Corrupção, espetáculo, manipulação do sistema eleitoral e outros ingredientes da crise democrática na Europa
A Europa está doente. Nem sempre é fácil determinar o grau de gravidade e o
motivo dessa doença. Mas existem três sintomas claramente visíveis e
relacionados entre si. O primeiro, e mais conhecido, é a tendência de
degeneração da democracia em todo o continente, da qual a estrutura da União
Europeia é ao mesmo tempo causa e consequência.
O caráter oligárquico do arranjo constitucional do bloco, inicialmente concebido como uma etapa provisória para a soberania popular em escala supranacional, vem se tornando mais rígido com o passar do tempo. Referendos são invalidados com frequência, quando contrariam a vontade dos governantes. Eleitores rejeitam o Parlamento Europeu que nominalmente os representa, e o comparecimento às urnas diminui a cada eleição. Burocratas que nunca foram eleitos policiam os orçamentos aprovados nos Legislativos nacionais, que perderam até mesmo o poder de gastar.
Mas a União não é uma excrescência imposta a países-membros saudáveis. Ela reflete e aprofunda tendências de longo prazo que ocorrem dentro deles. Em nível nacional, praticamente em toda parte, os Executivos domesticam ou manipulam os Legislativos com grande desembaraço; partidos perdem membros; eleitores perdem a crença na própria relevância, enquanto as opções políticas se estreitam e as diferenças propagandeadas nas campanhas eleitorais diminuem ou desaparecem quando os eleitos assumem o poder.
Com essa involução generalizada veio uma corrupção que se difundiu pela classe política, tópico a respeito do qual a ciência política – muito loquaz naquilo que, na linguagem dos contadores, é chamado de déficit democrático da UE – silencia. As formas dessa corrupção ainda não foram plenamente sistematizadas. Existe a corrupção pré-eleitoral: o financiamento de pessoas e partidos por fontes ilegais – em troca da promessa, explícita ou tácita, de favores futuros. Existe a corrupção pós-eleitoral: o uso do cargo para obter dinheiro pela malversação de receitas, ou por propinas em contratos. Existe a compra de vozes ou votos nos parlamentos. Existe o roubo direto do erário. Existe o enriquecimento resultante do exercício de cargo público, antes, durante ou depois.
O panorama desse malavita é impressionante. Um afresco sobre o tema poderia começar com Helmut Kohl, governante da Alemanha por dezesseis anos, que acumulou um caixa dois de campanha de cerca de 2 milhões de marcos alemães [cerca de 3 milhões de reais]. Quando o caso foi descoberto, ele não quis revelar os nomes dos doadores, com medo de que viessem à luz os favores que eles receberam em troca. Jacques Chirac, presidente da República francesa durante doze anos, foi condenado por desvio de dinheiro público, abuso do cargo e conflito de interesses, depois que perdeu sua imunidade. Nenhum deles sofreu punição. Eram os políticos mais poderosos da Europa em sua época. Uma olhada no que ocorreu desde então é suficiente para desfazer qualquer ilusão de que se trata de casos isolados.
Na Alemanha, o governo de Gerhard Schröder garantiu um empréstimo de 1 bilhão de euros à companhia russa Gazprom para a construção de um oleoduto, poucas semanas antes de o chanceler deixar o cargo e entrar na folha de pagamento da empresa com um salário superior ao que recebia para governar o país. Desde que ele saiu, Angela Merkel viu dois sucessivos presidentes da República serem obrigados a renunciar: Horst Köhler, antigo chefe do Fundo Monetário Internacional, por haver explicado que o contingente militar alemão no Afeganistão estava protegendo interesses comerciais do país; e Christian Wulff, antigo chefe democrata-cristão na Baixa Saxônia, em razão de um empréstimo duvidoso para sua casa feito por um empresário amigo. Dois importantes ministros, um da Defesa, a outra da Educação, tiveram que deixar o cargo ao terem os títulos de doutor cassados por furto intelectual. Quando esta última, Annette Schavan, amiga íntima de Merkel (que manifestou plena confiança nela), ainda se agarrava ao cargo, o tabloide Bild comentou que ter uma ministra da Educação que frauda pesquisas era como ter um ministro das Finanças com uma conta bancária secreta na Suíça.
Dito e feito. Na França, descobriu-se que o ministro socialista do Orçamento, o cirurgião plástico Jérôme Cahuzac, tinha de 600 mil a 15 milhões de euros em depósitos secretos na Suíça e em Cingapura. Nicolas Sarkozy, enquanto isso, é acusado por testemunhas de ter recebido cerca de 50 milhões de euros do líbio Muammar Kadafi para a campanha eleitoral que o conduziu à Presidência. Christine Lagarde, sua ministra das Finanças, agora na chefia do FMI, está sendo investigada por seu papel na concessão de 420 milhões de euros em “compensação” para Bernard Tapie, conhecido trapaceiro com antecedentes penais e, nos últimos tempos, amigo de Sarkozy.[1]A contiguidade descuidada com o crime é bipartidária. O socialista François Hollande, atual presidente da República, ia na garupa de uma moto para seus encontros com a amante no apartamento de uma prostituta ligada a um gângster corso morto num tiroteio na ilha.
Na Grã-Bretanha, mais ou menos na mesma época, o ex-primeiro-ministro Tony Blair dava conselhos a Rebekah Brooks, ex-braço direito do magnata da mídia Rupert Murdoch, que corria o risco de ir para a cadeia por cinco acusações de conspiração criminosa relacionadas à época em que dirigia o extinto tabloide News of the World. “Tenha à mão comprimidos para dormir. Isto vai passar. Seja forte”, disse Blair a Rebekah, recomendando-lhe ainda que abrisse uma investigação “independente” sobre o caso como ele mesmo tinha feito para isentar seu governo de qualquer participação na morte de David Kelly, o cientista britânico e inspetor da ONU no Iraque que questionara as razões alegadas para a invasão do país árabe, uma invasão que renderia a Blair – para a sua Faith Foundation, é claro – uma profusão de gorjetas e negócios no mundo inteiro, com destaque para doações de uma empresa petrolífera sul-coreana, presidida por um criminoso condenado com interesses no Iraque, e da dinastia feudal do Kuwait.
Na Espanha, o atual primeiro-ministro, Mariano Rajoy, à frente de um governo de direita, foi flagrado recebendo propinas em obras públicas e outros negócios, no valor total de 250 mil euros ao longo de uma década, que lhe foram repassados por Luis Bárcenas. Tesoureiro do Partido Popular durante vinte anos, Bárcenas está preso por amealhar 48 milhões de euros em contas não declaradas na Suíça. Fotocópias dos livros de contabilidade com registros à mão de suas transferências para Rajoy e outras figuras do partido – como Rodrigo Rato, outro ex-diretor do FMI – circularam na imprensa espanhola. Quando estourou o escândalo, Rajoy passou uma mensagem de texto para Bárcenas com palavras praticamente idênticas às de Blair para Rebekah Brooks: “Luis, eu compreendo. Seja forte. Ligo amanhã. Um abraço.” Oitenta e cinco por cento da opinião pública espanhola acham que Rajoy está mentindo, mas ele continua firme no Palácio da Moncloa.
Na Grécia, o social-democrata Akis Tsochatzopoulos, sucessivamente ministro do Interior, da Defesa e do Desenvolvimento, teve menos sorte: foi condenado a vinte anos de prisão por uma formidável carreira de extorsões e lavagem de dinheiro. Do outro lado do mar Egeu, o premiê turco Tayyip Erdogan – que a mídia e o establishment intelectual da Europa costumavam louvar como o maior estadista democrata da Turquia, cuja conduta praticamente conquistou para o país a filiação honorária à União Europeia – mostrou que é digno de figurar nas fileiras dos dirigentes da ue por outras razões: numa conversa gravada, instruía o filho sobre onde esconder 10 milhões em espécie; noutra, elevava o preço de um suborno num contrato de construção. Três membros do seu gabinete foram derrubados por revelações parecidas, antes que Erdogan fizesse um expurgo na polícia e no Judiciário, para impedir que o assunto fosse adiante.
Enquanto ele fazia isso, a Comissão Europeia divulgou seu primeiro relatório oficial sobre corrupção na ue, cujas dimensões foram descritas como “assombrosas” pelo comissário que redigiu o documento: numa estimativa por baixo, a corrupção custa o equivalente a todo o orçamento do bloco, cerca de 120 bilhões de euros por ano. Prudentemente, o relatório cobria apenas países-membros. A Comissão Europeia, o órgão executivo da UE, com sede em Bruxelas, foi excluída.
A poluição do poder pelo dinheiro e pela fraude, lugar-comum numa União que se apresenta ao mundo como guardiã da moralidade, decorre do esvaziamento da democracia de substância e de participação. As elites, liberadas de uma competição real no topo, ou de uma cobrança significativa vinda de baixo, dão-se ao luxo de enriquecer sem serem perturbadas. A revelação de malfeitos deixa de ter grande importância quando a impunidade é a regra. Os políticos importantes, como os banqueiros, não vão para a cadeia. Da fauna já mencionada, só o grego Akis Tsochatzopoulos sofreu essa afronta.
Mas a corrupção não decorre apenas da decadência da ordem política. É também, obviamente, sintoma do regime econômico que criou raízes na Europa desde os anos 80. Num universo neoliberal, onde os critérios de valor são estabelecidos pelo mercado, o dinheiro se torna a medida de todas as coisas. Se hospitais, escolas e prisões podem ser privatizados e transformados em empresas lucrativas, por que não seria assim também com os cargos públicos?
Além dos efeitos culturais adversos do neoliberalismo, porém, há o seu impacto como sistema socioeconômico – o terceiro e, na experiência popular, o mais agudo dos sintomas da enfermidade que aflige a Europa. Que a crise econômica desencadeada no Ocidente em 2008 foi resultado de décadas de desregulamentação financeira e expansão do crédito até mesmo seus arquitetos de certa forma admitem – veja-se Alan Greenspan. Com conexões do outro lado do Atlântico, os bancos e o mercado imobiliário da Europa se envolveram tão profundamente na debacle quanto os americanos. Na UE, entretanto, essa crise geral também foi determinada por uma peculiaridade: as distorções criadas pela moeda única imposta a economias nacionais diferentes. Quando a crise geral bateu, esse problema levou à beira da falência os países mais vulneráveis da União.
O remédio para eles? Por insistência de Berlim e Bruxelas, não apenas um programa clássico de estabilização, com a redução dos gastos públicos, mas um pacto fiscal estabelecendo o limite de 3% para o déficit público de todos os países-membros. Isso foi fixado como cláusula constitucional, em pé de igualdade com a liberdade de expressão, a igualdade perante a lei, o habeas corpus, a separação de poderes e todo o resto.
Neste cenário, há um país que é visto como o caso mais agudo de disfunção na Europa. Desde a adoção da moeda única, em 1999, a Itália teve o pior desempenho econômico entre os países da ue: vinte anos de estagnação quase ininterrupta, com crescimento abaixo do da Grécia ou da Espanha. Sua dívida pública é superior a 130% do Produto Interno Bruto. No entanto, não se trata de um desses países pequenos ou médios da recém-adquirida periferia da União. É um dos seis membros fundadores, com população comparável à da Grã-Bretanha, e uma economia uma vez e meia a da Espanha. Sua base industrial é a segunda maior da Europa, superada apenas pela da Alemanha. Seus títulos do Tesouro constituem o terceiro maior mercado de títulos soberanos do mundo. Com sua mescla de peso e fragilidade, a Itália é o elo realmente fraco da UE, o ponto onde ela pode, teoricamente, quebrar.
Até agora é também, não por coincidência, o país onde a desilusão com o esvaziamento da democracia produziu não uma indiferença entorpecida, mas uma revolta que abalou as estruturas do seu establishment. Movimentos de protesto emergiram em outros países da UE, mas nada que se compare à novidade ou ao êxito da rebelião eleitoral representada pelo MoVimento 5 Estrelas. A Itália também oferece o espetáculo mais conhecido de todos os teatros de corrupção do continente, e sua personificação mais celebrada: Silvio Berlusconi, o bilionário que governou o país por quase metade da existência da Segunda República.[2]
É inquestionável que Berlusconi se destaca de seus pares no entrosamento de poder e dinheiro. Mas a maneira como fez isso pode ser obscurecida pelo clamor da imprensa estrangeira contra ele, sobretudo as ensurdecedoras denúncias da Economist e do Financial Times.
Duas coisas fizeram de Berlusconi um caso singular. A primeira é que ele inverteu o trajeto típico do cargo para o lucro, acumulando uma fortuna antes de conquistar a chefia do governo, que passou então a usar não tanto para aumentar sua riqueza, mas para protegê-la, e a si mesmo, das múltiplas ações penais decorrentes da forma como a obteve. A segunda é que a principal – mas nem de longe a única – fonte de sua riqueza é um império de tevê e publicidade que o dotava de um mecanismo de poder independente do cargo, que pôde ser convertido em máquina de propaganda e instrumento de governo.
As conexões políticas – laços com o Partido Socialista em Milão e seu cacique, Bettino Craxi – foram cruciais para sua ascensão política, em particular para a construção de uma rede nacional de televisão. Mas, apesar de Berlusconi ter adquirido consideráveis aptidões de comunicação e manobra como político, em sua atitude geral perante a vida ele permaneceu um homem de negócios, para quem o poder significava segurança e glamour, mais do que ação ou projeto. Embora expressasse admiração por Margaret Thatcher e se apresentasse como campeão do mercado e da liberdade econômica, o imobilismo de suas coalizões de centro-direita não se diferenciava muito do das coalizões de centro-esquerda do mesmo período.
Esta é a principal mágoa da opinião neoliberal inglesa contra ele, como pôde ser percebido no tratamento que ela dispensou a dois outros emblemas de corrupção. Durante anos, Erdogan – amigo íntimo de Berlusconi – foi brindado com reportagens lisonjeiras no Financial Times e outros órgãos, que o apresentavam como o arquiteto esclarecido da nova democracia turca. Diferentemente de Berlusconi, porém, cujo governo era anódino em questões de liberdades civis, Erdogan era e é uma ameaça a essas liberdades. Enquanto o boom econômico estimulado por privatizações decolava na Turquia, a prisão de jornalistas, o assassinato de manifestantes, a manipulação de julgamentos e a intimidação de opositores – para não falar na apropriação indébita de dinheiro público – não recebiam a importância devida.
A mesma observação poderia ser feita a respeito de Mariano Rajoy e seus aliados na Espanha. Mas Rajoy, diferentemente de Berlusconi, é um intendente confiável do regime neoliberal: não carece que suplementos da Economist esquadrinhem suas más ações, sobre as quais a revista tem o cuidado de falar o mínimo possível, assim como Bruxelas e Berlim. “Líderes e funcionários da União Europeia se mostram reticentes sobre o escândalo [na Espanha], dada a importância do país para a zona do euro”, comenta Gavin Hewitt, o editor da BBC para a Europa. “A chanceler alemã Angela Merkel e outros depositaram muita fé no senhor Rajoy, que é tido como executor confiável das dolorosas reformas necessárias para revitalizar a economia da Espanha.” Berlusconi pagaria caro por não merecer essa confiança.
Quando Il Cavaliere obteve sua terceira e mais decisiva vitória eleitoral, em 2008, a má opinião que se tinha dele no exterior pouco lhe importava. A frente de centro-direita que ele havia organizado desde 1994 – agora formada pelo partido Povo da Liberdade, fusão de seu partido anterior com o de um velho aliado, o ex-fascista Gianfranco Fini, mais a Liga Norte, de Umberto Bossi – conquistou expressiva maioria nas duas Casas do Parlamento.
Em seus primeiros meses no cargo, um passo ao estilo Thatcher/Blair foi dado, com a redução em 8 bilhões de euros dos gastos com educação, da escola primária às universidades: diminuindo o número de professores, impondo contratos de curto prazo, quantificando as avaliações de pesquisa. Mas o ímpeto reformista parava aí. A mais alta prioridade da coalizão de Berlusconi eram leis sob medida para protegê-lo de ações penais ainda pendentes. Em 2003, seu partido tinha aprovado uma lei garantindo imunidade aos cinco cargos mais importantes do Estado, derrubada pelo Tribunal Constitucional seis meses depois. Em meados de 2008, ele voltou a atacar com uma lei apresentada por seu braço direito no Ministério da Justiça, o advogado siciliano Angelino Alfano, suspendendo julgamento para os detentores dos quatro cargos mais altos do Estado.
Poucos meses depois, a tempestade financeira do outro lado do Atlântico atingiu a Europa: primeiro a Irlanda, depois a Grécia. Na Itália, a Segunda República tinha sido desde o início um fracasso econômico, apesar dos esforços de primeiros-ministros de centro-esquerda para dar um jeito na situação. Os índices de crescimento do PIB italiano despencaram ao longo dos anos 90. Depois de 2000, estagnaram a uma média de 0,25% ao ano. Um ano depois da reeleição de Berlusconi em 2008, a confiança do mercado nos títulos do Tesouro italiano já começava a diminuir. Em 2009, a recessão era mais profunda do que em qualquer outro país da zona do euro, com o PIB caindo mais de cinco pontos percentuais. Para manter os mercados financeiros sob controle, sucessivos pacotes de emergência reduziram o déficit orçamentário da Itália, mas, com a alta das taxas de juros cobradas para o rolamento da dívida pública, no fim de 2010 o governo estava à beira do colapso econômico.
Politicamente, Berlusconi não se saíra muito melhor. De março a outubro de 2009, as manchetes foram dominadas por sensacionais revelações sobre suas extravagâncias sexuais. Sempre inclinado a enaltecer suas virtudes como macho, e agora incitado pelo orgulho a desafiar a idade, ele deixou de lado a prudência mais elementar, promovendo festas com atrizes de segundo escalão e flertando com menores, a ponto de provocar um rompimento público com a mulher, Veronica Lario. Não demorou para que Berlusconi recebesse prostitutas em sua residência romana. Frustrada por não ter conseguido um alvará de construção que lhe foi prometido, uma delas narrou suas visitas.
Na vila palaciana de Berlusconi em Arcore, nos arredores de Milão, organizavam-se orgias com mulheres vestidas de freira, enfermeira e policial. Quando uma das participantes, uma jovem marroquina, acabou sendo presa por furto em Milão, Berlusconi ligou para pedir sua soltura, alegando que era sobrinha do ditador egípcio Hosni Mubarak. Como a moça tinha menos de 18 anos, medidas judiciais contra Berlusconi foram tomadas. Com a degradação de sua imagem, Il Cavaliere ficou enfraquecido. Mas ainda sobreviveu, por algum tempo.
