"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

CRIMINOSOS SEDENTOS DE JUSTIÇA

Artigos - Direito
Diz o ditado que as estradas para o inferno são pavimentadas com boas intenções. A mensagem é que a ninguém é facultada a prerrogativa de não observar as conseqüências de suas ações. A ninguém é dado o direito de esconder-se por detrás de belas palavras, por mais convincentes que sejam, e por mais que se acreditem nelas do fundo do coração.
Isso porque a fórmula para o reconhecimento do bem ou mal não é a beleza ou fealdade do discurso, mas os resultados que decorrem daquilo que se defende. “Pelos frutos, conhecereis a árvore”, já dizia Deus em pessoa.

Em âmbito do direito penal, são ubíquas as falas sobre o caráter malévolo das sanções, sobre a incapacidade regenerativa do cárcere, sobre a falência do sistema penitenciário. Essas idéias são tecidas de forma extremamente sedutora, de modo que sua disseminação é impressionante. Claro, à medida que se afastam de suas fontes originadoras – dos pensadores que inicialmente formulam tais discursos –, as teses vão perdendo a elegância, depois os contextos, a extensão e, por fim, tornam-se a mera expressão grosseira e ultra condensada do cerne da idéia. Quem nunca ouviu que “a prisão é uma escola para o crime”?

Essa assertiva nada mais é do que uma compactação de textos como o seguinte, do Juiz Federal Tourinho Filho ([i]):

A mídia induz o povo a acreditar que a questão da violência se resolve aumentando as penas e mandando o criminoso para a cadeia. Incute a idéia de que a paz se consegue aumentando-se o número de figuras delituosas.

 É preciso desmistificar a ideia de que o direito penal (principalmente, a prisão) é a solução para a contenção da onda de criminalidade que invade, domina e sufoca a sociedade.([ii])
 
Não há como negar a habilidade do autor de uma redação que, em meia dúzia de linhas, consegue acumular a insinuação de que os discordantes são manipulados e ingênuos, reduzir as teses possíveis a um pobre preto e branco sem gradações intermediárias, fechar os olhos para a ausência de provas conclusivas quanto à questão discutida para, por fim, pular qualquer liame lógico e expor, como conclusão, em um tom impositivo, uma instrução explícita sobre o que os leitores devem fazer.

Sob essa avalanche erística, quem se lembraria de pensar que nunca viu, na imprensa, esse exército de jornalistas espumando em alaridos por lei e ordem, mas que, ao contrário, a coisa mais comum do mundo são matérias, filmes e artigos sobre o bandido “vítima da sociedade”?

Quem não gostaria de concordar com o autor para, no mesmo ato, sentir-se alçado a uma casta superior, uma categoria de esclarecidos que paira muito acima dos discursos midiáticos e enxerga, daquelas alturas, os longínquos horizontes onde um céu de misericórdia se funde com um mar de nitidez e certeza?

O apelo é reforçado devido ao fato de que tese segundo a qual o aumento do número de prisões não resulta na redução da criminalidade não é absurda, mas perfeitamente possível. Segundo o Conselho Nacional de Justiça, a população carcerária aumentou 380,5% no período entre 1992 e 2012[iii] e, não obstante, os níveis de criminalidade continuam a subir. Ou seja, houve mais prisões e, ainda assim, mais crimes.

Além do mais, segundo o secretário-geral do mesmo órgão, a taxa de reincidência varia entre 60% a 70% ([iv]), o que demonstra que, realmente, no Brasil, o caráter reformador da pena é falho.

Como discordar, então, de idéias expressas pelas mais afiadas técnicas de convencimento, e ainda corroboradas por tais números?
Para isso, é preciso examinar a questão mais a fundo e ver que, entre o branco e o preto, há todo um espectro de cores.

Com base nos dados expostos, a conclusão inafastável é que é inviável asseverar o potencial de o aumento quantitativo de prisões reduzir a criminalidade. É possível que, por mais que se prendam, os índices de cometimento de delitos continuem a aumentar. Basta, para isso, que as motivações para a criminalidade sejam externas e alheias aos presídios ([v]).

Mais difícil, entretanto, é sustentar-se que a criminalidade aumenta devido ao incremento do número de prisões. Embora alguns defendam que o criminoso sai da cela pior do que entrou, não parece plausível afirmar que foi o grande número de segregações efetivadas que o fez optar pelo mundo do crime e ser preso pela primeira vez.

Porém, se ninguém sabe se o aumento da punição é capaz de reduzir os crimes, e se poucos afirmariam que os crimes ocorrem porque os criminosos são presos, todo mundo sabe que a impunidade é um estímulo fortíssimo ao cometimento deles ([vi]). Essa certeza é tão antiga quanto o anel de Giges.

E é exatamente na conclusão mais revestida de certeza que o Brasil mais falha.
Em relação aos homicídios, apenas 8% são punidos ([vii]). Dos 134.898 inquéritos por assassinatos iniciados até 31 de dezembro de 2007, apenas 31,94% foram concluídos até 2012 ([viii]) ([ix]).

Esses dados referem-se a crimes de homicídio, chocantes por natureza. Qual não será a proporção de prisões em outros, menos explícitos, como roubo ou furto, nos quais, em muitos casos a vítima, de tão descrente, nem perde tempo se dirigindo a uma delegacia para fazer o registro?

Acontece que nem mesmo essa minoria, essa amostra ínfima, de criminosos que é capturada e condenada, é devidamente punida. Claro, não se podem negar as situações precárias dos presídios, que transformam a curta pena em um “intensivo”. Quanto a isso, entretanto, não custa notar que aqueles que declararam guerra contra a punição dos criminosos combatem duramente cada projeto de construção de presídios, ao mesmo tempo em que acusam a desumanidade da superlotação das celas.

