"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

A HIROSHIMA BRASILEIRA


Eram seis horas da manhã de 16 de julho de 1950 - dia da final da Copa - quando, espairecendo pelas imediações do Hotel Paissandu no Flamengo, onde a delegação do Uruguai estava hospedada, o capitão do time, Obdúlio Varela, conhecido pela sua forte personalidade, com passado de peão de obra e boxeador, se defrontou com a manchete do jornal O Mundo numa banca próxima. Com a foto do time brasileiro ao lado, as letras garrafais diziam: “Estes são os campeões do mundo”.

Num segundo, os sentimentos de ira e indignação percorreram-lhe as veias até chegar nas entranhas da alma. Num abrupto impulso, ele comprou todas as edições disponíveis e, de volta ao hotel, distribuiu aos seus companheiros. O recado de Obdúlio era como uma ordem: “Pisen y orinem em el diário”.

Como se não bastasse tamanha injeção de ânimo, já com as seleções perfilados no gramado do Maracanã, o prefeito Mendes de Moraes declarou em alto e bom som: “Vós que daqui a alguns minutos sereis campeões do mundo; vós a quem já saúdo como vencedores; cumpri minha palavra construindo este estádio. Cumpram agora o dever de vocês conquistando a Copa do Mundo”. Não podia dar certo.

Para Nelson Rodrigues a derrota para o Uruguai em 1950 foi “a nossa Hiroshima”. Já segundo Mino Carta aquele 16 de julho “foi um dia de espanto”. Ambos estavam no Maracanã naquela tarde ensolarada quando, aos 34 minutos do segundo tempo, Ghiggia invadiu a área brasileira e, num chute rasteiro, quase sem ângulo, marcou o gol da virada. O silêncio sepulcral dos 200 mil torcedores que estavam no estádio (10% da população do Rio de Janeiro na época) foi a senha para a derrota.

Trinta e seis anos depois da nossa Hiroshima, o repórter Geneton Moraes Neto foi atrás de cada um dos jogadores que estavam em campo no dia do Maracanazo. Todos queriam falar, contar em detalhes o que houve no gramado e o que aconteceu com eles após o jogo. O resultado é o livro Dossiê 50, um documento histórico, relançado nesse ano, com o acréscimo de um depoimento inédito do único jogador ainda vivo entre todos que estiveram em campo na final daquela Copa: justamente o carrasco Ghiggia. 
 
  (Foto: divulgação)
 
Geneton conta, por exemplo, que encontrou Barbosa, o goleiro brasileiro, considerado o maior culpado pelo fracasso da seleção brasileira, no Parque Aquático do Maracanã, do qual era funcionário. Ele se espantou quando, ao convidá-lo para fazer a entrevista no gramado do estádio, recebeu como resposta um seco “não, lá dentro, não”. Segundo Geneton, aquela frase de Barbosa “lá dentro, não” resumia um trauma que parecia resistir à passagem dos dias, dos meses, das décadas, desde julho de 1950.

Os depoimentos são mesmo impressionantes. Friaça, autor do gol brasileiro, disse que teve um apagão depois do jogo. Voltou a si debaixo de uma jaqueira em Teresópolis. Nunca conseguiu se lembrar de como foi parar lá. Estava com cinco quilos abaixo do peso. Bauer conta que voltou para São Paulo deitado no chão de um vagão de trem, pois, contando que ficaria no Rio para as comemorações do título, devolvera a passagem que havia comprado. Danilo, chamado de ‘Príncipe’ pela sua categoria, diz com ironia que parecia o presidente da República descendo do carro vaiado: “Mas era eu chegando em casa depois da derrota”. Zizinho revela que durante anos teve um sonho recorrente: “meu sonho era assim: a gente ainda iria jogar contra o Uruguai. Aquilo era mentira”.

Já Ghiggia afirma que acabou ficando amigo dos jogadores brasileiros, mas que, quando se encontravam, evitavam falar de futebol: “Muitos não acreditavam que tínhamos uma amizade de irmãos. Estive com Zizinho, com Jair, com Ademir. Quando íamos ao Brasil, eles nos recebiam. Quando eles iam ao Uruguai, nós os recebíamos”.

Como está dito na orelha do livro, Dossiê 50 “não é uma tese sobre aquela que já foi considerada a mãe de todas as derrotas. É uma reportagem: a história de 50 na visão de quem suou a camisa dentro de campo, até o último minuto, em busca da impossível vitória. Em qualquer situação e em qualquer época, os dissidentes, os náufragos, os derrotados, os malditos, os esquecidos merecem ser ouvidos. Porque as causas perdidas podem ser fascinantes. E a grande causa perdida do futebol brasileiro é a Copa de 1950. Quem viu – e quem não viu – não se esquece”.

20 de junho de 2014
perfil Roberto Sander - blog da Ruth (Foto: ÉPOCA)

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