"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quarta-feira, 4 de junho de 2014

À SOMBRA DAS CHUTEIRAS MILIONÁRIAS

 Paixão gruda feito asfalto quente. Quem experimentou, sabe como é difícil largar uma. Passa o tempo e estilhaços grudados, persistentes, teimam em marcar presença. Como disse o Mário Quintana:

Eu, agora – que desfecho !/Já nem penso mais em ti …/Mas será que nunca deixo/De lembrar que te esqueci ?
Boleiros sabem do que estou falando.

Apesar da mercantilização do futebol, é praticamente impossível ignorar o clube ao qual nos ligamos na infância. A razão mostra um mundo de cifrões e lógica empresarial, camisa transformada em adereço de aluguel. A fibra cardíaca, no entanto, é cega e onírica. Prefere evocar tempos que já passaram. O Menino ia ao Maracanã sem medo, não precisava olhar para os lados, temer arrastões.

Via Almir Pernambuquinho enfiar a cara na lama para marcar um gol
(http://www.youtube.com/watch?v=rDSPizjECuQ), Carlos Alberto esquecer uma contusão grave na perna e dar um drible da vaca no adversário. A camisa tinha peso e criava vínculo com a torcida. Alguém apostaria hoje na renovação desta relação afetiva, que transbordava para a seleção brasileira ?

Piso em terreno minado. Falar de Copa do Mundo, por incrível que pareça, já saturou meio mundo. Já houve época em que os preparativos da seleção para uma Copa eram acompanhados de perto pela torcida.
Os jogadores se concentravam numa estação de águas em Minas ou em alguma cidade da região serrana do Rio. Vinham todos de clubes brasileiros, o que, se por um lado acirrava bairrismos, por outro davam uma cara familiar ao selecionado.
Era comum baterem papo com torcedores, sem pressa ou receio. Vejam as fotos de então. Todos pareciam descontraídos, sem o peso de contratos leoninos por baixo do uniforme. Agora, olhem para a Granja Comary. Parece um bunker com requintados recursos tecnológicos.

O esquema de segurança conta com homens do Exército (!), Polícia Federal, Abin (!) e Polícia Militar, além de seguranças privados contratados pela CBF. São cem ao todo, apenas um pouco menos do que o efetivo da UPP do morro Dona Marta, em Botafogo, que tem 60 mil moradores. Barreiras isolam a granja e tudo que esteja num perímetro de 500 metros da porta de entrada estará sujeito a revista.
Nenhum torcedor poderá se aproximar das nossas celebridades, quero dizer, dos milionários jogadores, que casualmente falam português. É um mistério, que a paixão explica mas não justifica, ainda haver gente que se sinta representada por esse exército blindado contra o povo.

SEM MOTIVAÇÃO

As ruas estão carecas, sem enfeites. Faltando pouco para o torneio, material ligado à Copa encalha nas lojas, pouquíssima gente discute escalações, há um clima de apatia no ar. Em Teresópolis, uma réplica da Taça Fifa (será que vou ser processado por quebra de copyright ?) foi queimada. Tudo parece organizado em outra esfera planetária. A Fifa é a grande beneficiária da farra. Envolvida em grandes escândalos de corrupção, garante lucros milionários para seus poderosos patrocinadores. Transformou a Copa no Brasil no que um estudioso classificou como evento essencialmente corporativo.

Nossas autoridades, pateticamente, gritam que esta será a Copa das Copas (sic), sem indicar o que isso significa. A qual padrão se referem ? Será ao inchaço do número de sedes, que nos legará uma coleção dispendiosa de elefantes brancos ? Será à melhoria dos serviços urbanos, prometida e jamais cumprida ? Lembrai-vos dos Jogos Panamericanos de 2007, que deixou ruínas e instalações abandonadas. Sem luta popular, nossas autoridades teriam beijado a bainha da calça de dona Fifa e destruído, no Rio, o Museu do Índio, o Parque Aquático Júlio de Lamare e uma escola municipal, para construir …. um estacionamento!

