Se tudo correr conforme o esperado, frutificarão na cabeça do senador Renan Calheiros ao longo da sessão legislativa que se abre no próximo mês os 10.118 fios de cabelo que lhe foram transplantados da nuca para o cocoruto, em cirurgia realizada em dezembro no Recife. Projeta-se em três meses o prazo para que irrompam, desassombrados como brotos a forçar passagem no solo, os primeiros fios. Isso ocorrerá lá para meados de março. No segundo semestre já terão crescido o suficiente para fazerem diferença. Ganhará o senador no cobiçado reforço à cobertura capilar. Perderá o Senado.
Ao vir a público que Calheiros viajou num avião da FAB para fazer o transplante, enfatizou-se, com justiça, o escândalo que foi ter usado transporte oficial para uma atividade privada. Esqueceu-se desse outro escândalo que é um senador da República submeter-se a transplante de cabelos. Renan comandará o Senado neste ano mais cabeludo, mais satisfeito com a imagem que vê no espelho e tomado de renovado prazer ao deslizar o pente sobre o couro cabeludo ─ mas também mais falso e incondizente com o que se espera de um senador.
O mundo se divide entre homens que podem e não podem fazer transplante de cabelo. Cantores e atores podem. Para alguns, é questão de sobrevivência profissional. Políticos não podem, assim como não podem pintar os cabelos. Isso devia estar na Constituição. Como não está, eis mais um item a ser incluído no rol da sonhada reforma política.
Duas subcategorias podem menos ainda do que o comum dos políticos. A primeira é a dos que gostam de se dar ares de revolucionários. José Dirceu, por exemplo. Ao se apresentar para a prisão, ele fez o gesto de desafio comunista do braço levantado e do punho fechado. Meses antes, havia se submetido a um transplante de cabelos, por sinal com o mesmo doutor Fernando Basto que atendeu Renan e é o preferido dos políticos. Difícil imaginar Che Guevara marcando hora com o doutor Basto, ao descer da Sierra Maestra.
A outra categoria é a dos senadores. Transplantar ou pintar cabelos é algo que se tomou epidêmico entre os políticos brasileiros. Alguns transplantam e, ainda por cima, pintam. Se tal prática já é preocupante em deputados, ministros ou governadores, mais ainda se toma entre senadores.
O Senado, por definição, é o local dos mais velhos, e, por isso mesmo, dos que se supõem mais experientes e mais sábios, entre os encarregados de zelar pela pátria. A palavra tem a mesma raiz de senhor, de senhorial, de senhoril, de sênior, e todas remetem à austeridade, à prudência e à sensatez identificadas com o passar dos anos.
Ora, pintar ou implantar cabelos é, antes e acima de tudo, um ardil destinado a falsear a idade. É portanto tentar dar um drible na senhoria, na senioridade e na senhorilidade em que repousa a própria ideia de Senado. Senador que pinta ou transplanta o cabelo fere o princípio fundador da instituição a que pertence.
Com isso, entra em conflito com ela, apequena-a e desmoraliza-a.
Na conhecida crônica O velho Senado, Machado de Assis recorda os senadores que conheceu como jovem repórter, em 1860: “Uns, como Nabuco e Zacarias, traziam a barba toda feita; outros deixavam pequenas suíças, como Abrantes e Paranhos, ou, como Olinda e Eusébio, a barba em forma de colar; raros usavam bigodes, como Caxias e Montezuma”. Não há sinal de pelos falsificados em nenhum dos velhos políticos que desfilam pela memória de nosso grande romancista.
O marquês de Itanhaém ele lembra que usava cabeleira, mas isso naquele tempo, em vez de trair a tentativa de parecer mais jovem, tinha o efeito contrário.
Itanhaém usava cabeleira porque, sendo o mais velho da casa, ainda cultivava um hábito do começo do século.
Visto de hoje, o Senado de 1860 tinha muitos defeitos, a começar por se constituir num reduto de senhores de escravos, legislando num país escravista. Mas era integrado por cavalheiros que assumiam o caráter sênior, senhoril e senhorial inerente ao cargo. Outro grande escritor brasileiro, Mário de Andrade, calvo notório e precoce, já aos 30 anos, escrevia:
“Muito de indústria me fiz careca / Dei um salão aos meus pensamentos”. Que ninguém se sinta ofendido, afinal há transplantados e transplantados, mas pela lógica do poeta, ao qual adere o colunista com o entusiasmo de irmão em cocoruto abandonado à própria sorte, Renan Calheiros fez o contrário: estreitou os cubículos pelos quais vagueiam seus pensamentos.