Uma ameaça mais séria à sua posição veio de outro lado. Por excesso de confiança, nascido do êxito eleitoral, ele perdeu o senso dos limites políticos, humilhando gratuitamente Gianfranco Fini, que se julgava seu sucessor e era então presidente da Câmara dos Deputados. No verão de 2010, percebendo que já não tinha razões para supor que seria o herdeiro natural da centro-direita, Fini mudou de lado, levando consigo um número de deputados suficiente para privar o governo de uma maioria estável. Em meados de 2011, enquanto a crise da zona do euro se aprofundava, com a Grécia à beira da inadimplência, a pressão dos mercados sobre os títulos da Itália aumentou. A Alemanha não fazia mais segredo de sua determinação de derrubar qualquer resistência a medidas draconianas de austeridade, e de eliminar líderes que hesitassem em aplicá-las, em Atenas ou Roma. Em agosto, Jean-Claude Trichet e Mario Draghi – o presidente do Banco Central Europeu que saía, e o que entrava – deram praticamente um ultimato a Berlusconi.
Dois meses depois, o premiê grego George A. Papandreou foi forçado a aceitar novos cortes nos gastos públicos e a assumir o compromisso de executar um amplo programa de privatizações. Apavorado com a maré montante de cólera popular que isso provocou, ele anunciou um referendo sobre as medidas, e foi imediatamente intimado por Angela Merkel e pelo francês Nicolas Sarkozy a esquecer a ideia. Uma semana depois, estava fora do governo. Dentro de cinco dias, Berlusconi também.
Mas a dinâmica da queda de Berlusconi não foi a mesma. Na Grécia, Papandreou administrava um empobrecimento econômico generalizado, que provocara protestos sociais em massa. Até o momento em que lhe ocorreu a ideia de um referendo, ele tinha sido um instrumento perfeitamente aceitável da vontade da União. Saiu porque sua posição tinha ficado insustentável internamente.
Na Itália, não havia pauperização em andamento nem mobilização popular.
A maioria de Berlusconi na Câmara era, a essa altura, minúscula. Mas ele ainda controlava o Senado, e não tinha sido nocauteado nos tribunais. Sua posição interna era mais forte do que a de Papandreou. Na UE em geral, porém, era muito maior a hostilidade contra ele, visto como um constrangimento para a classe política europeia; a Alemanha e o Banco Central Europeu estavam determinados a se livrar dele, um obstáculo à indispensável faxina da ordem econômica e social italiana.
Para a remoção de Berlusconi, no entanto, era necessário um mecanismo que vinculasse o desgaste de sua posição na Itália, ainda não completo, com a absoluta aversão a ele no exterior. Para azar do primeiro-ministro, esse mecanismo já estava pronto e engatilhado. Na Segunda República, tinha havido uma ampliação do papel da Presidência nos assuntos políticos da Itália. Durante o reinado anterior da Democracia Cristã, no qual um partido sempre dominava o Legislativo, esse cargo era basicamente cerimonial. Quando coalizões políticas rivais passaram a disputar o poder, abriu-se um novo espaço de manobra para a Presidência.
Berlusconi havia apoiado a eleição de Giorgio Napolitano para a Presidência em 2006, e tinha motivos para achar que sua opção fora sensata. Ao longo de sua carreira, Napolitano vinha exibindo um princípio imutável: a adesão a qualquer tendência política que lhe parecesse vitoriosa no momento. Ainda estudante, filiou-se ao Grupo Universitário Fascista, numa época em que a Itália despachava tropas para participar do ataque nazista à Rússia. Quando o fascismo sucumbiu, o jovem Napolitano optou pela força do comunismo que despontava. Ingressando no PCI no fim de 1945, chegou ao Comitê Central em pouco mais de uma década. Quando tropas e tanques russos esmagaram a Revolução Húngara de 1956, ele aplaudiu. Napolitano era um severo disciplinador de dissidências internas no partido, votando sem hesitação pela erradicação do grupo Manifesto, pelo delito de falar contra a invasão soviética da Tchecoslováquia. Na época, ele era considerado forte candidato à liderança do PCI.
O cargo acabou indo para Enrico Berlinguer, visto como mais conciliador. Mas Napolitano continuou como importante acessório do partido durante a guinada para o eurocomunismo. No fim dos anos 70, foi escolhido para ser o primeiro emissário do PCI para tranquilizar os Estados Unidos sobre a confiabilidade do projeto, tornando-se “o comunista favorito de Kissinger”, nas palavras do New York Times. Nos anos 80, a transferência de lealdade para o novo suserano estava concluída. Com o Terceiro Reich como uma lembrança ruim e a URSS em declínio, os Estados Unidos eram agora a potência a ser cultivada. Responsável pela política externa do PCI, Napolitano se encarregaria de massagear as relações com Washington bem depois do desaparecimento do partido. Já presidente, se desdobraria para agradar tanto a Bush quanto a Obama.
Na Itália, o fracasso da tentativa do PCI de firmar um “acordo histórico” com a Democracia Cristã que lhe permitisse entrar no governo e a ascensão – num clima de corrupção cada vez mais flagrante – do Partido Socialista de Craxi como parceiro principal da DC levaram Berlinguer a dar uma guinada para a esquerda. Denunciando a degeneração do sistema político pelo dinheiro, ele fez um apelo retumbante para uma faxina na vida pública. Napolitano respondeu furiosamente, acusando-o de sectarismo e “injúrias vazias”.
Napolitano encabeçava a corrente mais direitista no PCI da época, os miglioristi, que sentiam certa afinidade com Craxi e não queriam saber de hostilidades contra ele. Sua base era Milão, onde a máquina de Craxi dominava a cidade. Ali, em meados dos anos 80, essa corrente publicava um jornal, Il Moderno, não só subsidiado por Berlusconi como entusiasta de sua proeza de modernizar a mídia e fazer de Milão a capital da televisão na Itália. Isso foi em 1986, quando Craxi era primeiro-ministro. Posteriormente, um tribunal concluiria que a Fininvest, empresa holding de Berlusconi, financiava ilegalmente os miglioristi.
Napolitano foi eleito senador vitalício em 2005. Tornando-se presidente da República um ano depois, lamentaria publicamente que Craxi – que morreu no exílio na Tunísia, depois de condenado à revelia a 27 anos de prisão por descomunal corrupção – tivesse sido tratado tão injustamente. Ele não teve a mesma consideração com Berlusconi, vendo-o com afável condescendência – mas também com alguma justiça – não como um político, pelo menos não no sentido de homem de Estado.
Seja como for, Napolitano e Berlusconi dificilmente poderiam ser mais diferentes em estilo, o primeiro cerimonioso e o outro com sua gabolice um tanto indecente. Mas partilhavam vínculos e simpatias em torno de Craxi em Milão, e um interesse por manter o que consideravam ganhos potenciais da Segunda República: um sistema político bipolar, ao estilo anglo-saxão, que só tinha lugar para uma centro-direita e uma centro-esquerda, despojado de hostilidades contra o mercado e contra os Estados Unidos, seu guardião. Por razões próprias, cada um também temia a persistência dos promotores públicos, que não paravam de trazer à tona acusações contra o líder mais popular do país, e o ressentimento de minorias irresponsáveis que faziam cavalo de batalha dessas investigações.
Para Berlusconi, eram ameaças existenciais. Para Napolitano, apenas causavam discórdia, assim como o moralismo de Berlinguer havia feito antes, ameaçando o consenso moderado de que o país precisava. Ele estava mais do que disposto a ajudar Berlusconi a se proteger desses problemas; sancionou sem hesitação a lei proposta pelo ministro da Justiça Angelino Alfano, que garantia, a Berlusconi como primeiro-ministro e a si próprio como presidente, imunidade judicial. Quando a lei foi considerada inconstitucional, endossou o substitutivo aprovado em 2010, permitindo que ministros escapassem de julgamentos invocando suas prementes obrigações de servidores públicos – substitutivo esse que acabou considerado inconstitucional em 2011.
As ações de Napolitano estavam em conformidade com as expectativas de Berlusconi sobre o modus vivendi entre eles. Outra manifestação desse entendimento veio quando a deserção de Gianfranco Fini privou o governo Berlusconi de maioria na Câmara, e a oposição colocou em pauta um voto de desconfiança, com os votos necessários para derrubar o governo.
Em 2008, o premiê de centro-esquerda Romano Prodi passou por uma situação semelhante, quando Berlusconi comprou votos no Senado para derrubá-lo (um senador confessou ter recebido 3 milhões de euros para virar a casaca). Napolitano na época demorou menos de duas semanas para fazer uso da prerrogativa presidencial de dissolver o Parlamento e convocar novas eleições, das quais Berlusconi saiu vitorioso. Mas agora Napolitano convenceu Fini a esperar mais de um mês, enquanto o Orçamento era aprovado, o que deu a Berlusconi tempo para comprar o punhado de deputados de que precisava para recuperar a maioria.
Esse foi, porém, o último favor que Napolitano prestou a Berlusconi. No início de 2011, o governo anunciou que não participaria do ataque à Líbia encabeçado pelos americanos, ao qual a Liga Norte se opunha taxativamente. Para Napolitano, corresponder às expectativas de Washington era mais importante do que dar atenção a sutilezas constitucionais. Sem votação no Parlamento, ele lançou a Itália na guerra, arrancando o apoio de ex-comunistas para despachar a Força Aérea e bombardear um vizinho com o qual o país tinha assinado um Tratado de Amizade, Cooperação e Aliança Militar, ratificado na Câmara três anos antes.
No meio do ano, estimulado pelas crescentes lisonjas da mídia, que o chamava de esteio da República, e com o incentivo de Berlim, Bruxelas e Frankfurt,[3]Napolitano decidiu descartar Berlusconi. A chave para removê-lo era encontrar um substituto que contentasse esses parceiros e o establishment empresarial da Itália. Felizmente, a figura ideal estava à mão: Mario Monti, ex-comissário da ue, consultor sênior do banco Goldman Sachs e agora reitor da Universidade Luigi Bocconi. Havia algum tempo que Monti ansiava pela situação que agora se apresentava diante dele. “Governos italianos só tomam decisões difíceis”, confidenciou à Economist em 2005, “se duas condições forem satisfeitas: é preciso haver uma emergência indiscutível e forte pressão externa.” O momento tinha chegado.
Em junho ou julho de 2011, no mais completo sigilo, Napolitano havia preparado Monti para assumir o governo. No mesmo período, encarregou Corrado Passera, chefe de um dos maiores grupos bancários da Itália, de produzir um plano econômico confidencial para o país. Passera propôs num documento de 196 páginas uma terapia de choque: privatizações no valor de 100 bilhões de euros, imposto predial, imposto sobre o capital, aumento no Imposto sobre o Valor Agregado. Napolitano agora tinha o homem e o plano de que precisava para ejetar Berlusconi. Monti jamais disputara uma eleição, e embora uma cadeira no Parlamento não fosse requisito para sua investidura como primeiro-ministro, seria bom ter uma.
Não havia tempo a perder: em 9 de novembro, Napolitano nomeou Monti senador vitalício, sob os aplausos da imprensa financeira mundial. Ameaçado de destruição pelos mercados se resistisse, Berlusconi capitulou, e dentro de uma semana Monti tomou posse como o novo governante do país, à frente de um gabinete não eleito de banqueiros, homens de negócios e tecnocratas.
A operação que o instalou no poder é uma expressiva ilustração do que os procedimentos democráticos e o império da lei significam hoje na Europa. Foi inconstitucional de ponta a ponta. Do presidente italiano, espera-se que só interfira nas decisões do Parlamento quando estas violem a Constituição. Ele não tem procuração para conspirar, pelas costas de um premiê eleito, com indivíduos de sua preferência – nem mesmo quando estes são parlamentares – para formar um governo do seu agrado. À corrupção dos negócios, da burocracia e da política na Itália, somava-se a da Constituição.
Na época, as articulações não eram plenamente conhecidas. Só viriam à luz este ano, pela boca do próprio Monti, um ingênuo nessas questões, e foram efusivamente negadas por Napolitano. Enquanto isso, a reação do establishment ao novo governo ia do alívio ao júbilo. Até que enfim um governo honesto e competente estava no comando, não só empenhado em reformar tantas coisas erradas que havia na Itália – o mercado de trabalho pouco flexível, as aposentadorias insustentáveis, o nepotismo nas universidades, a falta de competitividade na indústria, a evasão fiscal –, mas também capaz de conter a tempestade financeira que golpeava o país. Uma nova Segunda República, a verdadeira, poderia surgir agora, depois de vinte anos de tapeação.
Monti – saudado pelo Financial Times como o “Super Mario” – logo frustrou as expectativas. Instalado com a concordância relutante da centro-direita e da centro-esquerda, sua margem de iniciativa era limitada. Nenhum dos dois blocos estava de fato comprometido com ele. Logo ficou claro que seus remédios não trariam a recuperação. A combinação de altos impostos e cortes de gastos poderia reduzir o déficit e baixar os juros da rolagem da dívida, mas intensificou a recessão. O consumo caiu, o desemprego entre os jovens disparou. As reformas estruturais, tais como definidas pela Comissão Europeia e pelo Banco Central Europeu, não foram adiante. Em 2012, o PIB encolheu 2,4%. Politicamente, havia pouco a ganhar sustentando um governo que se tornara impopular. No fim do ano, a centro-direita retirou seu apoio e Napolitano foi forçado a dissolver o Parlamento, mantendo Monti no cargo até a realização de eleições.
As pesquisas de opinião, por algum tempo, indicaram que a centro-esquerda tinha vantagem nas intenções de voto. Monti fora uma decepção. Berlusconi estava cada vez mais desacreditado, e a coalizão de centro-direita sofrera divisões. A centro-esquerda, embora longe de viver um período promissor, estava em melhor forma. O novo Partido Democrático, nascido de uma fusão entre os remanescentes do comunismo italiano e uma ala da Democracia Cristã, tivera desempenho desastroso em 2008, sob o comando do insignificante líder Walter Veltroni. Após a saída de Veltroni, o pd elegeu um novo líder, Pier Luigi Bersani, proveniente do antigo PCI. Sem ser inspiradora, a liderança de Bersani pelo menos impediu que o apoio ao partido continuasse a despencar.
No outono de 2012, desafiado pelo jovem prefeito de Florença, Matteo Renzi, que fizera seu nome sugerindo que a geração mais velha de políticos fosse toda descartada no ferro-velho, Bersani o venceu confortavelmente nas primárias do partido, num comparecimento substancial que elevou a reputação do PD, aumentando sua vantagem nas pesquisas.
Restava um curinga. Três anos antes, o comediante Beppe Grillo havia lançado um movimento contra o establishment político que obteve algum êxito nas eleições locais. Não se sabia ao certo até que ponto era para ser levado a sério. Mas como nada parecido existia em qualquer outro lugar da Europa, nem havia um precedente que servisse como referência, não podia deixar de ser levado em consideração. Grillo começara como comediante stand-up nos cabarés dos anos 70, passando depois a fazer programas populares de tevê. Em 1986, depois de contar uma piada segundo a qual, num banquete para Craxi em Pequim, um dos seus assessores lhe perguntou, espantado, “Se todo mundo aqui é socialista, de quem será que estão roubando?”, Grillo foi vetado nas tevês públicas. Nos anos 90, ele ocupou teatros e praças para apresentar monólogos que tratavam dos inumeráveis escândalos do período com uma combinação de grosseria rude e humor.
Seu público disparou quando ele passou a usar a internet para suas mordazes demolições da ordem constituída e de seu pessoal – a centro-direita e a centro-esquerda, a televisão e a imprensa. Seu blog teve um êxito avassalador. Por essa época, ele já trabalhava em estreita colaboração com o especialista em software Gianroberto Casaleggio, e em 2009 os dois lançaram o MoVimento 5 Estrelas, como uma revolta contra o sistema político. As estrelas representavam as questões essenciais que pretendiam levantar: água (sob ameaça de privatização), meio ambiente, transporte, conectividade e desenvolvimento. Candidatos do M5S [MoVimento 5 Stelle, em italiano] que concorressem em eleições assumiam o compromisso, exigência única no mundo, de não aparecer na televisão e, se eleitos, de reduzir seu salário de parlamentar ao salário mínimo, destinando o resto a programas públicos.
O próprio Grillo estava desqualificado para concorrer ao Parlamento: aos 30 e poucos anos foi condenado por homicídio culposo, depois que seu jipe derrapou numa estrada coberta de gelo e caiu numa encosta, matando três passageiros. Mas podia fazer campanha. Viajando pelo país numa “Turnê Tsunami” que o levou a oitenta cidades, a juba grisalha já conhecida de todos, ele atacava não só as “duas castas” da Itália – a dos políticos e a dos jornalistas –, mas também o establishment burocrático e bancário europeu.
Quando os resultados das eleições foram divulgados, o Partido Democrático sofreu um choque duplo. Embora o que sobrava da coalizão de Berlusconi tivesse perdido 7 milhões de votos, a centro-direita ficou apenas 0,35% atrás da centro-esquerda, que também perdeu mais de 3 milhões. Nenhum dos blocos alcançou nem sequer 30% do total de votos. Já o M5S disparou de zero para 25% da votação, tornando-se, quando se excluíam os expatriados da conta, o maior partido da Itália. Os grillini receberam votos de operários, pequenos empresários, autônomos, estudantes e desempregados; a centro-direita só prevaleceu entre as donas de casa, e a centro-esquerda entre aposentados e trabalhadores de colarinho branco.
Essa era a aritmética eleitoral. A distribuição das cadeiras no Parlamento era outra questão. Para a Segunda República fora fundamental uma mudança no sistema eleitoral – a abolição da representação proporcional em favor de um sistema distrital simples, de modelo anglo-saxão, em que é eleito quem tenha a maioria simples dos votos em cada distrito eleitoral.[4]Nenhuma mudança foi exigida com mais paixão, como indispensável para um governo responsável e eficiente, pelo pensamento único da época.
Nada parecido aconteceu. Em 2005, a coalizão de centro-direita no poder, temendo ser derrotada nesse sistema – do qual se beneficiara anteriormente –, aboliu-o em troca de um sistema nominalmente proporcional, mas acrescido de uma recompensa que dava à coalizão vitoriosa, fosse qual fosse a percentagem de votos por ela obtida, uma maioria automática de 54% das cadeiras na Câmara.
