Completam-se 60 anos, este mês, da maior tragédia sofrida pela República brasileira desde sua proclamação. Dia 24 a nação deveria parar para reverenciar aquele que foi o maior de nossos presidentes e decidiu, com um tiro no peito, mobilizar as forças populares e operárias que havia redimido ao longo de décadas anteriores e se encontravam prestes a perder boa parte de seus direitos.
O sacrifício de Vargas adiou por mais dez anos a cupidez das elites. Seus herdeiros, a começar por João Goulart, em 1964, assistiram o inicio do desmonte das estruturas sociais que dali por diante os sucessores promoveram.
Registram-se, também agora, os 50 anos da queda da democracia que levará 21 para restabelecer-se. Mas sem trazer de novo em sua plenitude as conquistas anteriores.
Existem, na crônica dos povos, datas fundamentais. Agosto de 1954 foi uma delas. Desaparecem em irrefreável progressão natural as testemunhas oculares da tragédia, substituídas por farta literatura incapaz de reproduzir o fenômeno das multidões arrependidas ganharem as ruas impondo pelo menos mais dez anos de justiça.
Quando, na madrugada do dia 24, o velho presidente percebera a armadilha em que o tinham prendido, desencadeou a libertação não apenas de seus esforços anteriores e dele próprio, mas o petardo que fez tremer por mais uma década os alicerces dos privilegiados. Deixou o documento que sem sombra de dúvidas inscreve-se no rol dos mais contundentes libelos libertário de nossa História. Ei-lo:
“Mais uma vez as forças e os interesses contra o povo coordenam-se e novamente se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam, e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes.
Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação de grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo.
À campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se a dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros internacionais foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios.
Quis criar a liberdade na potencialização da Petrobrás. Mas esta começa a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre. Não querem que o povo seja independente.
Assumi o governo dentro da espiral inflacionária que destruía os valores do trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% a ano. Nas declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se o nosso principal produto. Tentamos defender o seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia, a ponto de sermos obrigados a ceder.
Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o povo que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar a não ser o meu sangue.
Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida.
Escolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem, sentireis a minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a lutar por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no meu pensamento a força para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota do meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio, respondo com o perdão.
E aos que pensam que me derrotaram, respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna.
Mas esse povo de quem fui escravo jamais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço de seu resgate.
Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, a infâmia, a calúnia não abateram o meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora, ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente, dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História.”
Sessenta anos não são nada na história do mundo. Esse documento continua atual, presente e necessário. Algum candidato presidencial terá coragem de repeti-lo em sua campanha?
09 de agosto de 2014
Carlos Chagas
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