Incoerências à parte, imaginem que uma pessoa é condenada a 6 anos de reclusão, em regime inicialmente semiaberto, e inicie sua pena em dezembro de 2011. Ela deveria ficar presa até dezembro de 2017, certo? Pois não é o que acontece...

Em vários estados do Brasil, o sistema carcerário sofre de um déficit de vagas em regime semiaberto ([x]). Como o condenado não pode ser punido além da condenação, se não houver vagas no regime estabelecido, ele é recolhido em regime aberto, ou seja, em casa de albergado (inexistente na maioria das comarcas brasileiras)([xi]), em prisão domiciliar, ou mesmo libertado mediante uso de tornozeleira eletrônica. Assim, dependendo da sorte de nosso detento-exemplo, ele vai para casa logo no primeiro dia.

Mas supondo que haja vaga no regime semiaberto, ainda assim a situação não é muito pior. Com 1/6 da pena, a Lei de Execuções Penais possibilita a progressão de regime. Ou seja, em dezembro de 2012, um ano após a condenação, ele tem direito de ir para casa - de albergado ou a dele próprio.

Além disso, em dezembro de 2013, a pena é encerrada, pois todo fim de ano a Presidência da República perdoa os presos que cumpriram 1/3 da pena (ou metade, se reincidente, dentre outras 18 hipóteses) ([xii]). Sim, o sujeito é condenado a seis anos de reclusão na iminência da virada para 2012, mas no final de 2013 ele está livre, leve e solto pelas ruas, perdoado do que fez ([xiii]).

Os efeitos nefastos dessa política de não punição são muito mais extensos do que a simples infusão de confiança no meliante, que reincide, de novo e de novo, enquanto sacode os ombros com um irônico “dá nada não”.

Segundo relatório produzido pelo Ministério da Justiça em 2012, no ano de 1990, a proporção de presos provisórios - aqueles reclusos sem condenação transitada em julgado - em relação à população carcerária, era de 18%. Em 2012, essa proporção aumentou para cerca de 40%. Em números absolutos, a elevação foi de impressionantes 1093% ([xiv]).
As cifras dão a indicação preocupante de que as autoridades judiciárias estão lançando mão aos últimos mecanismos disponíveis para evitar a completa extinção das punições no Brasil. Sabendo que, ainda que condenado, o criminoso não cumprirá a pena, a solução é decretar a prisão logo que iniciado o processo, na esperança de que ao menos um pouco da sanção seja executada.

Do mesmo modo, a partir do exame dos recursos que chegam às instâncias superiores, é possível observar que, provavelmente sob o mesmo raciocínio, progressões de regime e indultos são postergados, presos são recolhidos em regime mais gravoso até o surgimento de vagas, menores traficantes são internados, tudo sem amparo legal.

Não é necessário dizer que isso arruína a segurança jurídica. O uso indiscriminado das prisões cautelares é um convite a segregações injustas. A administração da execução penal fora dos termos estritos da lei transfere o fundamento da autoridade do magistrado do ordenamento jurídico para sua subjetiva boa intenção.

Mas o efeito deletério da impunidade também não se limita ao judiciário. Hoje são comuns os vídeos de desabafos de agentes de segurança pública, indignados com as prisões sucessivas dos mesmos indivíduos em intervalos ínfimos de tempo. Não é difícil prever que, mais hora, menos hora, a paciência dos policiais se acabará e eles começarão– se ainda não tiverem começado - a resolver o problema de uma forma menos ortodoxa.
Aliás, não é exatamente isso que tem feito a população, ao linchar e amarrar os alegados criminosos, buscando retomar, à força, o direito - e dever, frise-se - de punir, cedido ao Estado?

E assim, lentamente, vemos juízes, policiais e população se afastarem da lei para poderem, só assim, fazer justiça. É obvio que nenhuma justiça virá disso, mas sim uma sucessão de erros de julgamento que resultará exatamente no contrário.
Enquanto isso, os clamores pela redução das punições continuam sendo espalhados e atendidos. E sob tais pretextos, vamos nos tornando, todos, criminosos.
  
Notas:
[i] Que, por sua vez, nada mais é do que uma compactação de discursos anteriores, de exaltação do lumpenproletariat, que datam, no Brasil, de ao menos 1930.
[iv] http://www.cnj.jus.br/atos-administrativos/7797:cnj-apresenta-projeto-comecar-de-novo-a-juizes-das-varas-de-execucao-penal
[v] Alguns exemplos de tais motivações são a atratividade do lucro fácil, a ausência de valores morais, o materialismo excessivo, o vitimismo, o domínio do narcotráfico associado a uma subcultura de exaltação do modo de vida “ostentação” dos traficantes, etc.
[vi] De tudo isso se conclui que, se é possível que seja ruim punir, certamente é pior ainda não punir.
[ix] Por concluídos entendem-se aqueles que resultaram em denúncia – gerando uma ação penal – ou em pedido de arquivamento – considerados casos perdidos. 
[x] http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI194415,101048-Regime+semiaberto+praticamente+nao+existe+no+Brasil
[xiii] De regra, são excluídos do benefício apenas os autores de crimes de tortura, terrorismo, tráfico e hediondos.
[xiv] http://www.conjur.com.br/2013-fev-09/observatorio-constitucional-abuso-prisoes-provisorias-pais
 
20 de agosto de 2014
Tiago Venson é analista judiciário.

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