O Porcellum, como o novo sistema eleitoral ficou conhecido, descendia de duas notórias distorções da vontade popular na Itália: a Lei Acerbo, de 1923, aprovada à força por Benito Mussolini para consolidar seu governo, que concedia dois terços dos assentos do Parlamento a qualquer partido que ultrapassasse a barreira dos 25% dos votos, e uma lei de 1953 que premiava com 65% das cadeiras qualquer coalizão que conseguisse mais de 50% (de tão impopular, ela teve de ser revogada quando o governo da Democracia Cristã se mostrou incapaz de alcançar os 50% mais um exigidos na única eleição realizada sob suas regras).
Em 2013, a centro-esquerda, apesar da pequena margem de vitória, angariou uma esmagadora maioria de deputados: 345 contra 125 da centro-direita, e 109 do M5S, de um total de 630. Mas isso não lhe abriu caminho para o governo, pois, de acordo com a Constituição, o Senado requer uma base regional de eleição. Portanto, o prêmio em cadeiras no Senado foi dado à coalizão mais votada dentro de cada região. No fim das contas, o resultado foi bem menos favorável para o PD, que só ganhou 123 dos 315 assentos. Para formar um governo, seria preciso obter um voto de confiança nas duas Casas.
Para tanto Bersani tinha que buscar um acordo, de coalizão ou tolerância, com Berlusconi ou Grillo. O primeiro era execrado pela base do PD, e ele procurou o outro. Mas Grillo não demonstrou interesse. Para o M5S, o desfecho ideal do impasse pós-eleitoral seria um governo Berlusconi–Bersani, que comprovasse sua alegação de que a centro-direita e a centro-esquerda eram dois lados da mesma moeda. Restava, pois, a opção de um gabinete minoritário de centro-esquerda, dependente da tolerância a suas medidas caso por caso.
Napolitano – a quem cabia, como presidente, convidar o líder da coalizão vitoriosa a formar o governo – rejeitou o arranjo. Insatisfeito com o fim prematuro do regime de Monti, ele queria reeditá-lo. Coerente com uma carreira de adesão ao poder mais forte do momento, para ele era imperativo, portanto, ter um governo bipartidário que protegesse a estabilidade e a austeridade exigidas por Frankfurt e Bruxelas contra a agitação populista.
Diante dessa possibilidade, Bersani fincou pé. Não havia solução à vista para o impasse quando o mandato presidencial de Napolitano chegou ao fim. Editoriais implorando que aceitasse um segundo mandato como única barreira contra o caos tomaram conta da imprensa. Mas havia uma regra tácita segundo a qual nenhum presidente italiano servia por mais de um mandato, e Napolitano repudiou a ideia. Tinha cumprido seu dever e já estava arrumando as malas.
Enquanto o fazia, prestou um último serviço. Em 5 de abril, indultou o coronel americano Joseph Romano, condenado à revelia a cinco anos de prisão por ter participado, em Milão, do sequestro de um clérigo egípcio, em seguida levado num avião militar americano para o Cairo, onde sofreu meses de tortura nas mãos da polícia de Mubarak. Constitucionalmente, um perdão presidencial só pode ser concedido por razões “humanitárias”, e não “políticas”. Romano não tinha passado um dia sequer na cadeia, pois fugira do país. Mas Obama havia pedido pessoalmente que esse detalhe fosse ignorado, e Napolitano não hesitou, como já o fizera tantas vezes, em desconsiderar a Constituição, explicando que tinha indultado Romano para “evitar uma situação de evidente embaraço para um país amigo”.
O presidente italiano é eleito em sessão conjunta das duas Casas do Parlamento, mais representantes das regiões, em votação secreta. Nas três primeiras votações, exige-se maioria de dois terços; subsequentemente, maioria simples. Como os votos são secretos, a disciplina partidária é fraca, e muitos turnos podem ser necessários para que se produza um candidato bem-sucedido. Em 2013, os eleitores eram 1 007, o que requeria 672 votos na primeira série de rodadas, e 504 em seguida. A centro-esquerda tinha 493 votos, uma posição bastante forte. Mas, como se espera que o presidente esteja acima da divisão política, o costume determina que um candidato de sucesso desfrute de certo grau de consenso suprapartidário. O PD buscou, portanto, o acordo da centro-direita para apresentar uma figura que ambos pudessem apoiar.
Franco Marini, veterano democrata-cristão e ex-presidente do Senado, foi escolhido. Seu nome, porém, foi rejeitado por Matteo Renzi, o prefeito de Florença, que liderou uma deserção dentro do PD. Marini obteve 521 votos, longe dos dois terços, mas suficientes para a maioria simples. Desanimado com o contratempo, o PD, em vez de segurar sua aposta até o quarto turno de votação, abandonou Marini e, de forma tumultuada, votou em branco nas duas votações subsequentes, das quais o jurista Stefano Rodotà, proposto pelo M5S, emergiu com 230 e 250 votos.
Grillo, deixando de lado sua recusa em negociar com o PD, pediu ao partido que somasse forças com o M5S para eleger Rodotà no turno seguinte, dando a entender que se isso ocorresse seria possível a cooperação entre os dois para a formação do governo. Rodotà não era uma escolha sectária; amplamente respeitado, havia sido presidente dos Democratas de Esquerda, a encarnação anterior do PD. Mas, com seu apego à legalidade constitucional, Rodotà não era aceitável para o partido em que o PD havia se transformado, que temia que ele viesse a impedir alterações institucionais que planejava.
Reagrupando as tropas do PD, Bersani propôs em seu lugar o ex-premiê Romano Prodi. Agora bastava a maioria simples. A centro-direita não participou da votação. Mas, feita a contagem dos votos, Prodi tinha recebido apenas 395 votos – 100 a menos do que a centro-esquerda detinha. Dessa vez, quem sabotou o candidato do partido foram os seguidores de Massimo D’Alema, rival de Prodi nos anos 90. O PD ficou parecendo uma turba desmoralizada. Em lágrimas, Bersani renunciou à liderança, e debaixo do ulular da imprensa, que alertava para o risco de o país se tornar ingovernável, o PD correu para se juntar a Berlusconi nas súplicas para que Napolitano salvasse a Itália, aceitando um segundo mandato. Com protestos de que o fazia contrariando a própria vontade, ele cedeu, e na sexta votação escorregou sem percalços de volta para o Palácio do Quirinal.
Ainda faltava formar um governo, mas, com Bersani fora do caminho, Napolitano podia seguir em frente e criar o governissimo que tanto queria, juntando a centro-direita e a centro-esquerda. Para primeiro-ministro escolheu o vice-líder do PD, Enrico Letta, ex-democrata-cristão. Angelino Alfano, responsável pela lei que conferia imunidade a Berlusconi e Napolitano, ficou sendo vice-primeiro-ministro. Um funcionário do Banco Central foi instalado no Tesouro como garantia de continuidade das políticas de Monti.
Berlusconi, porém, devia grande parte de sua recuperação eleitoral à promessa de rescindir o imposto predial de Monti, e fez do cumprimento dessa promessa uma condição para participar da coalizão. O resultado foi um governo que ziguezagueava de um lado para outro, entre compromissos incompatíveis. Pelo fim do ano, a economia tinha caído mais 1,9% e a dívida pública crescera para 133% do PIB.
Mas as atenções do público rapidamente se voltaram para os azares de Berlusconi. Em junho, ele foi considerado culpado de prostituir uma menor e condenado a sete anos de prisão. O veredicto pouco o afetou em curto prazo: sucessivas apelações poderiam adiar o julgamento final durante anos. Mas em agosto veio um outro julgamento há muito adiado: quatro anos de prisão (três deles perdoados) por evasão fiscal de 7,3 milhões de euros e a proibição de exercer cargos públicos por dois anos. A pena de prisão deflagrou a cláusula de uma lei aprovada no governo de Monti, alijando do cargo por seis anos qualquer pessoa assim condenada. Sua aplicação significava a expulsão de Berlusconi do Senado.
Ciente de que isso poderia provocar uma rebelião da centro-direita capaz de derrubar seu governo, Letta não teve pressa em levar a questão adiante, enquanto Berlusconi fazia apelos cada vez mais frenéticos para que Napolitano o socorresse. Napolitano estava disposto a conceder o indulto se Berlusconi o pedisse, admitindo sua culpa – ele protestava inocência. Furioso com a falta de compaixão, Berlusconi exigiu que os ministros de seu partido se demitissem do governo. Eles inicialmente obedeceram; depois pensaram em seus empregos e no provável destino da centro-direita, se houvesse novas eleições naquelas circunstâncias. O resultado foi um racha público, com Alfano tirando do controle de Berlusconi um número de parlamentares suficiente para formar outro partido de centro-direita, o que daria ao governo uma maioria estável não mais sujeita ao caprichos do ex-premiê. Dez dias depois, Berlusconi foi expulso do Senado.
A vitória de Letta parecia completa. Suas habilidades diplomáticas, aprimoradas na tradição democrata-cristã, foram importantíssimas na tarefa de separar Berlusconi de Alfano e seus seguidores. No entanto, o triunfo de Letta teve vida curta. Em poucos dias, Renzi venceu as primárias pela liderança do PD, que a renúncia de Bersani deixara vaga, e afastou a velha guarda, abarrotando o aparelho partidário de adeptos e fãs de sua própria geração. Ainda prefeito de Florença, e nem sequer no Parlamento, mas já no comando de seu maior contingente de deputados, ele detinha mais poder real do que Letta, e apressou-se a demonstrá-lo.
Berlusconi podia ser um criminoso condenado, mas não era um pária – continuava à frente do segundo maior partido do país. A solução era um acordo com ele. Renzi apressou-se a manter conversas confidenciais com Berlusconi, e os dois chegaram a um acordo sobre mudanças constitucionais e eleitorais, a serem impostas a um Parlamento ao qual nenhum dos dois pertencia. E onde ficava o primeiro-ministro Letta nisso tudo? Em tuítes, como um adolescente acalmando a namorada prestes a ser descartada, Renzi lhe escreveu: “Sossegue, Enrico, ninguém quer tomar o seu lugar.” Um mês depois, ele ejetava Letta e se instalava pessoalmente na condição do mais jovem primeiro-ministro da Itália.
Assim como sua vítima, Renzi tem antecedentes familiares democrata-cristãos – o pai foi vereador da dc. A família tinha uma empresa de marketing que lhe deu emprego até que se dedicasse à política em tempo integral; entre suas contas estava a do jornal local La Nazione. Renzi ingressou num dos resíduos da dissolução da DC, e foi parar no partido centrista A Margarida, que, no devido tempo, se fundiu com os remanescentes do comunismo italiano para formar a ala direita do PD. Quando tinha 29 anos, foi escolhido pelo partido para ser presidente da província de Florença, cargo que ele posteriormente denunciaria como desperdício de dinheiro e procuraria abolir. Mas, na época, aproveitou o máximo possível, montando um aparato de assessores e projetando-se com uma série de eventos midiáticos, orquestrados por uma empresa que ele criou como órgão de propaganda da província.
Depois de cinco anos, o PD propôs Renzi como candidato a prefeito de Florença, um dos bastiões da centro-esquerda na Itália. Numa decisão muito aplaudida, sua administração transformou o centro histórico em área reservada a pedestres, e deu uma engraxada em sua imagem turística: os cidadãos puderam novamente se orgulhar da cidade. Mas houve pouco progresso na redução da poluição. Fora do centro, o tráfego piorou, e ônibus foram privatizados a despeito da oposição de sindicatos.
Aplaudido inicialmente como o melhor prefeito do país, a reputação de Renzi caiu, em parte devido ao fato de que muitas realizações de que se jactava acabaram se mostrando vazias. Mas ele mirou mais longe. As atividades municipais eram concebidas como um trampolim para o palco nacional. Renzi priorizava shows de alta visibilidade, com celebridades de todo o país protagonizando eventos multimídia e festanças político-culturais na antiga estação ferroviária Leopolda, com rock e vídeos no volume máximo, empresários, atores, filósofos, músicos e escritores proferindo frases lapidares para a multidão, e um finale estrondoso a cargo do próprio prefeito.
Desde sua época como chefe da província, Renzi vinha construindo uma rede de conexões com o mundo dos negócios local. Seu principal financiador era um chefão do setor da construção, Marco Carrai. Quando Renzi ganhou a prefeitura de Florença, Carrai foi incumbido de cuidar do lucrativo complexo de estacionamentos e do aeroporto da cidade, enquanto Renzi se instalava de graça num apartamento à disposição de Carrai – arranjo atualmente sob investigação judicial.
Concorrendo a líder do PD três anos depois, com sua campanha recebendo até 600 mil euros da Fundação Big Bang, cujos doadores permaneceram em grande parte no anonimato, Renzi não poupava despesas. Uma das grandes contribuições veio do maior gerente de fundos especulativos da Itália, Davide Serra, cujo Algebris Investments inclui um esconderijo nas ilhas Cayman. Residente em Londres, Serra se tornou o batedor que abre caminho para Renzi no grande mundo das finanças. Em Florença, a Cassa di Risparmio, o instituto municipal de poupança, tem, sem dúvida por pura coincidência, investido em títulos da Algebris.
As empresas talvez se beneficiassem de uma troca de favores em nível municipal, mas nacionalmente foi a mensagem ideológica de Renzi que conquistou os sorrisos do dinheiro graúdo. Os males da Itália advinham de um Estado gastador e do corporativismo, sobretudo dos sindicatos, que obstruía o mercado. Eles precisavam ser desmantelados. A palavra de ordem da esquerda esclarecida deveria ser inovação, em vez de igualdade, por mais que esta última seja um ideal meritório, se entendida corretamente como uma abertura de caminhos para o talento, sobretudo o empresarial. Tony Blair foi um líder que entendeu bem tudo isso, dando um exemplo inspirador do tipo de política de que a Itália necessitava urgentemente.
O culto a Blair reflete, em certo sentido, as limitações provincianas de Renzi: é evidente que ele não tem consciência de que o objeto de sua admiração mal ousa mostrar o rosto em público no país que um dia governou. Mas, noutro sentido, ele se aproveitou das benesses aferidas pelo cartão de visitas como o melhor amigo de Blair na Itália.
Renzi estabeleceu contatos informais com a centro-direita desde que começou a decolar em Florença. Mais ou menos nessa época, fez amizade com um banqueiro florentino, Denis Verdini, que se tornaria seu interlocutor primordial na centro-direita. Quando prefeito, Renzi esteve na vila de Berlusconi em Arcore para um jantar discreto, peregrinação que era tabu no PD àquela altura, e que só foi revelada posteriormente. Mas o que os unia não era apenas a simpatia por Blair ou o reconhecimento do valor do empresário. Berlusconi costuma explicar que vê em Renzi uma versão mais jovem de si mesmo, um sujeito com a audácia e o charme com que tinha cativado o país vinte anos antes.
Em estilo político, os dois têm, de fato, muita coisa em comum. Acima de tudo, uma inabalável autoconfiança na habilidade única de liderar o país. A personalização da política é um traço legendário de Berlusconi. Renzi se projeta num registro diferente, mas comparável. Exibido em pôsteres colados em todo o trajeto de sua turnê pela Itália, seu lema de campanha para conquistar o comando do PD prescindia de mensagem política que não fosse sua própria personalidade. Dizia simplesmente: “Matteo Renzi Já!” Como no caso de Berlusconi, isso bastava. Essa autoconfiança os situa acima das dúvidas e dos escrúpulos de seus pares. Ambos também, é claro, ganharam notoriedade em situações de crise, prometendo ao país um novo começo, quando a ordem política caíra em descrédito geral.
Há também óbvias diferenças entre os dois. Dessas, quatro são mais significativas. Berlusconi entrou na política à frente de um império comercial, fazendo uso de sua vasta fortuna para conquistar um poder que pudesse proteger seus interesses. Tinha quase 60 anos àquela altura. Seu principal instrumento para conquistar e manter o poder era o controle da televisão. Suas habilidades de comunicador eram as de um profissional da telinha, um expert de seus rituais e recursos.
Já Renzi é cria da política pura. Sua ascensão pode ter deixado um vago rastro de fedor – pecunia non olet [dinheiro não tem cheiro] não se aplica bem ao seu caso. Mas o dinheiro, de origem duvidosa ou honesta, tem sido apenas um meio para realizar sua ambição: a riqueza não é um fim. O objetivo é o poder. Esse poder – esta é a segunda grande diferença – foi conquistado por um indivíduo que chegava aos 40, e não aos 60 anos. Uma geração mais jovem.
Berlusconi lastreava grande parte do seu apelo inicial na afirmação de que, além de ser um outsider do sistema político, já demonstrara sua capacidade de criar riqueza como empresário e administrador: poderia governar a Itália tão bem como fizera com suas emissoras de tevê e seu clube de futebol. Renzi apela à idade, não à experiência. Em si, a juventude é uma carta banal, jogada por políticos em ascensão em qualquer sociedade pós-moderna. Mas Renzi fez da juventude algo além do atributo individual: o emblema de um iminente rejuvenescimento coletivo. Esse tipo de promessa não tem as credenciais tangíveis de sucesso material que Berlusconi reivindicava, mas é um apelo igualmente poderoso para duas gerações de italianos sufocados pela imobilidade e decadência da Segunda República.
Além do contraste de mensagens, há uma variação de veículo. Renzi chamou a atenção do público pela primeira vez como vencedor de um popular programa de perguntas e respostas. Jamais perdeu o gosto de aparecer na televisão, onde sua boa aparência e seu jeito petulante fizeram dele uma atração natural quando entrou na política. Mas o tempo mostrou que seu verdadeiro ponto forte era a internet: o Facebook projetou sua imagem e cultivou as bases de modo muito mais rápido do que o fizeram as aparições programadas da tevê, e sob controle muito mais completo; o Twitter lhe serviu para propagar um fluxo contínuo de declarações e opiniões sobre as questões do momento.
Berlusconi, apesar do gosto de contar piadas pesadas em ambientes informais, tendia à formalidade bombástica em seus discursos políticos, que proferia de terno, num estúdio forrado de livros em sua mansão. Renzi é ostentosamente informal, no trajar e no falar. Ao tomar posse, fez um discurso no Senado com as mãos nos bolsos. Não caiu bem. Mas em geral é muito superior a Berlusconi como comunicador, muito mais esperto politicamente, com um talento excepcional para frases de efeito e réplicas mordazes. Renzi não é apenas muito mais rápido no saque verbal. Diferentemente de quase todos os demais líderes ocidentais de hoje, não precisa de marqueteiros para manipular a opinião pública. Ele é, naturalmente, seu próprio relações-públicas. O risco que corre é o de uma arrogância demasiado explícita, que provoca zombarias. Ao longo da carreira, soube transformar as piadas sobre si em divertida autoironia. Resta saber se vai continuar assim, agora que chegou ao topo, onde muitas das farpas que distribui a torto e a direito podem irritar e ofender.