MARACANÃ

A decisão de construir um estádio municipal no Rio para a Copa de 1950 não foi um edito imperial. Passou por um amplo debate na imprensa, com destaque para o Jornal dos Sports e o jornalista Mário Filho, e na Câmara dos Vereadores. A ideia, que se materializou em seguida, era facilitar o acesso da massa ao futebol, que crescia em popularidade. Durante décadas, ir ao Maraca não foi privilégio das elites. Até o Menino, filho da classe média baixa, podia sentar numa arquibancada sem sangrar o orçamento da família.

Depois de duas reformas saudadas por grandes empreiteiras, em 2007 e agora, o velho estádio teve sua capacidade reduzida em mais de 60% e os ingressos majorados para valores astronômicos. Falta colocar um tapete vermelho ao lado da estátua do Belini. Na inauguração do Itaquerão, em São Paulo, os ingressos populares (sic) custaram R$ 50. A conta é simples: um pai e um filho assistiram a partida Corinthians e Figueirense pela mixaria de uns R$ 120 (considerando transporte e um mate per capita). Clássicos do campeonato nacional têm tido público ridículo. Talvez este seja um dos grandes legados da Copa: elitização de um esporte que, no Brasil, sempre teve cara de povão.

O oportunismo político-eleitoral quer mascarar um dos maiores descalabros da Copa das Copas: a construção de estádios em cidades sem qualquer tradição futebolística.
 O exemplo mais constrangedor é Manaus. Merece o rótulo de “babaquice”, que Lula usou em outras circunstâncias (para ridicularizar o desejo de mais conforto no transporte metroviário). A Arena da Amazônia tem mais de 40 mil lugares. O campeonato amazonense tem média de público inferior a mil torcedores. Juntando todas as partidas do campeonato de 2013, mal se ultrapassou a capacidade da tal Arena. Um monumento indecente ao desperdício.

O custo de manutenção do estádio equivale ao do Engenhão, no Rio. Isso num estado pobre, assolado por carências de todo tipo. O ministro Aldo Rebelo publicou documento consternador, “justificando” a construção da Arena como meio para dar mais visibilidade à Amazônia e suas peculiaridades, entre elas a gastronomia. O oficialismo cobra seu preço em déficit neuronal.

LEMBRANDO NELSON

A cereja deste bolo indigesto foi a exumação de Nelson Rodrigues para enfunar as velas do barco patrioteiro. Com forte aroma de Brasil Grande e uniforme verde-oliva, o cronista que deu um banho de loja no ditador Médici e na ditadura, que, entre outros crimes, massacrou militantes e dirigentes do PCdoB no Araguaia e no bairro paulista da Lapa, retorna como chefe de torcida. O dramaturgo que inovou o teatro brasileiro tinha gosto especial pelas hipérboles e por frases de efeito. Faço um pequeno apanhado de algumas delas, autoexplicativas:
“Foi a vitória do homem brasileiro, ele sim, o maior homem do mundo” (sobre a conquista do bicampeonato mundial, no Chile; O Globo, 18/6/1962).
”O craque brasileiro é muito mais doce, mais educado, mais cavalheiresco do que o europeu” (18/10/1967)
“Eu acho que, até 2000, o Brasil será o que são hoje os Estados Unidos e a Rússia” (O Globo, 31/5/1975)
“”Sou um dos poucos cronistas que aceitam a patriotada com a maior satisfação” (O Globo, 23/7/1977)
“Não há ninguém mais bobo do que um esquerdista sincero. Ele não sabe nada. Apenas aceita o que meia dúzia de imbecis lhe dão para dizer” (s/d)

É neste clima pré-histérico e amnésico que os de cima querem que entremos. Que nos transformemos, à moda do Nelson, em lorpas e pascácios. Sei muito bem que algumas vitórias da seleção e o vértice da bipolaridade vai pra cima. Se for campeã, virão os engenheiros de obras prontas, apontarão o dedo e gritarão: Xô, pessimistas ! Nós é que estávamos certos.
Esta é uma das grandes tragédias nacionais: a memória curta. O que comentei independe do que vai acontecer durante a Copa. Em nome de um nacionalismo maroto e em grande parte sem sentido, somos catequizados para participar de um ritual liderado por ratazanas gulosas e esvaziado. Melhor dizendo: que só a paixão consegue manter em pé. Quanto tempo durará?

(artigo enviado por Mário Assis)

04 de junho de 2014
Jacques Gruman

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