condomínios!".
Pra completar a pauta da reunião, havia a suspeita de que a moradora do 72, uma gostosa de uns 40 anos, estava dando em cima dos caras do prédio (mesmo os casados!). Como agir sem confessar que você tem preconceitos com mulheres separadas no elevador com seu marido ou que você é um invejoso porque a tal gostosa nunca olhou pra você?
Enfim, imagino que a turma do "vamos fazer um mundo melhor" devia se concentrar em resolver os dramas dos condomínios antes de "fait la morale" (em francês é mais chique) pra cima de nós, que pagamos a conta.
20 de agosto de 2014
Luiz Felipe Pondè, Folha de SP
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