Por enquanto, Renzi vive uma fase boa. Durante vinte anos, os descendentes do comunismo italiano buscaram em vão o cargo de premiê que ele, com um aperto de mãos, conseguiu de Berlusconi em duas semanas. Para o PD, como para seus antecessores, a praga de toda votação na Itália era a presença de rivais menores à esquerda, ou, dor de cabeça mais tolerável, de aliados um pouco à direita. O partido achava que, se eliminasse esses competidores com um segundo turno nas eleições legislativas segundo o modelo francês – no qual, depois de um show de proporcionalidade no primeiro turno, a vitória no segundo é por maioria simples –, poderia assumir seu lugar de direito como partido governante da centro-esquerda num sistema político restringido a ele e a um homólogo de centro-direita.
Essa reforma do sistema eleitoral nunca tinha sido possível, em parte devido à relutância natural dos partidos que desapareceriam com ela ao aprová-la. E também, e mais criticamente, porque Berlusconi, mais capaz do que a centro-esquerda de manter uma ampla coalizão de forças, tinha menos a ganhar com a drástica redução dos partidos representados no Parlamento.
A representação parlamentar justa da opinião política na Itália, uma característica da Primeira República, tinha sido descartada na Segunda. Mas os sistemas eleitorais híbridos posteriores não foram satisfatórios para ninguém. Desses, o Porcellum era tido como o pior. Napolitano, quando voltou à cadeira presidencial, pressionou o Parlamento para se livrar dele. Não era segredo que ele também considerava os dois turnos o arranjo ideal. O resultado da eleição de 2013 e a grita contra o impasse institucional que veio em seguida tornaram mais fortes as demandas por uma reforma eleitoral. Essa era a situação na primeira semana de dezembro do ano passado, quando o Tribunal Constitucional finalmente declarou o Porcellum inconstitucional, por duas razões: a maioria absoluta concedida ao partido com mais votos, por menos numerosos que fossem, era uma distorção da vontade democrática; e as listas fechadas apresentadas pelos partidos, engessando os candidatos numa hierarquia de importância em cada distrito eleitoral, negavam aos eleitores a liberdade de escolha na seleção dos representantes.
A decisão foi um balde de água fria para o PD. Se isso não mudasse, as eleições seguintes seriam disputadas num sistema proporcional, sem qualquer prêmio ao vencedor, e os eleitores teriam o direito de escolher os candidatos que preferissem na lista – uma abominação para caciques partidários, por enfraquecer seu poder sobre as tropas. Essa era a hipótese que o PD tinha mais razões para temer. Era indispensável eliminá-la. Providencialmente, o homem capaz de fazê-lo tinha chegado. Cinco dias depois da decisão do tribunal, Renzi assumiu o PD. Em poucas sessões a portas fechadas, Renzi e Berlusconi chegaram a um acordo para dividir o bolo eleitoral. Juntos, imporiam ao Parlamento um sistema destinado a lhes garantir a parte do leão da representação política no futuro.
As cláusulas do projeto de lei negociado pelos dois dão um prêmio de 15% das cadeiras da Câmara para qualquer partido que alcançar pelo menos 37% dos votos na primeira votação, com um teto de 55% dos assentos; no caso de nenhum partido obter 37%, qualquer dos dois partidos com maior número de votos na primeira votação que chegar na frente, na segunda votação, receberá 52% das cadeiras. Em cada distrito eleitoral, dos quais haverá um número bem maior, continuarão existindo listas de partido fechadas, porém reduzidas (três a seis candidatos), facilitando a escolha dos eleitores.
O propósito do plano é contornar as objeções do Tribunal Constitucional ao Porcellum, especificando um limite abaixo do qual não haverá prêmio, ao mesmo tempo que preserva a essência do Porcellum – ou seja, uma flagrante distorção da opinião eleitoral, disfarçada por um aceno à maior liberdade de escolha entre os candidatos. Completando o pacote, apelidado de “Renzusconi” por seus detratores, há outra garantia contra tentações imprevisíveis do eleitorado. Três barreiras para a representação parlamentar foram estabelecidas: o partido que concorrer sozinho terá que conquistar ao menos 8% dos votos; o partido que concorrer numa coalizão, 4,5%; e qualquer coalizão, 12%.
O pacto entre os dois líderes estipula também que o Senado, no devido tempo, será abolido como corpo eleito, dando lugar a uma assembleia impotente de figurões regionais – a rigor, uma folha de parreira para acobertar um Legislativo unicameral.
O cálculo de Renzi ao fazer o pacto com Berlusconi tinha duas partes. Havia uma meta de curto prazo: mostrar que Letta se tornara irrelevante e poderia ser despejado sem dificuldade da chefia do governo. De importância maior e mais duradoura era a nítida vantagem que o acordo dava ao PD, permitindo-lhe mover-se mais para o centro, penetrando gradualmente no eleitorado de Berlusconi, sem temer perdas à esquerda. Durante muito tempo, os dois turnos haviam sido o seu Santo Graal: o partido agora o conseguira.
A manipulação de sistemas eleitorais para torcer resultados não é nenhuma raridade nas democracias liberais – é até mais provável que seja a regra do que a exceção. Na Inglaterra e nos Estados Unidos, sistemas distritais de maioria simples datam dos arranjos pré-modernos de uma sociedade aristocrática hierarquizada, na qual poucas eleições eram de fato disputadas. No começo do século XVII, apenas de 5 a 6% dos distritos tinham mais de um candidato. Sua manutenção nos tempos modernos diz muito da natureza da democracia anglo-saxônica. A Quinta República na França e a monarquia restaurada na Espanha são outros exemplos conhecidos de sistemas eleitorais manipulados para impedir a competição indesejada da esquerda.
Na Itália, quando a democracia foi restaurada depois da Segunda Guerra Mundial, a Constituição que emergiu da Resistência foi projetada para prevenir qualquer retorno ao regime autoritário. Na Primeira República, uma Presidência honorífica de poder limitado, duas Casas legislativas de peso igual se equilibravam reciprocamente – primeiro-ministro sem direito a demitir ministros, voto secreto em projetos de lei parlamentares, referendos populares sobre petições de cidadãos e representação proporcional andavam juntos.
Com a Segunda República, essa configuração começou a perder a forma, em duas pontas. Na ponta de baixo, a representação proporcional acabou anulada, com a introdução do prêmio às forças mais votadas, mais ou menos como na Lei Acerbo. Na de cima, a Presidência acabou se tornando o cargo mais poderoso do país, fazendo e desfazendo governos. O pacto entre Renzi e Berlusconi introduzirá uma Terceira República, concentrando poder nas mãos do Executivo e reduzindo as escolhas dos eleitores muito mais drasticamente. Por qualquer critério, o novo sistema eleitoral, que passou pela primeira discussão no Parlamento, é um monstrengo. Não contente com o prêmio que concede ao vencedor, ele vai até além do regime de Mussolini nos obstáculos criados para qualquer partido ou coalizão menor que tente garantir uma cadeira parlamentar que seja.
Com o novo sistema eleitoral, a força de que Renzi desfruta atualmente pode ser estendida por um bom tempo. Da noite para o dia, seu partido se tornou em grande parte uma dócil falange à sua disposição. Ele promete um poder que o pd nunca teve. O partido finalmente encontrou um vitorioso, e por ora as resistências serão poucas. Toda a grande imprensa o apoia, às vezes com rasgos de lirismo. Mas, se esse entusiasmo faz lembrar a euforia da mídia britânica em torno do Blair dos primeiros tempos, o contexto mudou. Na época de Blair, a maré do neoliberalismo estava chegando ao nível máximo. Hoje a maré continua vindo, mas a exuberância desapareceu. O primeiro-ministro britânico David Cameron talvez esteja dando continuidade a Thatcher, mas não há euforia popular com seu programa político. Sob o comando de Hollande ou Rajoy, os cortes de gastos prosseguem, mas num espírito de casmurra necessidade, e não de vibrante emancipação.
O estilo de Renzi não permite isso. Sua mensagem de esperança e entusiasmo requer medidas que vão um pouco além de um aperto de cintos. Tendo chegado ao poder por intermédio de um golpe dentro do partido, sem mandato popular, ele precisa de confirmação nas urnas. No passado, variações de centro-esquerda do neoliberalismo eram tipicamente compensatórias, oferecendo benefícios a setores estratégicos do eleitorado para atenuar seu impacto social. Com a crise, a margem para essas concessões encolheu. Para Renzi, é essencial que volte a ser alargada. As compensações devem ser adiantadas, sem demora, antes que os eleitores se desiludam. Por isso seu pacote inaugural de medidas sociais combina leis que facilitam a demissão, criando um novo contrato de trabalho, com um abatimento de mil euros no imposto dos trabalhadores menos bem pagos.
Para financiar essas e outras despesas de estímulo ao crescimento, Renzi já deixou claro que o espartilho do pacto fiscal europeu terá de ser afrouxado. Levando em conta que os cálculos da Alemanha, da Comissão Europeia e do Banco Central Europeu – as três autoridades que importam – são em última análise mais políticos do que técnicos, é provável que ele consiga o que quer. O zelo de Renzi por reformas estruturais é confiável, de um jeito que o de Berlusconi não era, por isso não há sentido em lhe criar dificuldades na questão dos limites admissíveis de déficit. As regras da UE, caso se mostrem inconvenientes, estão aí para serem flexibilizadas, e não aplicadas mecanicamente. Não se sabe até que ponto esses ajustes injetarão força e energia na economia italiana em longo prazo. O que conta em curto prazo é o oxigênio eleitoral para seu novo governante. Por ora, Renzi tem todas as razões do mundo para se sentir confiante.
E o que dizer do inverno do patriarca? Numa farsa típica da Justiça italiana, sua condenação por multimilionária evasão fiscal terminou com o promotor desistindo de pedir sua prisão domiciliar e o tribunal, comovido com sua mudança de atitude, aplicando-lhe a onerosa pena de quatro horas por semana de prestação de serviços comunitários, num asilo de velhos, perto de seu palácio em Arcore: o desfecho necessário para mantê-lo a bordo do projeto Renzusconi, que ele tinha ameaçado pôr a pique se uma punição pior lhe fosse imposta – mas quem suspeitaria de conivência entre os governantes do país e os agentes da lei?
Por enquanto, Berlusconi conseguiu preservar sua liberdade pessoal. No entanto, corre o risco de receber um castigo muito mais severo quando a sentença de sete anos de prisão por prostituição de menor, dada em junho de 2013, se tornar definitiva num tribunal superior. Com isso, é provável que sua vida política chegue ao fim. O seu partido, o Força Itália, já afundando nas pesquisas, afundará ainda mais se ele não puder mais gerenciá-lo numa base diária.
Com o nome de Berlusconi como único patrimônio real do partido, haverá pressão em suas fileiras para trazer um dos seus filhos como porta-bandeira. Ele é mais chegado à filha mais velha, do primeiro casamento, Marina, que lidera as partes Fininvest e Mondadori do seu império. Mas ela é muito reservada e não dá sinais de querer segurar o bastão. Barbara, a do meio, de 30 anos, ajuda a administrar o clube de futebol de Berlusconi, o AC Milan. É glamorosa, extrovertida. Menos popular do que a meia-irmã, tem mais apetite para a política. No devido tempo, uma chapa Barbara Berlusconi não seria impensável.
Mas os herdeiros biológicos serão a parte menos importante do legado histórico de Berlusconi. Durante os vinte anos da Segunda República, a Itália marcou passo, numa espécie de equivalente peninsular do “período de estagnação” da União Soviética. A corrupção praticamente não diminuiu, e o país entrou em declínio econômico e social. Os governos de Berlusconi foram piores do que os de seus oponentes, mas não significativamente, uma vez que nenhum deles deixou muita marca. A principal mudança do período veio com o ingresso da Itália na união monetária europeia, sob o comando de Romano Prodi. Ela foi ambígua: reduziu os custos de financiamento do país, mas também suas exportações. Como Berlusconi governou um pouco mais de tempo do que a centro-esquerda, sua responsabilidade é um tanto maior.
Mas seria um erro concluir que ele não conseguiu nada, nem mesmo a imunidade em busca da qual ingressou na política. A grande conquista de Berlusconi foi transformar seus adversários em sua imagem. A Itália tem uma longa tradição de ciência política de alta qualidade. No ano passado, uma de suas melhores cabeças, Mauro Calise, publicou um livro intitulado Fuorigioco [Impedimento]. Sua tese é que a personalização da política não é um fantasma antidemocrático que evoca as tentações de um passado desacreditado, como a esquerda italiana temia, mas a forma hegemônica de governo em todas as democracias do Atlântico Norte, exceto a Itália.
O sociólogo Max Weber achava que a liderança patrimonial ou carismática estivesse em declínio no Ocidente. Mas a rigor era a autoridade racional-legal, que ele julgava característica das formas modernas de governo, que estava fora de moda. A videopolítica recriou a liderança carismática e isso não é um perigo, pois a macropersonalização do poder hoje é pública, obrigada a dar explicações e criticável. Ela presta contas a um mundo no qual a comunicação não é mais um instrumento da política, mas sua essência, da qual não há motivo para ter medo. A videopolítica define seus próprios limites, produzindo líderes que são ao mesmo tempo muito poderosos e muito frágeis, vulneráveis às pesquisas de opinião e às urnas. O que essa política ergue, ela pode derrubar com a mesma rapidez.
A verdade é que a macropersonalização não é a antítese da democracia, mas sua condição, numa época em que os partidos perderam força. A esquerda italiana se recusava a entender isso, associando equivocadamente a norma liberal do “presidencialismo monocrático” a lembranças do fascismo, e estigmatizando-a então como berlusconismo. Recolhendo-se a formas coletivas de liderança, desprovidas de qualquer carisma, ela entregou o campo da competição que importa para Berlusconi, um mestre no assunto.
Calise publicou seu livro dois meses antes da captura do pd por Renzi, e a obra pode ser lida como um programa de exemplar lucidez do espetáculo que viria em seguida, quando a centro-esquerda encontrou um líder capaz de superar Berlusconi em seus próprios termos. O que se deixa temporariamente de lado, é claro, neste diagnóstico frio das formas necessárias da vida democrática atual, é qualquer reflexão sobre sua substância. A macropersonalização não é ideologicamente neutra. Para adotar os termos de Calise, ela responde a um mundo no qual as personalidades se tornam grotescamente ampliadas – lembrem-se do Super Mario –, enquanto as diferenças partidárias, e com isso as escolhas do eleitor, encolhem na mesma medida.
A realização duradoura de Berlusconi, da qual ele está ciente, é ter reproduzido em Renzi não apenas um estilo de liderança, mas uma forma de fazer política comparável à sua própria, assim como Thatcher fez com Blair. É graças a ele, como ele mesmo tem dito, que Renzi virou o PD pelo avesso, sepultando de vez qualquer vestígio de um passado socialista-comunista. É uma afirmação legítima.
Mas a Itália, que desde a Segunda Guerra passou por mais rebeliões políticas contra a ordem estabelecida do que qualquer outra sociedade europeia, ainda não está livre delas. Enquanto Berlusconi e Renzi buscam um acordo do qual cada um possa tirar o máximo proveito, as rebeliões assumem formas atuais. O M5S dificilmente escapa ao diagnóstico de Calise, embora não represente a videopolítica.
Grillo personifica o MoVimento 5 Estrelas como seu líder e fundador. Autocrata que não tolera dissidência, ele, como Berlusconi, opera de fora do Parlamento, seguindo atentamente seus partidários lá dentro, e expulsando sumariamente aqueles que saem da linha. Ao mesmo tempo, o número dos que votam nas deliberações online do movimento continua pequeno, no máximo 30 mil. A grosseria de certas intervenções de Grillo repele tanto quanto atrai; o mesmo acontece com a indeterminação ideológica de grande parte do seu apelo, permitindo inflexões tanto à direita como à esquerda. Sua recusa geral a entrar em qualquer tipo de entendimento com outros partidos também tem sido um tiro no pé. Tivesse ele decidido, depois do êxito do M5S na eleição do ano passado, emprestar apoio a Bersani, em troca de um acordo sobre a reforma política, hoje o Quirinal estaria livre de Napolitano, Renzi continuaria na prefeitura de Florença e a Itália teria evitado um neo-Porcellum.
Para ser eficaz, o protesto requer manobras da inteligência, juntamente com a intransigência da vontade. Talvez Grillo, aprendendo com a experiência, se revele mais prático e menos mandão no futuro, e o movimento que criou venha a ser mais do que uma turbulência passageira. É importante para os italianos que isso aconteça, pois, com o desaparecimento de qualquer esquerda significativa, o M5S pode muito bem emergir como a única oposição relevante no país. Com todos os seus defeitos e paradoxos, o movimento ainda representa o único esboço, em qualquer parte da Europa, de contrapeso ao que tomou conta da democracia representativa. Felizmente, no deserto conformista da mídia, a Itália tem um jornal, Il Fatto Quotidiano, fundado quatro anos atrás por um grupo de jornalistas independentes, que não tem medo de nada e quebra todos os tabus: caso único de uma ponta a outra do continente. Em geral simpático ao M5S, Il Fatto também costuma ser agudamente crítico ao movimento: exatamente como deve ser.
Na época de Federico Fellini e da motocicleta Vespa, falava-se no “Milagre Italiano”. Ele há muito se converteu em seu oposto. Durante décadas, os italianos, mais que os estrangeiros, lamentaram o “Desastre Italiano”, com uns poucos e bravos espíritos preservando alguns bolsões de qualidade aqui e ali – a moda, a Ferrari, o Banco Central. Não há dúvida de que o país hoje ocupa lugar especial no conjunto de países europeus ocidentais. Mas, como costuma acontecer, isso é mal interpretado. A Itália não é um membro normal da União. Tampouco é um desvio de qualquer padrão a que possa ser ajustado. Há uma frase consagrada que descreve sua posição, e é muito usada dentro e fora do país, mas que está errada. Em vez de ser uma anomalia na Europa, a Itália está mais para um concentrado da Europa.
