Exatos três anos depois da morte do ex-presidente argentino Néstor Kirchner, dissiparam-se no domingo as últimas dúvidas sobre o esgotamento do ciclo político que se abriu com a sua ascensão à Casa Rosada, em 2003, prosseguiu com a eleição de sua mulher Cristina e chegou ao auge em 2011, quando ela conquistou o segundo mandato. Praticamente 7 em cada 10 dos 30,5 milhões de eleitores que foram às urnas para a renovação de metade da Câmara dos Deputados e de um terço do Senado votaram em listas partidárias da oposição, numa repetição dos resultados da disputa parlamentar de 2009.
Cristina tem ainda dois anos para ficar no governo, mas - longe da maioria absoluta no Legislativo, mesmo contando com os seus aliados - o partido kirchnerista Frente para a Vitória (FpV) viu se esfumar o plano de impor uma emenda constitucional, inspirada na Venezuela de Hugo Chávez, que autorizaria a re-reeleição da presidente. "Cristina eterna" se chamava, sem subterfúgios, o seu projeto de perpetuação no poder. A coligação liderada pela sigla oficial acrescentou 3 cadeiras às 127 de que dispunha na Câmara de 257 lugares, ficando, portanto, com exígua maioria. No Senado de 72 assentos, embora tenha perdido 3, a bancada kirchnerista segue majoritária.
Desde a internação de Cristina, no começo do mês, para a remoção de um coágulo na cabeça, os seus aliados previam que muitos argentinos votariam no governo movidos pela compaixão. Isso pode ter ocorrido: se a presidente estivesse levando vida normal, a sua derrota teria sido, quem sabe, ainda maior. O resultado que acaba de vez com a tentativa do kirchnerismo de salvar a face, invocando a posição da FpV no Legislativo, foi o desfecho da principal disputa no país.
Na Província de Buenos Aires, onde se concentram mais de 37% do eleitorado nacional, a lista encabeçada pelo ex-chefe de gabinete de Cristina e atual prefeito de Tigre, Sergio Massa, da Frente Renovadora, venceu com 12 pontos de vantagem a da FpV, conduzida por Martín Insaurralde. Nas primárias de agosto, a diferença não chegou a seis pontos. Massa emerge como o presidenciável a quem Cristina não tem um nome forte a contrapor. O governador da Província de Buenos Aires, Daniel Scioli, que seria o candidato natural do oficialismo, não é considerado suficientemente leal no círculo íntimo da presidenta nem tem o carisma de Massa.
Como se esperava, a FpV fez feio também nos três outros maiores distritos - Córdoba, Santa Fé e Mendoza. Só neste último conseguiu terminar em segundo lugar, mas bem atrás de Julio Cobos, da União Cívica Radical. Ele e o presidenciável assumido, o prefeito de Buenos Aires, Maurício Macri, do PRO, são os únicos não peronistas entre os mais conhecidos políticos do país. Tanto a FpV como a Frente Renovadora, por exemplo, descendem do movimento criado por Perón nos anos 1940. Os peronistas podem se digladiar à morte - como mais de uma vez já fizeram -, mas, somados os votos de suas diferentes facções, ainda conservam a hegemonia política na Argentina.
Isso significa que, em mais de um aspecto, o inexorável fim do ciclo kirchnerista não deverá representar o início de um ciclo antiperonista. O "modelo", como os kirchneristas denominam, com típica arrogância, o seu projeto, acabou rejeitado porque desandou, com a inflação (mascarada) na casa de 25%, crescimento abaixo do projetado, dólar paralelo nas alturas (indicando perda de confiança no governo) e, principalmente, com o populismo autoritário de Cristina, cuja propensão para fazer inimigos e perseguí-los implacavelmente é a marca de nascença do kirchnerismo - ela, afinal, teve um marido a imitar.
Entre a posse do novo Congresso, em dezembro, e a sucessão de 2015, a Argentina conhecerá tempos turbulentos. É de temer o que a presidente fará com os superpoderes que o Legislativo lhe concedeu em matéria de política econômica. "O kirchnerismo duro nunca foi generoso na vitória", observa Ricardo Kirschbaum, editor do Clarín de Buenos Aires. "Menos ainda o será na retirada."
29 de outubro de 2013
Editorial do Estadão
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