26 de janeiro de 2014
Roberto Pompeu de Toledo
VEJA
Ao vir a público que Calheiros viajou num avião da FAB para fazer o transplante, enfatizou-se, com justiça, o escândalo que foi ter usado transporte oficial para uma atividade privada. Esqueceu-se desse outro escândalo que é um senador da República submeter-se a transplante de cabelos. Renan comandará o Senado neste ano mais cabeludo, mais satisfeito com a imagem que vê no espelho e tomado de renovado prazer ao deslizar o pente sobre o couro cabeludo ─ mas também mais falso e incondizente com o que se espera de um senador.
O mundo se divide entre homens que podem e não podem fazer transplante de cabelo. Cantores e atores podem. Para alguns, é questão de sobrevivência profissional. Políticos não podem, assim como não podem pintar os cabelos. Isso devia estar na Constituição. Como não está, eis mais um item a ser incluído no rol da sonhada reforma política.
Duas subcategorias podem menos ainda do que o comum dos políticos. A primeira é a dos que gostam de se dar ares de revolucionários. José Dirceu, por exemplo. Ao se apresentar para a prisão, ele fez o gesto de desafio comunista do braço levantado e do punho fechado. Meses antes, havia se submetido a um transplante de cabelos, por sinal com o mesmo doutor Fernando Basto que atendeu Renan e é o preferido dos políticos. Difícil imaginar Che Guevara marcando hora com o doutor Basto, ao descer da Sierra Maestra.
A outra categoria é a dos senadores. Transplantar ou pintar cabelos é algo que se tomou epidêmico entre os políticos brasileiros. Alguns transplantam e, ainda por cima, pintam. Se tal prática já é preocupante em deputados, ministros ou governadores, mais ainda se toma entre senadores.
O Senado, por definição, é o local dos mais velhos, e, por isso mesmo, dos que se supõem mais experientes e mais sábios, entre os encarregados de zelar pela pátria. A palavra tem a mesma raiz de senhor, de senhorial, de senhoril, de sênior, e todas remetem à austeridade, à prudência e à sensatez identificadas com o passar dos anos.
Ora, pintar ou implantar cabelos é, antes e acima de tudo, um ardil destinado a falsear a idade. É portanto tentar dar um drible na senhoria, na senioridade e na senhorilidade em que repousa a própria ideia de Senado. Senador que pinta ou transplanta o cabelo fere o princípio fundador da instituição a que pertence.
Com isso, entra em conflito com ela, apequena-a e desmoraliza-a.
Na conhecida crônica O velho Senado, Machado de Assis recorda os senadores que conheceu como jovem repórter, em 1860: “Uns, como Nabuco e Zacarias, traziam a barba toda feita; outros deixavam pequenas suíças, como Abrantes e Paranhos, ou, como Olinda e Eusébio, a barba em forma de colar; raros usavam bigodes, como Caxias e Montezuma”. Não há sinal de pelos falsificados em nenhum dos velhos políticos que desfilam pela memória de nosso grande romancista.
O marquês de Itanhaém ele lembra que usava cabeleira, mas isso naquele tempo, em vez de trair a tentativa de parecer mais jovem, tinha o efeito contrário.
Itanhaém usava cabeleira porque, sendo o mais velho da casa, ainda cultivava um hábito do começo do século.
Visto de hoje, o Senado de 1860 tinha muitos defeitos, a começar por se constituir num reduto de senhores de escravos, legislando num país escravista. Mas era integrado por cavalheiros que assumiam o caráter sênior, senhoril e senhorial inerente ao cargo. Outro grande escritor brasileiro, Mário de Andrade, calvo notório e precoce, já aos 30 anos, escrevia:
“Muito de indústria me fiz careca / Dei um salão aos meus pensamentos”. Que ninguém se sinta ofendido, afinal há transplantados e transplantados, mas pela lógica do poeta, ao qual adere o colunista com o entusiasmo de irmão em cocoruto abandonado à própria sorte, Renan Calheiros fez o contrário: estreitou os cubículos pelos quais vagueiam seus pensamentos.
26 de janeiro de 2014
Roberto Pompeu de Toledo
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