O caráter oligárquico do arranjo constitucional do bloco, inicialmente concebido como uma etapa provisória para a soberania popular em escala supranacional, vem se tornando mais rígido com o passar do tempo. Referendos são invalidados com frequência, quando contrariam a vontade dos governantes. Eleitores rejeitam o Parlamento Europeu que nominalmente os representa, e o comparecimento às urnas diminui a cada eleição. Burocratas que nunca foram eleitos policiam os orçamentos aprovados nos Legislativos nacionais, que perderam até mesmo o poder de gastar.
Mas a União não é uma excrescência imposta a países-membros saudáveis. Ela reflete e aprofunda tendências de longo prazo que ocorrem dentro deles. Em nível nacional, praticamente em toda parte, os Executivos domesticam ou manipulam os Legislativos com grande desembaraço; partidos perdem membros; eleitores perdem a crença na própria relevância, enquanto as opções políticas se estreitam e as diferenças propagandeadas nas campanhas eleitorais diminuem ou desaparecem quando os eleitos assumem o poder.
Com essa involução generalizada veio uma corrupção que se difundiu pela classe política, tópico a respeito do qual a ciência política – muito loquaz naquilo que, na linguagem dos contadores, é chamado de déficit democrático da UE – silencia. As formas dessa corrupção ainda não foram plenamente sistematizadas. Existe a corrupção pré-eleitoral: o financiamento de pessoas e partidos por fontes ilegais – em troca da promessa, explícita ou tácita, de favores futuros. Existe a corrupção pós-eleitoral: o uso do cargo para obter dinheiro pela malversação de receitas, ou por propinas em contratos. Existe a compra de vozes ou votos nos parlamentos. Existe o roubo direto do erário. Existe o enriquecimento resultante do exercício de cargo público, antes, durante ou depois.
O panorama desse malavita é impressionante. Um afresco sobre o tema poderia começar com Helmut Kohl, governante da Alemanha por dezesseis anos, que acumulou um caixa dois de campanha de cerca de 2 milhões de marcos alemães [cerca de 3 milhões de reais]. Quando o caso foi descoberto, ele não quis revelar os nomes dos doadores, com medo de que viessem à luz os favores que eles receberam em troca. Jacques Chirac, presidente da República francesa durante doze anos, foi condenado por desvio de dinheiro público, abuso do cargo e conflito de interesses, depois que perdeu sua imunidade. Nenhum deles sofreu punição. Eram os políticos mais poderosos da Europa em sua época. Uma olhada no que ocorreu desde então é suficiente para desfazer qualquer ilusão de que se trata de casos isolados.
Na Alemanha, o governo de Gerhard Schröder garantiu um empréstimo de 1 bilhão de euros à companhia russa Gazprom para a construção de um oleoduto, poucas semanas antes de o chanceler deixar o cargo e entrar na folha de pagamento da empresa com um salário superior ao que recebia para governar o país. Desde que ele saiu, Angela Merkel viu dois sucessivos presidentes da República serem obrigados a renunciar: Horst Köhler, antigo chefe do Fundo Monetário Internacional, por haver explicado que o contingente militar alemão no Afeganistão estava protegendo interesses comerciais do país; e Christian Wulff, antigo chefe democrata-cristão na Baixa Saxônia, em razão de um empréstimo duvidoso para sua casa feito por um empresário amigo. Dois importantes ministros, um da Defesa, a outra da Educação, tiveram que deixar o cargo ao terem os títulos de doutor cassados por furto intelectual. Quando esta última, Annette Schavan, amiga íntima de Merkel (que manifestou plena confiança nela), ainda se agarrava ao cargo, o tabloide Bild comentou que ter uma ministra da Educação que frauda pesquisas era como ter um ministro das Finanças com uma conta bancária secreta na Suíça.
Dito e feito. Na França, descobriu-se que o ministro socialista do Orçamento, o cirurgião plástico Jérôme Cahuzac, tinha de 600 mil a 15 milhões de euros em depósitos secretos na Suíça e em Cingapura. Nicolas Sarkozy, enquanto isso, é acusado por testemunhas de ter recebido cerca de 50 milhões de euros do líbio Muammar Kadafi para a campanha eleitoral que o conduziu à Presidência. Christine Lagarde, sua ministra das Finanças, agora na chefia do FMI, está sendo investigada por seu papel na concessão de 420 milhões de euros em “compensação” para Bernard Tapie, conhecido trapaceiro com antecedentes penais e, nos últimos tempos, amigo de Sarkozy.[1]A contiguidade descuidada com o crime é bipartidária. O socialista François Hollande, atual presidente da República, ia na garupa de uma moto para seus encontros com a amante no apartamento de uma prostituta ligada a um gângster corso morto num tiroteio na ilha.
Na Grã-Bretanha, mais ou menos na mesma época, o ex-primeiro-ministro Tony Blair dava conselhos a Rebekah Brooks, ex-braço direito do magnata da mídia Rupert Murdoch, que corria o risco de ir para a cadeia por cinco acusações de conspiração criminosa relacionadas à época em que dirigia o extinto tabloide News of the World. “Tenha à mão comprimidos para dormir. Isto vai passar. Seja forte”, disse Blair a Rebekah, recomendando-lhe ainda que abrisse uma investigação “independente” sobre o caso como ele mesmo tinha feito para isentar seu governo de qualquer participação na morte de David Kelly, o cientista britânico e inspetor da ONU no Iraque que questionara as razões alegadas para a invasão do país árabe, uma invasão que renderia a Blair – para a sua Faith Foundation, é claro – uma profusão de gorjetas e negócios no mundo inteiro, com destaque para doações de uma empresa petrolífera sul-coreana, presidida por um criminoso condenado com interesses no Iraque, e da dinastia feudal do Kuwait.
Na Espanha, o atual primeiro-ministro, Mariano Rajoy, à frente de um governo de direita, foi flagrado recebendo propinas em obras públicas e outros negócios, no valor total de 250 mil euros ao longo de uma década, que lhe foram repassados por Luis Bárcenas. Tesoureiro do Partido Popular durante vinte anos, Bárcenas está preso por amealhar 48 milhões de euros em contas não declaradas na Suíça. Fotocópias dos livros de contabilidade com registros à mão de suas transferências para Rajoy e outras figuras do partido – como Rodrigo Rato, outro ex-diretor do FMI – circularam na imprensa espanhola. Quando estourou o escândalo, Rajoy passou uma mensagem de texto para Bárcenas com palavras praticamente idênticas às de Blair para Rebekah Brooks: “Luis, eu compreendo. Seja forte. Ligo amanhã. Um abraço.” Oitenta e cinco por cento da opinião pública espanhola acham que Rajoy está mentindo, mas ele continua firme no Palácio da Moncloa.
Na Grécia, o social-democrata Akis Tsochatzopoulos, sucessivamente ministro do Interior, da Defesa e do Desenvolvimento, teve menos sorte: foi condenado a vinte anos de prisão por uma formidável carreira de extorsões e lavagem de dinheiro. Do outro lado do mar Egeu, o premiê turco Tayyip Erdogan – que a mídia e o establishment intelectual da Europa costumavam louvar como o maior estadista democrata da Turquia, cuja conduta praticamente conquistou para o país a filiação honorária à União Europeia – mostrou que é digno de figurar nas fileiras dos dirigentes da ue por outras razões: numa conversa gravada, instruía o filho sobre onde esconder 10 milhões em espécie; noutra, elevava o preço de um suborno num contrato de construção. Três membros do seu gabinete foram derrubados por revelações parecidas, antes que Erdogan fizesse um expurgo na polícia e no Judiciário, para impedir que o assunto fosse adiante.
Enquanto ele fazia isso, a Comissão Europeia divulgou seu primeiro relatório oficial sobre corrupção na ue, cujas dimensões foram descritas como “assombrosas” pelo comissário que redigiu o documento: numa estimativa por baixo, a corrupção custa o equivalente a todo o orçamento do bloco, cerca de 120 bilhões de euros por ano. Prudentemente, o relatório cobria apenas países-membros. A Comissão Europeia, o órgão executivo da UE, com sede em Bruxelas, foi excluída.
A poluição do poder pelo dinheiro e pela fraude, lugar-comum numa União que se apresenta ao mundo como guardiã da moralidade, decorre do esvaziamento da democracia de substância e de participação. As elites, liberadas de uma competição real no topo, ou de uma cobrança significativa vinda de baixo, dão-se ao luxo de enriquecer sem serem perturbadas. A revelação de malfeitos deixa de ter grande importância quando a impunidade é a regra. Os políticos importantes, como os banqueiros, não vão para a cadeia. Da fauna já mencionada, só o grego Akis Tsochatzopoulos sofreu essa afronta.
Mas a corrupção não decorre apenas da decadência da ordem política. É também, obviamente, sintoma do regime econômico que criou raízes na Europa desde os anos 80. Num universo neoliberal, onde os critérios de valor são estabelecidos pelo mercado, o dinheiro se torna a medida de todas as coisas. Se hospitais, escolas e prisões podem ser privatizados e transformados em empresas lucrativas, por que não seria assim também com os cargos públicos?
Além dos efeitos culturais adversos do neoliberalismo, porém, há o seu impacto como sistema socioeconômico – o terceiro e, na experiência popular, o mais agudo dos sintomas da enfermidade que aflige a Europa. Que a crise econômica desencadeada no Ocidente em 2008 foi resultado de décadas de desregulamentação financeira e expansão do crédito até mesmo seus arquitetos de certa forma admitem – veja-se Alan Greenspan. Com conexões do outro lado do Atlântico, os bancos e o mercado imobiliário da Europa se envolveram tão profundamente na debacle quanto os americanos. Na UE, entretanto, essa crise geral também foi determinada por uma peculiaridade: as distorções criadas pela moeda única imposta a economias nacionais diferentes. Quando a crise geral bateu, esse problema levou à beira da falência os países mais vulneráveis da União.
O remédio para eles? Por insistência de Berlim e Bruxelas, não apenas um programa clássico de estabilização, com a redução dos gastos públicos, mas um pacto fiscal estabelecendo o limite de 3% para o déficit público de todos os países-membros. Isso foi fixado como cláusula constitucional, em pé de igualdade com a liberdade de expressão, a igualdade perante a lei, o habeas corpus, a separação de poderes e todo o resto.
Neste cenário, há um país que é visto como o caso mais agudo de disfunção na Europa. Desde a adoção da moeda única, em 1999, a Itália teve o pior desempenho econômico entre os países da ue: vinte anos de estagnação quase ininterrupta, com crescimento abaixo do da Grécia ou da Espanha. Sua dívida pública é superior a 130% do Produto Interno Bruto. No entanto, não se trata de um desses países pequenos ou médios da recém-adquirida periferia da União. É um dos seis membros fundadores, com população comparável à da Grã-Bretanha, e uma economia uma vez e meia a da Espanha. Sua base industrial é a segunda maior da Europa, superada apenas pela da Alemanha. Seus títulos do Tesouro constituem o terceiro maior mercado de títulos soberanos do mundo. Com sua mescla de peso e fragilidade, a Itália é o elo realmente fraco da UE, o ponto onde ela pode, teoricamente, quebrar.
Até agora é também, não por coincidência, o país onde a desilusão com o esvaziamento da democracia produziu não uma indiferença entorpecida, mas uma revolta que abalou as estruturas do seu establishment. Movimentos de protesto emergiram em outros países da UE, mas nada que se compare à novidade ou ao êxito da rebelião eleitoral representada pelo MoVimento 5 Estrelas. A Itália também oferece o espetáculo mais conhecido de todos os teatros de corrupção do continente, e sua personificação mais celebrada: Silvio Berlusconi, o bilionário que governou o país por quase metade da existência da Segunda República.[2]
É inquestionável que Berlusconi se destaca de seus pares no entrosamento de poder e dinheiro. Mas a maneira como fez isso pode ser obscurecida pelo clamor da imprensa estrangeira contra ele, sobretudo as ensurdecedoras denúncias da Economist e do Financial Times.
Duas coisas fizeram de Berlusconi um caso singular. A primeira é que ele inverteu o trajeto típico do cargo para o lucro, acumulando uma fortuna antes de conquistar a chefia do governo, que passou então a usar não tanto para aumentar sua riqueza, mas para protegê-la, e a si mesmo, das múltiplas ações penais decorrentes da forma como a obteve. A segunda é que a principal – mas nem de longe a única – fonte de sua riqueza é um império de tevê e publicidade que o dotava de um mecanismo de poder independente do cargo, que pôde ser convertido em máquina de propaganda e instrumento de governo.
As conexões políticas – laços com o Partido Socialista em Milão e seu cacique, Bettino Craxi – foram cruciais para sua ascensão política, em particular para a construção de uma rede nacional de televisão. Mas, apesar de Berlusconi ter adquirido consideráveis aptidões de comunicação e manobra como político, em sua atitude geral perante a vida ele permaneceu um homem de negócios, para quem o poder significava segurança e glamour, mais do que ação ou projeto. Embora expressasse admiração por Margaret Thatcher e se apresentasse como campeão do mercado e da liberdade econômica, o imobilismo de suas coalizões de centro-direita não se diferenciava muito do das coalizões de centro-esquerda do mesmo período.
Esta é a principal mágoa da opinião neoliberal inglesa contra ele, como pôde ser percebido no tratamento que ela dispensou a dois outros emblemas de corrupção. Durante anos, Erdogan – amigo íntimo de Berlusconi – foi brindado com reportagens lisonjeiras no Financial Times e outros órgãos, que o apresentavam como o arquiteto esclarecido da nova democracia turca. Diferentemente de Berlusconi, porém, cujo governo era anódino em questões de liberdades civis, Erdogan era e é uma ameaça a essas liberdades. Enquanto o boom econômico estimulado por privatizações decolava na Turquia, a prisão de jornalistas, o assassinato de manifestantes, a manipulação de julgamentos e a intimidação de opositores – para não falar na apropriação indébita de dinheiro público – não recebiam a importância devida.
A mesma observação poderia ser feita a respeito de Mariano Rajoy e seus aliados na Espanha. Mas Rajoy, diferentemente de Berlusconi, é um intendente confiável do regime neoliberal: não carece que suplementos da Economist esquadrinhem suas más ações, sobre as quais a revista tem o cuidado de falar o mínimo possível, assim como Bruxelas e Berlim. “Líderes e funcionários da União Europeia se mostram reticentes sobre o escândalo [na Espanha], dada a importância do país para a zona do euro”, comenta Gavin Hewitt, o editor da BBC para a Europa. “A chanceler alemã Angela Merkel e outros depositaram muita fé no senhor Rajoy, que é tido como executor confiável das dolorosas reformas necessárias para revitalizar a economia da Espanha.” Berlusconi pagaria caro por não merecer essa confiança.
Quando Il Cavaliere obteve sua terceira e mais decisiva vitória eleitoral, em 2008, a má opinião que se tinha dele no exterior pouco lhe importava. A frente de centro-direita que ele havia organizado desde 1994 – agora formada pelo partido Povo da Liberdade, fusão de seu partido anterior com o de um velho aliado, o ex-fascista Gianfranco Fini, mais a Liga Norte, de Umberto Bossi – conquistou expressiva maioria nas duas Casas do Parlamento.
Em seus primeiros meses no cargo, um passo ao estilo Thatcher/Blair foi dado, com a redução em 8 bilhões de euros dos gastos com educação, da escola primária às universidades: diminuindo o número de professores, impondo contratos de curto prazo, quantificando as avaliações de pesquisa. Mas o ímpeto reformista parava aí. A mais alta prioridade da coalizão de Berlusconi eram leis sob medida para protegê-lo de ações penais ainda pendentes. Em 2003, seu partido tinha aprovado uma lei garantindo imunidade aos cinco cargos mais importantes do Estado, derrubada pelo Tribunal Constitucional seis meses depois. Em meados de 2008, ele voltou a atacar com uma lei apresentada por seu braço direito no Ministério da Justiça, o advogado siciliano Angelino Alfano, suspendendo julgamento para os detentores dos quatro cargos mais altos do Estado.
Poucos meses depois, a tempestade financeira do outro lado do Atlântico atingiu a Europa: primeiro a Irlanda, depois a Grécia. Na Itália, a Segunda República tinha sido desde o início um fracasso econômico, apesar dos esforços de primeiros-ministros de centro-esquerda para dar um jeito na situação. Os índices de crescimento do PIB italiano despencaram ao longo dos anos 90. Depois de 2000, estagnaram a uma média de 0,25% ao ano. Um ano depois da reeleição de Berlusconi em 2008, a confiança do mercado nos títulos do Tesouro italiano já começava a diminuir. Em 2009, a recessão era mais profunda do que em qualquer outro país da zona do euro, com o PIB caindo mais de cinco pontos percentuais. Para manter os mercados financeiros sob controle, sucessivos pacotes de emergência reduziram o déficit orçamentário da Itália, mas, com a alta das taxas de juros cobradas para o rolamento da dívida pública, no fim de 2010 o governo estava à beira do colapso econômico.
Politicamente, Berlusconi não se saíra muito melhor. De março a outubro de 2009, as manchetes foram dominadas por sensacionais revelações sobre suas extravagâncias sexuais. Sempre inclinado a enaltecer suas virtudes como macho, e agora incitado pelo orgulho a desafiar a idade, ele deixou de lado a prudência mais elementar, promovendo festas com atrizes de segundo escalão e flertando com menores, a ponto de provocar um rompimento público com a mulher, Veronica Lario. Não demorou para que Berlusconi recebesse prostitutas em sua residência romana. Frustrada por não ter conseguido um alvará de construção que lhe foi prometido, uma delas narrou suas visitas.
Na vila palaciana de Berlusconi em Arcore, nos arredores de Milão, organizavam-se orgias com mulheres vestidas de freira, enfermeira e policial. Quando uma das participantes, uma jovem marroquina, acabou sendo presa por furto em Milão, Berlusconi ligou para pedir sua soltura, alegando que era sobrinha do ditador egípcio Hosni Mubarak. Como a moça tinha menos de 18 anos, medidas judiciais contra Berlusconi foram tomadas. Com a degradação de sua imagem, Il Cavaliere ficou enfraquecido. Mas ainda sobreviveu, por algum tempo.
Uma ameaça mais séria à sua posição veio de outro lado. Por excesso de confiança, nascido do êxito eleitoral, ele perdeu o senso dos limites políticos, humilhando gratuitamente Gianfranco Fini, que se julgava seu sucessor e era então presidente da Câmara dos Deputados. No verão de 2010, percebendo que já não tinha razões para supor que seria o herdeiro natural da centro-direita, Fini mudou de lado, levando consigo um número de deputados suficiente para privar o governo de uma maioria estável. Em meados de 2011, enquanto a crise da zona do euro se aprofundava, com a Grécia à beira da inadimplência, a pressão dos mercados sobre os títulos da Itália aumentou. A Alemanha não fazia mais segredo de sua determinação de derrubar qualquer resistência a medidas draconianas de austeridade, e de eliminar líderes que hesitassem em aplicá-las, em Atenas ou Roma. Em agosto, Jean-Claude Trichet e Mario Draghi – o presidente do Banco Central Europeu que saía, e o que entrava – deram praticamente um ultimato a Berlusconi.
Dois meses depois, o premiê grego George A. Papandreou foi forçado a aceitar novos cortes nos gastos públicos e a assumir o compromisso de executar um amplo programa de privatizações. Apavorado com a maré montante de cólera popular que isso provocou, ele anunciou um referendo sobre as medidas, e foi imediatamente intimado por Angela Merkel e pelo francês Nicolas Sarkozy a esquecer a ideia. Uma semana depois, estava fora do governo. Dentro de cinco dias, Berlusconi também.
Mas a dinâmica da queda de Berlusconi não foi a mesma. Na Grécia, Papandreou administrava um empobrecimento econômico generalizado, que provocara protestos sociais em massa. Até o momento em que lhe ocorreu a ideia de um referendo, ele tinha sido um instrumento perfeitamente aceitável da vontade da União. Saiu porque sua posição tinha ficado insustentável internamente.
Na Itália, não havia pauperização em andamento nem mobilização popular.
A maioria de Berlusconi na Câmara era, a essa altura, minúscula. Mas ele ainda controlava o Senado, e não tinha sido nocauteado nos tribunais. Sua posição interna era mais forte do que a de Papandreou. Na UE em geral, porém, era muito maior a hostilidade contra ele, visto como um constrangimento para a classe política europeia; a Alemanha e o Banco Central Europeu estavam determinados a se livrar dele, um obstáculo à indispensável faxina da ordem econômica e social italiana.
Para a remoção de Berlusconi, no entanto, era necessário um mecanismo que vinculasse o desgaste de sua posição na Itália, ainda não completo, com a absoluta aversão a ele no exterior. Para azar do primeiro-ministro, esse mecanismo já estava pronto e engatilhado. Na Segunda República, tinha havido uma ampliação do papel da Presidência nos assuntos políticos da Itália. Durante o reinado anterior da Democracia Cristã, no qual um partido sempre dominava o Legislativo, esse cargo era basicamente cerimonial. Quando coalizões políticas rivais passaram a disputar o poder, abriu-se um novo espaço de manobra para a Presidência.
Berlusconi havia apoiado a eleição de Giorgio Napolitano para a Presidência em 2006, e tinha motivos para achar que sua opção fora sensata. Ao longo de sua carreira, Napolitano vinha exibindo um princípio imutável: a adesão a qualquer tendência política que lhe parecesse vitoriosa no momento. Ainda estudante, filiou-se ao Grupo Universitário Fascista, numa época em que a Itália despachava tropas para participar do ataque nazista à Rússia. Quando o fascismo sucumbiu, o jovem Napolitano optou pela força do comunismo que despontava. Ingressando no PCI no fim de 1945, chegou ao Comitê Central em pouco mais de uma década. Quando tropas e tanques russos esmagaram a Revolução Húngara de 1956, ele aplaudiu. Napolitano era um severo disciplinador de dissidências internas no partido, votando sem hesitação pela erradicação do grupo Manifesto, pelo delito de falar contra a invasão soviética da Tchecoslováquia. Na época, ele era considerado forte candidato à liderança do PCI.
O cargo acabou indo para Enrico Berlinguer, visto como mais conciliador. Mas Napolitano continuou como importante acessório do partido durante a guinada para o eurocomunismo. No fim dos anos 70, foi escolhido para ser o primeiro emissário do PCI para tranquilizar os Estados Unidos sobre a confiabilidade do projeto, tornando-se “o comunista favorito de Kissinger”, nas palavras do New York Times. Nos anos 80, a transferência de lealdade para o novo suserano estava concluída. Com o Terceiro Reich como uma lembrança ruim e a URSS em declínio, os Estados Unidos eram agora a potência a ser cultivada. Responsável pela política externa do PCI, Napolitano se encarregaria de massagear as relações com Washington bem depois do desaparecimento do partido. Já presidente, se desdobraria para agradar tanto a Bush quanto a Obama.
Na Itália, o fracasso da tentativa do PCI de firmar um “acordo histórico” com a Democracia Cristã que lhe permitisse entrar no governo e a ascensão – num clima de corrupção cada vez mais flagrante – do Partido Socialista de Craxi como parceiro principal da DC levaram Berlinguer a dar uma guinada para a esquerda. Denunciando a degeneração do sistema político pelo dinheiro, ele fez um apelo retumbante para uma faxina na vida pública. Napolitano respondeu furiosamente, acusando-o de sectarismo e “injúrias vazias”.
Napolitano encabeçava a corrente mais direitista no PCI da época, os miglioristi, que sentiam certa afinidade com Craxi e não queriam saber de hostilidades contra ele. Sua base era Milão, onde a máquina de Craxi dominava a cidade. Ali, em meados dos anos 80, essa corrente publicava um jornal, Il Moderno, não só subsidiado por Berlusconi como entusiasta de sua proeza de modernizar a mídia e fazer de Milão a capital da televisão na Itália. Isso foi em 1986, quando Craxi era primeiro-ministro. Posteriormente, um tribunal concluiria que a Fininvest, empresa holding de Berlusconi, financiava ilegalmente os miglioristi.
Napolitano foi eleito senador vitalício em 2005. Tornando-se presidente da República um ano depois, lamentaria publicamente que Craxi – que morreu no exílio na Tunísia, depois de condenado à revelia a 27 anos de prisão por descomunal corrupção – tivesse sido tratado tão injustamente. Ele não teve a mesma consideração com Berlusconi, vendo-o com afável condescendência – mas também com alguma justiça – não como um político, pelo menos não no sentido de homem de Estado.
Seja como for, Napolitano e Berlusconi dificilmente poderiam ser mais diferentes em estilo, o primeiro cerimonioso e o outro com sua gabolice um tanto indecente. Mas partilhavam vínculos e simpatias em torno de Craxi em Milão, e um interesse por manter o que consideravam ganhos potenciais da Segunda República: um sistema político bipolar, ao estilo anglo-saxão, que só tinha lugar para uma centro-direita e uma centro-esquerda, despojado de hostilidades contra o mercado e contra os Estados Unidos, seu guardião. Por razões próprias, cada um também temia a persistência dos promotores públicos, que não paravam de trazer à tona acusações contra o líder mais popular do país, e o ressentimento de minorias irresponsáveis que faziam cavalo de batalha dessas investigações.
Para Berlusconi, eram ameaças existenciais. Para Napolitano, apenas causavam discórdia, assim como o moralismo de Berlinguer havia feito antes, ameaçando o consenso moderado de que o país precisava. Ele estava mais do que disposto a ajudar Berlusconi a se proteger desses problemas; sancionou sem hesitação a lei proposta pelo ministro da Justiça Angelino Alfano, que garantia, a Berlusconi como primeiro-ministro e a si próprio como presidente, imunidade judicial. Quando a lei foi considerada inconstitucional, endossou o substitutivo aprovado em 2010, permitindo que ministros escapassem de julgamentos invocando suas prementes obrigações de servidores públicos – substitutivo esse que acabou considerado inconstitucional em 2011.
As ações de Napolitano estavam em conformidade com as expectativas de Berlusconi sobre o modus vivendi entre eles. Outra manifestação desse entendimento veio quando a deserção de Gianfranco Fini privou o governo Berlusconi de maioria na Câmara, e a oposição colocou em pauta um voto de desconfiança, com os votos necessários para derrubar o governo.
Em 2008, o premiê de centro-esquerda Romano Prodi passou por uma situação semelhante, quando Berlusconi comprou votos no Senado para derrubá-lo (um senador confessou ter recebido 3 milhões de euros para virar a casaca). Napolitano na época demorou menos de duas semanas para fazer uso da prerrogativa presidencial de dissolver o Parlamento e convocar novas eleições, das quais Berlusconi saiu vitorioso. Mas agora Napolitano convenceu Fini a esperar mais de um mês, enquanto o Orçamento era aprovado, o que deu a Berlusconi tempo para comprar o punhado de deputados de que precisava para recuperar a maioria.
Esse foi, porém, o último favor que Napolitano prestou a Berlusconi. No início de 2011, o governo anunciou que não participaria do ataque à Líbia encabeçado pelos americanos, ao qual a Liga Norte se opunha taxativamente. Para Napolitano, corresponder às expectativas de Washington era mais importante do que dar atenção a sutilezas constitucionais. Sem votação no Parlamento, ele lançou a Itália na guerra, arrancando o apoio de ex-comunistas para despachar a Força Aérea e bombardear um vizinho com o qual o país tinha assinado um Tratado de Amizade, Cooperação e Aliança Militar, ratificado na Câmara três anos antes.
No meio do ano, estimulado pelas crescentes lisonjas da mídia, que o chamava de esteio da República, e com o incentivo de Berlim, Bruxelas e Frankfurt,[3]Napolitano decidiu descartar Berlusconi. A chave para removê-lo era encontrar um substituto que contentasse esses parceiros e o establishment empresarial da Itália. Felizmente, a figura ideal estava à mão: Mario Monti, ex-comissário da ue, consultor sênior do banco Goldman Sachs e agora reitor da Universidade Luigi Bocconi. Havia algum tempo que Monti ansiava pela situação que agora se apresentava diante dele. “Governos italianos só tomam decisões difíceis”, confidenciou à Economist em 2005, “se duas condições forem satisfeitas: é preciso haver uma emergência indiscutível e forte pressão externa.” O momento tinha chegado.
Em junho ou julho de 2011, no mais completo sigilo, Napolitano havia preparado Monti para assumir o governo. No mesmo período, encarregou Corrado Passera, chefe de um dos maiores grupos bancários da Itália, de produzir um plano econômico confidencial para o país. Passera propôs num documento de 196 páginas uma terapia de choque: privatizações no valor de 100 bilhões de euros, imposto predial, imposto sobre o capital, aumento no Imposto sobre o Valor Agregado. Napolitano agora tinha o homem e o plano de que precisava para ejetar Berlusconi. Monti jamais disputara uma eleição, e embora uma cadeira no Parlamento não fosse requisito para sua investidura como primeiro-ministro, seria bom ter uma.
Não havia tempo a perder: em 9 de novembro, Napolitano nomeou Monti senador vitalício, sob os aplausos da imprensa financeira mundial. Ameaçado de destruição pelos mercados se resistisse, Berlusconi capitulou, e dentro de uma semana Monti tomou posse como o novo governante do país, à frente de um gabinete não eleito de banqueiros, homens de negócios e tecnocratas.
A operação que o instalou no poder é uma expressiva ilustração do que os procedimentos democráticos e o império da lei significam hoje na Europa. Foi inconstitucional de ponta a ponta. Do presidente italiano, espera-se que só interfira nas decisões do Parlamento quando estas violem a Constituição. Ele não tem procuração para conspirar, pelas costas de um premiê eleito, com indivíduos de sua preferência – nem mesmo quando estes são parlamentares – para formar um governo do seu agrado. À corrupção dos negócios, da burocracia e da política na Itália, somava-se a da Constituição.
Na época, as articulações não eram plenamente conhecidas. Só viriam à luz este ano, pela boca do próprio Monti, um ingênuo nessas questões, e foram efusivamente negadas por Napolitano. Enquanto isso, a reação do establishment ao novo governo ia do alívio ao júbilo. Até que enfim um governo honesto e competente estava no comando, não só empenhado em reformar tantas coisas erradas que havia na Itália – o mercado de trabalho pouco flexível, as aposentadorias insustentáveis, o nepotismo nas universidades, a falta de competitividade na indústria, a evasão fiscal –, mas também capaz de conter a tempestade financeira que golpeava o país. Uma nova Segunda República, a verdadeira, poderia surgir agora, depois de vinte anos de tapeação.
Monti – saudado pelo Financial Times como o “Super Mario” – logo frustrou as expectativas. Instalado com a concordância relutante da centro-direita e da centro-esquerda, sua margem de iniciativa era limitada. Nenhum dos dois blocos estava de fato comprometido com ele. Logo ficou claro que seus remédios não trariam a recuperação. A combinação de altos impostos e cortes de gastos poderia reduzir o déficit e baixar os juros da rolagem da dívida, mas intensificou a recessão. O consumo caiu, o desemprego entre os jovens disparou. As reformas estruturais, tais como definidas pela Comissão Europeia e pelo Banco Central Europeu, não foram adiante. Em 2012, o PIB encolheu 2,4%. Politicamente, havia pouco a ganhar sustentando um governo que se tornara impopular. No fim do ano, a centro-direita retirou seu apoio e Napolitano foi forçado a dissolver o Parlamento, mantendo Monti no cargo até a realização de eleições.
As pesquisas de opinião, por algum tempo, indicaram que a centro-esquerda tinha vantagem nas intenções de voto. Monti fora uma decepção. Berlusconi estava cada vez mais desacreditado, e a coalizão de centro-direita sofrera divisões. A centro-esquerda, embora longe de viver um período promissor, estava em melhor forma. O novo Partido Democrático, nascido de uma fusão entre os remanescentes do comunismo italiano e uma ala da Democracia Cristã, tivera desempenho desastroso em 2008, sob o comando do insignificante líder Walter Veltroni. Após a saída de Veltroni, o pd elegeu um novo líder, Pier Luigi Bersani, proveniente do antigo PCI. Sem ser inspiradora, a liderança de Bersani pelo menos impediu que o apoio ao partido continuasse a despencar.
No outono de 2012, desafiado pelo jovem prefeito de Florença, Matteo Renzi, que fizera seu nome sugerindo que a geração mais velha de políticos fosse toda descartada no ferro-velho, Bersani o venceu confortavelmente nas primárias do partido, num comparecimento substancial que elevou a reputação do PD, aumentando sua vantagem nas pesquisas.
Restava um curinga. Três anos antes, o comediante Beppe Grillo havia lançado um movimento contra o establishment político que obteve algum êxito nas eleições locais. Não se sabia ao certo até que ponto era para ser levado a sério. Mas como nada parecido existia em qualquer outro lugar da Europa, nem havia um precedente que servisse como referência, não podia deixar de ser levado em consideração. Grillo começara como comediante stand-up nos cabarés dos anos 70, passando depois a fazer programas populares de tevê. Em 1986, depois de contar uma piada segundo a qual, num banquete para Craxi em Pequim, um dos seus assessores lhe perguntou, espantado, “Se todo mundo aqui é socialista, de quem será que estão roubando?”, Grillo foi vetado nas tevês públicas. Nos anos 90, ele ocupou teatros e praças para apresentar monólogos que tratavam dos inumeráveis escândalos do período com uma combinação de grosseria rude e humor.
Seu público disparou quando ele passou a usar a internet para suas mordazes demolições da ordem constituída e de seu pessoal – a centro-direita e a centro-esquerda, a televisão e a imprensa. Seu blog teve um êxito avassalador. Por essa época, ele já trabalhava em estreita colaboração com o especialista em software Gianroberto Casaleggio, e em 2009 os dois lançaram o MoVimento 5 Estrelas, como uma revolta contra o sistema político. As estrelas representavam as questões essenciais que pretendiam levantar: água (sob ameaça de privatização), meio ambiente, transporte, conectividade e desenvolvimento. Candidatos do M5S [MoVimento 5 Stelle, em italiano] que concorressem em eleições assumiam o compromisso, exigência única no mundo, de não aparecer na televisão e, se eleitos, de reduzir seu salário de parlamentar ao salário mínimo, destinando o resto a programas públicos.
O próprio Grillo estava desqualificado para concorrer ao Parlamento: aos 30 e poucos anos foi condenado por homicídio culposo, depois que seu jipe derrapou numa estrada coberta de gelo e caiu numa encosta, matando três passageiros. Mas podia fazer campanha. Viajando pelo país numa “Turnê Tsunami” que o levou a oitenta cidades, a juba grisalha já conhecida de todos, ele atacava não só as “duas castas” da Itália – a dos políticos e a dos jornalistas –, mas também o establishment burocrático e bancário europeu.
Quando os resultados das eleições foram divulgados, o Partido Democrático sofreu um choque duplo. Embora o que sobrava da coalizão de Berlusconi tivesse perdido 7 milhões de votos, a centro-direita ficou apenas 0,35% atrás da centro-esquerda, que também perdeu mais de 3 milhões. Nenhum dos blocos alcançou nem sequer 30% do total de votos. Já o M5S disparou de zero para 25% da votação, tornando-se, quando se excluíam os expatriados da conta, o maior partido da Itália. Os grillini receberam votos de operários, pequenos empresários, autônomos, estudantes e desempregados; a centro-direita só prevaleceu entre as donas de casa, e a centro-esquerda entre aposentados e trabalhadores de colarinho branco.
Essa era a aritmética eleitoral. A distribuição das cadeiras no Parlamento era outra questão. Para a Segunda República fora fundamental uma mudança no sistema eleitoral – a abolição da representação proporcional em favor de um sistema distrital simples, de modelo anglo-saxão, em que é eleito quem tenha a maioria simples dos votos em cada distrito eleitoral.[4]Nenhuma mudança foi exigida com mais paixão, como indispensável para um governo responsável e eficiente, pelo pensamento único da época.
Nada parecido aconteceu. Em 2005, a coalizão de centro-direita no poder, temendo ser derrotada nesse sistema – do qual se beneficiara anteriormente –, aboliu-o em troca de um sistema nominalmente proporcional, mas acrescido de uma recompensa que dava à coalizão vitoriosa, fosse qual fosse a percentagem de votos por ela obtida, uma maioria automática de 54% das cadeiras na Câmara.
O Porcellum, como o novo sistema eleitoral ficou conhecido, descendia de duas notórias distorções da vontade popular na Itália: a Lei Acerbo, de 1923, aprovada à força por Benito Mussolini para consolidar seu governo, que concedia dois terços dos assentos do Parlamento a qualquer partido que ultrapassasse a barreira dos 25% dos votos, e uma lei de 1953 que premiava com 65% das cadeiras qualquer coalizão que conseguisse mais de 50% (de tão impopular, ela teve de ser revogada quando o governo da Democracia Cristã se mostrou incapaz de alcançar os 50% mais um exigidos na única eleição realizada sob suas regras).
Em 2013, a centro-esquerda, apesar da pequena margem de vitória, angariou uma esmagadora maioria de deputados: 345 contra 125 da centro-direita, e 109 do M5S, de um total de 630. Mas isso não lhe abriu caminho para o governo, pois, de acordo com a Constituição, o Senado requer uma base regional de eleição. Portanto, o prêmio em cadeiras no Senado foi dado à coalizão mais votada dentro de cada região. No fim das contas, o resultado foi bem menos favorável para o PD, que só ganhou 123 dos 315 assentos. Para formar um governo, seria preciso obter um voto de confiança nas duas Casas.
Para tanto Bersani tinha que buscar um acordo, de coalizão ou tolerância, com Berlusconi ou Grillo. O primeiro era execrado pela base do PD, e ele procurou o outro. Mas Grillo não demonstrou interesse. Para o M5S, o desfecho ideal do impasse pós-eleitoral seria um governo Berlusconi–Bersani, que comprovasse sua alegação de que a centro-direita e a centro-esquerda eram dois lados da mesma moeda. Restava, pois, a opção de um gabinete minoritário de centro-esquerda, dependente da tolerância a suas medidas caso por caso.
Napolitano – a quem cabia, como presidente, convidar o líder da coalizão vitoriosa a formar o governo – rejeitou o arranjo. Insatisfeito com o fim prematuro do regime de Monti, ele queria reeditá-lo. Coerente com uma carreira de adesão ao poder mais forte do momento, para ele era imperativo, portanto, ter um governo bipartidário que protegesse a estabilidade e a austeridade exigidas por Frankfurt e Bruxelas contra a agitação populista.
Diante dessa possibilidade, Bersani fincou pé. Não havia solução à vista para o impasse quando o mandato presidencial de Napolitano chegou ao fim. Editoriais implorando que aceitasse um segundo mandato como única barreira contra o caos tomaram conta da imprensa. Mas havia uma regra tácita segundo a qual nenhum presidente italiano servia por mais de um mandato, e Napolitano repudiou a ideia. Tinha cumprido seu dever e já estava arrumando as malas.
Enquanto o fazia, prestou um último serviço. Em 5 de abril, indultou o coronel americano Joseph Romano, condenado à revelia a cinco anos de prisão por ter participado, em Milão, do sequestro de um clérigo egípcio, em seguida levado num avião militar americano para o Cairo, onde sofreu meses de tortura nas mãos da polícia de Mubarak. Constitucionalmente, um perdão presidencial só pode ser concedido por razões “humanitárias”, e não “políticas”. Romano não tinha passado um dia sequer na cadeia, pois fugira do país. Mas Obama havia pedido pessoalmente que esse detalhe fosse ignorado, e Napolitano não hesitou, como já o fizera tantas vezes, em desconsiderar a Constituição, explicando que tinha indultado Romano para “evitar uma situação de evidente embaraço para um país amigo”.
O presidente italiano é eleito em sessão conjunta das duas Casas do Parlamento, mais representantes das regiões, em votação secreta. Nas três primeiras votações, exige-se maioria de dois terços; subsequentemente, maioria simples. Como os votos são secretos, a disciplina partidária é fraca, e muitos turnos podem ser necessários para que se produza um candidato bem-sucedido. Em 2013, os eleitores eram 1 007, o que requeria 672 votos na primeira série de rodadas, e 504 em seguida. A centro-esquerda tinha 493 votos, uma posição bastante forte. Mas, como se espera que o presidente esteja acima da divisão política, o costume determina que um candidato de sucesso desfrute de certo grau de consenso suprapartidário. O PD buscou, portanto, o acordo da centro-direita para apresentar uma figura que ambos pudessem apoiar.
Franco Marini, veterano democrata-cristão e ex-presidente do Senado, foi escolhido. Seu nome, porém, foi rejeitado por Matteo Renzi, o prefeito de Florença, que liderou uma deserção dentro do PD. Marini obteve 521 votos, longe dos dois terços, mas suficientes para a maioria simples. Desanimado com o contratempo, o PD, em vez de segurar sua aposta até o quarto turno de votação, abandonou Marini e, de forma tumultuada, votou em branco nas duas votações subsequentes, das quais o jurista Stefano Rodotà, proposto pelo M5S, emergiu com 230 e 250 votos.
Grillo, deixando de lado sua recusa em negociar com o PD, pediu ao partido que somasse forças com o M5S para eleger Rodotà no turno seguinte, dando a entender que se isso ocorresse seria possível a cooperação entre os dois para a formação do governo. Rodotà não era uma escolha sectária; amplamente respeitado, havia sido presidente dos Democratas de Esquerda, a encarnação anterior do PD. Mas, com seu apego à legalidade constitucional, Rodotà não era aceitável para o partido em que o PD havia se transformado, que temia que ele viesse a impedir alterações institucionais que planejava.
Reagrupando as tropas do PD, Bersani propôs em seu lugar o ex-premiê Romano Prodi. Agora bastava a maioria simples. A centro-direita não participou da votação. Mas, feita a contagem dos votos, Prodi tinha recebido apenas 395 votos – 100 a menos do que a centro-esquerda detinha. Dessa vez, quem sabotou o candidato do partido foram os seguidores de Massimo D’Alema, rival de Prodi nos anos 90. O PD ficou parecendo uma turba desmoralizada. Em lágrimas, Bersani renunciou à liderança, e debaixo do ulular da imprensa, que alertava para o risco de o país se tornar ingovernável, o PD correu para se juntar a Berlusconi nas súplicas para que Napolitano salvasse a Itália, aceitando um segundo mandato. Com protestos de que o fazia contrariando a própria vontade, ele cedeu, e na sexta votação escorregou sem percalços de volta para o Palácio do Quirinal.
Ainda faltava formar um governo, mas, com Bersani fora do caminho, Napolitano podia seguir em frente e criar o governissimo que tanto queria, juntando a centro-direita e a centro-esquerda. Para primeiro-ministro escolheu o vice-líder do PD, Enrico Letta, ex-democrata-cristão. Angelino Alfano, responsável pela lei que conferia imunidade a Berlusconi e Napolitano, ficou sendo vice-primeiro-ministro. Um funcionário do Banco Central foi instalado no Tesouro como garantia de continuidade das políticas de Monti.
Berlusconi, porém, devia grande parte de sua recuperação eleitoral à promessa de rescindir o imposto predial de Monti, e fez do cumprimento dessa promessa uma condição para participar da coalizão. O resultado foi um governo que ziguezagueava de um lado para outro, entre compromissos incompatíveis. Pelo fim do ano, a economia tinha caído mais 1,9% e a dívida pública crescera para 133% do PIB.
Mas as atenções do público rapidamente se voltaram para os azares de Berlusconi. Em junho, ele foi considerado culpado de prostituir uma menor e condenado a sete anos de prisão. O veredicto pouco o afetou em curto prazo: sucessivas apelações poderiam adiar o julgamento final durante anos. Mas em agosto veio um outro julgamento há muito adiado: quatro anos de prisão (três deles perdoados) por evasão fiscal de 7,3 milhões de euros e a proibição de exercer cargos públicos por dois anos. A pena de prisão deflagrou a cláusula de uma lei aprovada no governo de Monti, alijando do cargo por seis anos qualquer pessoa assim condenada. Sua aplicação significava a expulsão de Berlusconi do Senado.
Ciente de que isso poderia provocar uma rebelião da centro-direita capaz de derrubar seu governo, Letta não teve pressa em levar a questão adiante, enquanto Berlusconi fazia apelos cada vez mais frenéticos para que Napolitano o socorresse. Napolitano estava disposto a conceder o indulto se Berlusconi o pedisse, admitindo sua culpa – ele protestava inocência. Furioso com a falta de compaixão, Berlusconi exigiu que os ministros de seu partido se demitissem do governo. Eles inicialmente obedeceram; depois pensaram em seus empregos e no provável destino da centro-direita, se houvesse novas eleições naquelas circunstâncias. O resultado foi um racha público, com Alfano tirando do controle de Berlusconi um número de parlamentares suficiente para formar outro partido de centro-direita, o que daria ao governo uma maioria estável não mais sujeita ao caprichos do ex-premiê. Dez dias depois, Berlusconi foi expulso do Senado.
A vitória de Letta parecia completa. Suas habilidades diplomáticas, aprimoradas na tradição democrata-cristã, foram importantíssimas na tarefa de separar Berlusconi de Alfano e seus seguidores. No entanto, o triunfo de Letta teve vida curta. Em poucos dias, Renzi venceu as primárias pela liderança do PD, que a renúncia de Bersani deixara vaga, e afastou a velha guarda, abarrotando o aparelho partidário de adeptos e fãs de sua própria geração. Ainda prefeito de Florença, e nem sequer no Parlamento, mas já no comando de seu maior contingente de deputados, ele detinha mais poder real do que Letta, e apressou-se a demonstrá-lo.
Berlusconi podia ser um criminoso condenado, mas não era um pária – continuava à frente do segundo maior partido do país. A solução era um acordo com ele. Renzi apressou-se a manter conversas confidenciais com Berlusconi, e os dois chegaram a um acordo sobre mudanças constitucionais e eleitorais, a serem impostas a um Parlamento ao qual nenhum dos dois pertencia. E onde ficava o primeiro-ministro Letta nisso tudo? Em tuítes, como um adolescente acalmando a namorada prestes a ser descartada, Renzi lhe escreveu: “Sossegue, Enrico, ninguém quer tomar o seu lugar.” Um mês depois, ele ejetava Letta e se instalava pessoalmente na condição do mais jovem primeiro-ministro da Itália.
Assim como sua vítima, Renzi tem antecedentes familiares democrata-cristãos – o pai foi vereador da dc. A família tinha uma empresa de marketing que lhe deu emprego até que se dedicasse à política em tempo integral; entre suas contas estava a do jornal local La Nazione. Renzi ingressou num dos resíduos da dissolução da DC, e foi parar no partido centrista A Margarida, que, no devido tempo, se fundiu com os remanescentes do comunismo italiano para formar a ala direita do PD. Quando tinha 29 anos, foi escolhido pelo partido para ser presidente da província de Florença, cargo que ele posteriormente denunciaria como desperdício de dinheiro e procuraria abolir. Mas, na época, aproveitou o máximo possível, montando um aparato de assessores e projetando-se com uma série de eventos midiáticos, orquestrados por uma empresa que ele criou como órgão de propaganda da província.
Depois de cinco anos, o PD propôs Renzi como candidato a prefeito de Florença, um dos bastiões da centro-esquerda na Itália. Numa decisão muito aplaudida, sua administração transformou o centro histórico em área reservada a pedestres, e deu uma engraxada em sua imagem turística: os cidadãos puderam novamente se orgulhar da cidade. Mas houve pouco progresso na redução da poluição. Fora do centro, o tráfego piorou, e ônibus foram privatizados a despeito da oposição de sindicatos.
Aplaudido inicialmente como o melhor prefeito do país, a reputação de Renzi caiu, em parte devido ao fato de que muitas realizações de que se jactava acabaram se mostrando vazias. Mas ele mirou mais longe. As atividades municipais eram concebidas como um trampolim para o palco nacional. Renzi priorizava shows de alta visibilidade, com celebridades de todo o país protagonizando eventos multimídia e festanças político-culturais na antiga estação ferroviária Leopolda, com rock e vídeos no volume máximo, empresários, atores, filósofos, músicos e escritores proferindo frases lapidares para a multidão, e um finale estrondoso a cargo do próprio prefeito.
Desde sua época como chefe da província, Renzi vinha construindo uma rede de conexões com o mundo dos negócios local. Seu principal financiador era um chefão do setor da construção, Marco Carrai. Quando Renzi ganhou a prefeitura de Florença, Carrai foi incumbido de cuidar do lucrativo complexo de estacionamentos e do aeroporto da cidade, enquanto Renzi se instalava de graça num apartamento à disposição de Carrai – arranjo atualmente sob investigação judicial.
Concorrendo a líder do PD três anos depois, com sua campanha recebendo até 600 mil euros da Fundação Big Bang, cujos doadores permaneceram em grande parte no anonimato, Renzi não poupava despesas. Uma das grandes contribuições veio do maior gerente de fundos especulativos da Itália, Davide Serra, cujo Algebris Investments inclui um esconderijo nas ilhas Cayman. Residente em Londres, Serra se tornou o batedor que abre caminho para Renzi no grande mundo das finanças. Em Florença, a Cassa di Risparmio, o instituto municipal de poupança, tem, sem dúvida por pura coincidência, investido em títulos da Algebris.
As empresas talvez se beneficiassem de uma troca de favores em nível municipal, mas nacionalmente foi a mensagem ideológica de Renzi que conquistou os sorrisos do dinheiro graúdo. Os males da Itália advinham de um Estado gastador e do corporativismo, sobretudo dos sindicatos, que obstruía o mercado. Eles precisavam ser desmantelados. A palavra de ordem da esquerda esclarecida deveria ser inovação, em vez de igualdade, por mais que esta última seja um ideal meritório, se entendida corretamente como uma abertura de caminhos para o talento, sobretudo o empresarial. Tony Blair foi um líder que entendeu bem tudo isso, dando um exemplo inspirador do tipo de política de que a Itália necessitava urgentemente.
O culto a Blair reflete, em certo sentido, as limitações provincianas de Renzi: é evidente que ele não tem consciência de que o objeto de sua admiração mal ousa mostrar o rosto em público no país que um dia governou. Mas, noutro sentido, ele se aproveitou das benesses aferidas pelo cartão de visitas como o melhor amigo de Blair na Itália.
Renzi estabeleceu contatos informais com a centro-direita desde que começou a decolar em Florença. Mais ou menos nessa época, fez amizade com um banqueiro florentino, Denis Verdini, que se tornaria seu interlocutor primordial na centro-direita. Quando prefeito, Renzi esteve na vila de Berlusconi em Arcore para um jantar discreto, peregrinação que era tabu no PD àquela altura, e que só foi revelada posteriormente. Mas o que os unia não era apenas a simpatia por Blair ou o reconhecimento do valor do empresário. Berlusconi costuma explicar que vê em Renzi uma versão mais jovem de si mesmo, um sujeito com a audácia e o charme com que tinha cativado o país vinte anos antes.
Em estilo político, os dois têm, de fato, muita coisa em comum. Acima de tudo, uma inabalável autoconfiança na habilidade única de liderar o país. A personalização da política é um traço legendário de Berlusconi. Renzi se projeta num registro diferente, mas comparável. Exibido em pôsteres colados em todo o trajeto de sua turnê pela Itália, seu lema de campanha para conquistar o comando do PD prescindia de mensagem política que não fosse sua própria personalidade. Dizia simplesmente: “Matteo Renzi Já!” Como no caso de Berlusconi, isso bastava. Essa autoconfiança os situa acima das dúvidas e dos escrúpulos de seus pares. Ambos também, é claro, ganharam notoriedade em situações de crise, prometendo ao país um novo começo, quando a ordem política caíra em descrédito geral.
Há também óbvias diferenças entre os dois. Dessas, quatro são mais significativas. Berlusconi entrou na política à frente de um império comercial, fazendo uso de sua vasta fortuna para conquistar um poder que pudesse proteger seus interesses. Tinha quase 60 anos àquela altura. Seu principal instrumento para conquistar e manter o poder era o controle da televisão. Suas habilidades de comunicador eram as de um profissional da telinha, um expert de seus rituais e recursos.
Já Renzi é cria da política pura. Sua ascensão pode ter deixado um vago rastro de fedor – pecunia non olet [dinheiro não tem cheiro] não se aplica bem ao seu caso. Mas o dinheiro, de origem duvidosa ou honesta, tem sido apenas um meio para realizar sua ambição: a riqueza não é um fim. O objetivo é o poder. Esse poder – esta é a segunda grande diferença – foi conquistado por um indivíduo que chegava aos 40, e não aos 60 anos. Uma geração mais jovem.
Berlusconi lastreava grande parte do seu apelo inicial na afirmação de que, além de ser um outsider do sistema político, já demonstrara sua capacidade de criar riqueza como empresário e administrador: poderia governar a Itália tão bem como fizera com suas emissoras de tevê e seu clube de futebol. Renzi apela à idade, não à experiência. Em si, a juventude é uma carta banal, jogada por políticos em ascensão em qualquer sociedade pós-moderna. Mas Renzi fez da juventude algo além do atributo individual: o emblema de um iminente rejuvenescimento coletivo. Esse tipo de promessa não tem as credenciais tangíveis de sucesso material que Berlusconi reivindicava, mas é um apelo igualmente poderoso para duas gerações de italianos sufocados pela imobilidade e decadência da Segunda República.
Além do contraste de mensagens, há uma variação de veículo. Renzi chamou a atenção do público pela primeira vez como vencedor de um popular programa de perguntas e respostas. Jamais perdeu o gosto de aparecer na televisão, onde sua boa aparência e seu jeito petulante fizeram dele uma atração natural quando entrou na política. Mas o tempo mostrou que seu verdadeiro ponto forte era a internet: o Facebook projetou sua imagem e cultivou as bases de modo muito mais rápido do que o fizeram as aparições programadas da tevê, e sob controle muito mais completo; o Twitter lhe serviu para propagar um fluxo contínuo de declarações e opiniões sobre as questões do momento.
Berlusconi, apesar do gosto de contar piadas pesadas em ambientes informais, tendia à formalidade bombástica em seus discursos políticos, que proferia de terno, num estúdio forrado de livros em sua mansão. Renzi é ostentosamente informal, no trajar e no falar. Ao tomar posse, fez um discurso no Senado com as mãos nos bolsos. Não caiu bem. Mas em geral é muito superior a Berlusconi como comunicador, muito mais esperto politicamente, com um talento excepcional para frases de efeito e réplicas mordazes. Renzi não é apenas muito mais rápido no saque verbal. Diferentemente de quase todos os demais líderes ocidentais de hoje, não precisa de marqueteiros para manipular a opinião pública. Ele é, naturalmente, seu próprio relações-públicas. O risco que corre é o de uma arrogância demasiado explícita, que provoca zombarias. Ao longo da carreira, soube transformar as piadas sobre si em divertida autoironia. Resta saber se vai continuar assim, agora que chegou ao topo, onde muitas das farpas que distribui a torto e a direito podem irritar e ofender.
Por enquanto, Renzi vive uma fase boa. Durante vinte anos, os descendentes do comunismo italiano buscaram em vão o cargo de premiê que ele, com um aperto de mãos, conseguiu de Berlusconi em duas semanas. Para o PD, como para seus antecessores, a praga de toda votação na Itália era a presença de rivais menores à esquerda, ou, dor de cabeça mais tolerável, de aliados um pouco à direita. O partido achava que, se eliminasse esses competidores com um segundo turno nas eleições legislativas segundo o modelo francês – no qual, depois de um show de proporcionalidade no primeiro turno, a vitória no segundo é por maioria simples –, poderia assumir seu lugar de direito como partido governante da centro-esquerda num sistema político restringido a ele e a um homólogo de centro-direita.
Essa reforma do sistema eleitoral nunca tinha sido possível, em parte devido à relutância natural dos partidos que desapareceriam com ela ao aprová-la. E também, e mais criticamente, porque Berlusconi, mais capaz do que a centro-esquerda de manter uma ampla coalizão de forças, tinha menos a ganhar com a drástica redução dos partidos representados no Parlamento.
A representação parlamentar justa da opinião política na Itália, uma característica da Primeira República, tinha sido descartada na Segunda. Mas os sistemas eleitorais híbridos posteriores não foram satisfatórios para ninguém. Desses, o Porcellum era tido como o pior. Napolitano, quando voltou à cadeira presidencial, pressionou o Parlamento para se livrar dele. Não era segredo que ele também considerava os dois turnos o arranjo ideal. O resultado da eleição de 2013 e a grita contra o impasse institucional que veio em seguida tornaram mais fortes as demandas por uma reforma eleitoral. Essa era a situação na primeira semana de dezembro do ano passado, quando o Tribunal Constitucional finalmente declarou o Porcellum inconstitucional, por duas razões: a maioria absoluta concedida ao partido com mais votos, por menos numerosos que fossem, era uma distorção da vontade democrática; e as listas fechadas apresentadas pelos partidos, engessando os candidatos numa hierarquia de importância em cada distrito eleitoral, negavam aos eleitores a liberdade de escolha na seleção dos representantes.
A decisão foi um balde de água fria para o PD. Se isso não mudasse, as eleições seguintes seriam disputadas num sistema proporcional, sem qualquer prêmio ao vencedor, e os eleitores teriam o direito de escolher os candidatos que preferissem na lista – uma abominação para caciques partidários, por enfraquecer seu poder sobre as tropas. Essa era a hipótese que o PD tinha mais razões para temer. Era indispensável eliminá-la. Providencialmente, o homem capaz de fazê-lo tinha chegado. Cinco dias depois da decisão do tribunal, Renzi assumiu o PD. Em poucas sessões a portas fechadas, Renzi e Berlusconi chegaram a um acordo para dividir o bolo eleitoral. Juntos, imporiam ao Parlamento um sistema destinado a lhes garantir a parte do leão da representação política no futuro.
As cláusulas do projeto de lei negociado pelos dois dão um prêmio de 15% das cadeiras da Câmara para qualquer partido que alcançar pelo menos 37% dos votos na primeira votação, com um teto de 55% dos assentos; no caso de nenhum partido obter 37%, qualquer dos dois partidos com maior número de votos na primeira votação que chegar na frente, na segunda votação, receberá 52% das cadeiras. Em cada distrito eleitoral, dos quais haverá um número bem maior, continuarão existindo listas de partido fechadas, porém reduzidas (três a seis candidatos), facilitando a escolha dos eleitores.
O propósito do plano é contornar as objeções do Tribunal Constitucional ao Porcellum, especificando um limite abaixo do qual não haverá prêmio, ao mesmo tempo que preserva a essência do Porcellum – ou seja, uma flagrante distorção da opinião eleitoral, disfarçada por um aceno à maior liberdade de escolha entre os candidatos. Completando o pacote, apelidado de “Renzusconi” por seus detratores, há outra garantia contra tentações imprevisíveis do eleitorado. Três barreiras para a representação parlamentar foram estabelecidas: o partido que concorrer sozinho terá que conquistar ao menos 8% dos votos; o partido que concorrer numa coalizão, 4,5%; e qualquer coalizão, 12%.
O pacto entre os dois líderes estipula também que o Senado, no devido tempo, será abolido como corpo eleito, dando lugar a uma assembleia impotente de figurões regionais – a rigor, uma folha de parreira para acobertar um Legislativo unicameral.
O cálculo de Renzi ao fazer o pacto com Berlusconi tinha duas partes. Havia uma meta de curto prazo: mostrar que Letta se tornara irrelevante e poderia ser despejado sem dificuldade da chefia do governo. De importância maior e mais duradoura era a nítida vantagem que o acordo dava ao PD, permitindo-lhe mover-se mais para o centro, penetrando gradualmente no eleitorado de Berlusconi, sem temer perdas à esquerda. Durante muito tempo, os dois turnos haviam sido o seu Santo Graal: o partido agora o conseguira.
A manipulação de sistemas eleitorais para torcer resultados não é nenhuma raridade nas democracias liberais – é até mais provável que seja a regra do que a exceção. Na Inglaterra e nos Estados Unidos, sistemas distritais de maioria simples datam dos arranjos pré-modernos de uma sociedade aristocrática hierarquizada, na qual poucas eleições eram de fato disputadas. No começo do século XVII, apenas de 5 a 6% dos distritos tinham mais de um candidato. Sua manutenção nos tempos modernos diz muito da natureza da democracia anglo-saxônica. A Quinta República na França e a monarquia restaurada na Espanha são outros exemplos conhecidos de sistemas eleitorais manipulados para impedir a competição indesejada da esquerda.
Na Itália, quando a democracia foi restaurada depois da Segunda Guerra Mundial, a Constituição que emergiu da Resistência foi projetada para prevenir qualquer retorno ao regime autoritário. Na Primeira República, uma Presidência honorífica de poder limitado, duas Casas legislativas de peso igual se equilibravam reciprocamente – primeiro-ministro sem direito a demitir ministros, voto secreto em projetos de lei parlamentares, referendos populares sobre petições de cidadãos e representação proporcional andavam juntos.
Com a Segunda República, essa configuração começou a perder a forma, em duas pontas. Na ponta de baixo, a representação proporcional acabou anulada, com a introdução do prêmio às forças mais votadas, mais ou menos como na Lei Acerbo. Na de cima, a Presidência acabou se tornando o cargo mais poderoso do país, fazendo e desfazendo governos. O pacto entre Renzi e Berlusconi introduzirá uma Terceira República, concentrando poder nas mãos do Executivo e reduzindo as escolhas dos eleitores muito mais drasticamente. Por qualquer critério, o novo sistema eleitoral, que passou pela primeira discussão no Parlamento, é um monstrengo. Não contente com o prêmio que concede ao vencedor, ele vai até além do regime de Mussolini nos obstáculos criados para qualquer partido ou coalizão menor que tente garantir uma cadeira parlamentar que seja.
Com o novo sistema eleitoral, a força de que Renzi desfruta atualmente pode ser estendida por um bom tempo. Da noite para o dia, seu partido se tornou em grande parte uma dócil falange à sua disposição. Ele promete um poder que o pd nunca teve. O partido finalmente encontrou um vitorioso, e por ora as resistências serão poucas. Toda a grande imprensa o apoia, às vezes com rasgos de lirismo. Mas, se esse entusiasmo faz lembrar a euforia da mídia britânica em torno do Blair dos primeiros tempos, o contexto mudou. Na época de Blair, a maré do neoliberalismo estava chegando ao nível máximo. Hoje a maré continua vindo, mas a exuberância desapareceu. O primeiro-ministro britânico David Cameron talvez esteja dando continuidade a Thatcher, mas não há euforia popular com seu programa político. Sob o comando de Hollande ou Rajoy, os cortes de gastos prosseguem, mas num espírito de casmurra necessidade, e não de vibrante emancipação.
O estilo de Renzi não permite isso. Sua mensagem de esperança e entusiasmo requer medidas que vão um pouco além de um aperto de cintos. Tendo chegado ao poder por intermédio de um golpe dentro do partido, sem mandato popular, ele precisa de confirmação nas urnas. No passado, variações de centro-esquerda do neoliberalismo eram tipicamente compensatórias, oferecendo benefícios a setores estratégicos do eleitorado para atenuar seu impacto social. Com a crise, a margem para essas concessões encolheu. Para Renzi, é essencial que volte a ser alargada. As compensações devem ser adiantadas, sem demora, antes que os eleitores se desiludam. Por isso seu pacote inaugural de medidas sociais combina leis que facilitam a demissão, criando um novo contrato de trabalho, com um abatimento de mil euros no imposto dos trabalhadores menos bem pagos.
Para financiar essas e outras despesas de estímulo ao crescimento, Renzi já deixou claro que o espartilho do pacto fiscal europeu terá de ser afrouxado. Levando em conta que os cálculos da Alemanha, da Comissão Europeia e do Banco Central Europeu – as três autoridades que importam – são em última análise mais políticos do que técnicos, é provável que ele consiga o que quer. O zelo de Renzi por reformas estruturais é confiável, de um jeito que o de Berlusconi não era, por isso não há sentido em lhe criar dificuldades na questão dos limites admissíveis de déficit. As regras da UE, caso se mostrem inconvenientes, estão aí para serem flexibilizadas, e não aplicadas mecanicamente. Não se sabe até que ponto esses ajustes injetarão força e energia na economia italiana em longo prazo. O que conta em curto prazo é o oxigênio eleitoral para seu novo governante. Por ora, Renzi tem todas as razões do mundo para se sentir confiante.
E o que dizer do inverno do patriarca? Numa farsa típica da Justiça italiana, sua condenação por multimilionária evasão fiscal terminou com o promotor desistindo de pedir sua prisão domiciliar e o tribunal, comovido com sua mudança de atitude, aplicando-lhe a onerosa pena de quatro horas por semana de prestação de serviços comunitários, num asilo de velhos, perto de seu palácio em Arcore: o desfecho necessário para mantê-lo a bordo do projeto Renzusconi, que ele tinha ameaçado pôr a pique se uma punição pior lhe fosse imposta – mas quem suspeitaria de conivência entre os governantes do país e os agentes da lei?
Por enquanto, Berlusconi conseguiu preservar sua liberdade pessoal. No entanto, corre o risco de receber um castigo muito mais severo quando a sentença de sete anos de prisão por prostituição de menor, dada em junho de 2013, se tornar definitiva num tribunal superior. Com isso, é provável que sua vida política chegue ao fim. O seu partido, o Força Itália, já afundando nas pesquisas, afundará ainda mais se ele não puder mais gerenciá-lo numa base diária.
Com o nome de Berlusconi como único patrimônio real do partido, haverá pressão em suas fileiras para trazer um dos seus filhos como porta-bandeira. Ele é mais chegado à filha mais velha, do primeiro casamento, Marina, que lidera as partes Fininvest e Mondadori do seu império. Mas ela é muito reservada e não dá sinais de querer segurar o bastão. Barbara, a do meio, de 30 anos, ajuda a administrar o clube de futebol de Berlusconi, o AC Milan. É glamorosa, extrovertida. Menos popular do que a meia-irmã, tem mais apetite para a política. No devido tempo, uma chapa Barbara Berlusconi não seria impensável.
Mas os herdeiros biológicos serão a parte menos importante do legado histórico de Berlusconi. Durante os vinte anos da Segunda República, a Itália marcou passo, numa espécie de equivalente peninsular do “período de estagnação” da União Soviética. A corrupção praticamente não diminuiu, e o país entrou em declínio econômico e social. Os governos de Berlusconi foram piores do que os de seus oponentes, mas não significativamente, uma vez que nenhum deles deixou muita marca. A principal mudança do período veio com o ingresso da Itália na união monetária europeia, sob o comando de Romano Prodi. Ela foi ambígua: reduziu os custos de financiamento do país, mas também suas exportações. Como Berlusconi governou um pouco mais de tempo do que a centro-esquerda, sua responsabilidade é um tanto maior.
Mas seria um erro concluir que ele não conseguiu nada, nem mesmo a imunidade em busca da qual ingressou na política. A grande conquista de Berlusconi foi transformar seus adversários em sua imagem. A Itália tem uma longa tradição de ciência política de alta qualidade. No ano passado, uma de suas melhores cabeças, Mauro Calise, publicou um livro intitulado Fuorigioco [Impedimento]. Sua tese é que a personalização da política não é um fantasma antidemocrático que evoca as tentações de um passado desacreditado, como a esquerda italiana temia, mas a forma hegemônica de governo em todas as democracias do Atlântico Norte, exceto a Itália.
O sociólogo Max Weber achava que a liderança patrimonial ou carismática estivesse em declínio no Ocidente. Mas a rigor era a autoridade racional-legal, que ele julgava característica das formas modernas de governo, que estava fora de moda. A videopolítica recriou a liderança carismática e isso não é um perigo, pois a macropersonalização do poder hoje é pública, obrigada a dar explicações e criticável. Ela presta contas a um mundo no qual a comunicação não é mais um instrumento da política, mas sua essência, da qual não há motivo para ter medo. A videopolítica define seus próprios limites, produzindo líderes que são ao mesmo tempo muito poderosos e muito frágeis, vulneráveis às pesquisas de opinião e às urnas. O que essa política ergue, ela pode derrubar com a mesma rapidez.
A verdade é que a macropersonalização não é a antítese da democracia, mas sua condição, numa época em que os partidos perderam força. A esquerda italiana se recusava a entender isso, associando equivocadamente a norma liberal do “presidencialismo monocrático” a lembranças do fascismo, e estigmatizando-a então como berlusconismo. Recolhendo-se a formas coletivas de liderança, desprovidas de qualquer carisma, ela entregou o campo da competição que importa para Berlusconi, um mestre no assunto.
Calise publicou seu livro dois meses antes da captura do pd por Renzi, e a obra pode ser lida como um programa de exemplar lucidez do espetáculo que viria em seguida, quando a centro-esquerda encontrou um líder capaz de superar Berlusconi em seus próprios termos. O que se deixa temporariamente de lado, é claro, neste diagnóstico frio das formas necessárias da vida democrática atual, é qualquer reflexão sobre sua substância. A macropersonalização não é ideologicamente neutra. Para adotar os termos de Calise, ela responde a um mundo no qual as personalidades se tornam grotescamente ampliadas – lembrem-se do Super Mario –, enquanto as diferenças partidárias, e com isso as escolhas do eleitor, encolhem na mesma medida.
A realização duradoura de Berlusconi, da qual ele está ciente, é ter reproduzido em Renzi não apenas um estilo de liderança, mas uma forma de fazer política comparável à sua própria, assim como Thatcher fez com Blair. É graças a ele, como ele mesmo tem dito, que Renzi virou o PD pelo avesso, sepultando de vez qualquer vestígio de um passado socialista-comunista. É uma afirmação legítima.
Mas a Itália, que desde a Segunda Guerra passou por mais rebeliões políticas contra a ordem estabelecida do que qualquer outra sociedade europeia, ainda não está livre delas. Enquanto Berlusconi e Renzi buscam um acordo do qual cada um possa tirar o máximo proveito, as rebeliões assumem formas atuais. O M5S dificilmente escapa ao diagnóstico de Calise, embora não represente a videopolítica.
Grillo personifica o MoVimento 5 Estrelas como seu líder e fundador. Autocrata que não tolera dissidência, ele, como Berlusconi, opera de fora do Parlamento, seguindo atentamente seus partidários lá dentro, e expulsando sumariamente aqueles que saem da linha. Ao mesmo tempo, o número dos que votam nas deliberações online do movimento continua pequeno, no máximo 30 mil. A grosseria de certas intervenções de Grillo repele tanto quanto atrai; o mesmo acontece com a indeterminação ideológica de grande parte do seu apelo, permitindo inflexões tanto à direita como à esquerda. Sua recusa geral a entrar em qualquer tipo de entendimento com outros partidos também tem sido um tiro no pé. Tivesse ele decidido, depois do êxito do M5S na eleição do ano passado, emprestar apoio a Bersani, em troca de um acordo sobre a reforma política, hoje o Quirinal estaria livre de Napolitano, Renzi continuaria na prefeitura de Florença e a Itália teria evitado um neo-Porcellum.
Para ser eficaz, o protesto requer manobras da inteligência, juntamente com a intransigência da vontade. Talvez Grillo, aprendendo com a experiência, se revele mais prático e menos mandão no futuro, e o movimento que criou venha a ser mais do que uma turbulência passageira. É importante para os italianos que isso aconteça, pois, com o desaparecimento de qualquer esquerda significativa, o M5S pode muito bem emergir como a única oposição relevante no país. Com todos os seus defeitos e paradoxos, o movimento ainda representa o único esboço, em qualquer parte da Europa, de contrapeso ao que tomou conta da democracia representativa. Felizmente, no deserto conformista da mídia, a Itália tem um jornal, Il Fatto Quotidiano, fundado quatro anos atrás por um grupo de jornalistas independentes, que não tem medo de nada e quebra todos os tabus: caso único de uma ponta a outra do continente. Em geral simpático ao M5S, Il Fatto também costuma ser agudamente crítico ao movimento: exatamente como deve ser.
Na época de Federico Fellini e da motocicleta Vespa, falava-se no “Milagre Italiano”. Ele há muito se converteu em seu oposto. Durante décadas, os italianos, mais que os estrangeiros, lamentaram o “Desastre Italiano”, com uns poucos e bravos espíritos preservando alguns bolsões de qualidade aqui e ali – a moda, a Ferrari, o Banco Central. Não há dúvida de que o país hoje ocupa lugar especial no conjunto de países europeus ocidentais. Mas, como costuma acontecer, isso é mal interpretado. A Itália não é um membro normal da União. Tampouco é um desvio de qualquer padrão a que possa ser ajustado. Há uma frase consagrada que descreve sua posição, e é muito usada dentro e fora do país, mas que está errada. Em vez de ser uma anomalia na Europa, a Itália está mais para um concentrado da Europa.
12 de agosto de 2014
PERRY ANDERSON
Piauí 95
Piauí 95
[1]Nicolas Sarkozy,
ex-presidente da França, foi detido para interrogatório em 1º de julho sob
suspeita de ter tido acesso a informação privilegiada no processo em que é
acusado de receber doação ilegal de campanha, inclusive de Kadafi.
[2]Período iniciado em 1993,
depois que sucessivos escândalos de corrupção levaram à dissolução da Democracia
Cristã, que tinha governado o país, geralmente em coalizão com o Partido
Socialista, durante a Primeira República, instaurada depois do fim da Segunda
Guerra Mundial.
[3]Frankfurt é sede do Banco
Central Europeu.
[4]Este sistema tende a
eliminar os partidos que representam correntes de pensamento minoritárias e, por
isso, favorece a formação de maiorias parlamentares.
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