"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

domingo, 27 de outubro de 2013

A POSSIBILIDADE DE TRAVAR A PRODUÇÃO DE BIOGRAFIAS NO BRASIL, CONTRIBUI PARA A MUTILAÇÃO DA HISTÓRIA


A leitura da sentença de Tiradentes. Pintura de Leopoldino Faria, 1921.
“A leitura da sentença de Tiradentes” (Pintura: Leopoldino Faria, 1921)


O LIVRO DO ALFERES

Roberto Pompeu de ToledoUm livro, um simples livro, serviu mais que outros fatores para alimentar o entusiasmo, as reflexões e os propósitos do punhado de personagens que, em fins do século XVIII se envolveu no episódio que entrou para a história como Inconfidência Mineira.

O alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, tinha-o consigo na viagem que fez ao Rio de Janeiro, para propagar os ideais da programada revolução. Desfez-se dele pouco antes de ser preso, ao sentir que estava sendo seguido, enviando-o de volta a Minas Gerais por um colega militar.

O livro portava o título, longo como era próprio da época, de Coletânea das Leis Constitutivas das Colônias Inglesas Confederadas sob a Denominação de Estados Unidos da América Setentrional.

Estava escrito em francês, a língua internacional do período. A intenção era divulgar os ideais da Revolução Americana e angariar-lhe apoios, na França em especial, e no mundo em geral.

O Livro de Tiradentes
O Livro de Tiradentes

Um lançamento editorial recente traz, sob o título de O Livro de Tiradentes (Penguin & Companhia das Letras), uma tradução do Recueil (Coletânea, em francês), acompanhada de preciosos ensaios coordenados pelo brasilianista Kenneth Maxwell, autor do fundamental A Devassa da Devassa, sobre o mesmo episódio.

Não adiantou Tiradentes ter tentado se livrar do livro. Tão logo chegou a Minas, o oficial a quem o confiou entregou-o às autoridades. O conteúdo era nitroglicerina pura. “Tratava-se de documentos revolucionários, que constituíam a primeira tentativa de condensar e afirmar princípios, direitos e deveres universais por meio de documentos constitucionais escritos”, escreve Maxwell.

O livro provava, como afirmou uma das testemunhas ouvidas na Devassa — o volumoso inquérito aberto contra os insurretos — que, em vez “da obediência que devem prestar a seus legítimos soberanos”, os acusados acalentavam “a vontade de fazerem do Brasil uma República livre, assim como fizeram os americanos ingleses”.

A Coletânea reunia a Declaração da Independência, os Artigos da Confederação e as constituições de seis das treze ex-colônias inglesas, além de documentos menores. A Constituição dos Estados Unidos não existia ainda, quando da edição do volume. Os Artigos da Confederação cumpriam, em seu lugar, o papel de regular a frouxa união entre as ex-colônias.

Referências aos “americanos ingleses” são numerosas na Devassa — mais de noventa, segundo Maxwell. A maioria é atribuída a Tiradentes. O mais simples entre os cabeças de um movimento que reunia a elite local, ele não lia francês.

Conhecia bem o livro, no entanto, decerto pela tradução e pelos comentários dos companheiros, como indica um episódio relatado nos autos: em meio a uma discussão, em reforço a seus argumentos, sacou da Coletânea e pediu ao interlocutor que lhe traduzisse o artigo da Constituição da Pensilvânia que tratava da eleição dos integrantes de um certo órgão da administração. Lido o tal artigo, segundo a testemunha que relata o episódio, Tiradentes “folheou muito o mesmo livro”.

Os inconfidentes possuíam dois exemplares da Coletânea. O que estava com Tiradentes foi o primeiro a cair em poder das autoridades, causando tal impacto que se abriu um inquérito à parte.

O exemplar, contendo numerosas anotações a tinta — provavelmente dos conspiradores —, foi anexado ao processo e depois da Independência permaneceu “dentro de um saco verde”, junto com outros documentos, nos arquivos do Império, no Rio de Janeiro, até que, em 1860, se decidiu doá-lo à biblioteca que então se constituía no Desterro, nome de Florianópolis à época: em 1984, a pedido do então governador de Minas, Tancredo Neves, o governador de Santa Catarina, Esperidião Amin, devolveu-o a Minas.

Agora figura no acervo do Museu da Inconfidência, em Ouro Preto, ponto final do destino, comum a outros livros, de peça de acusação a relíquia histórica, de maldição à glória.
O que se sabe de Tiradentes é o que está na Devassa.

Ele não teve quem se debruçasse sobre sua biografia, quando ainda era tempo de colher depoimentos de quem o conheceu e recolher documentos que lhe dissessem respeito. Seu rosto não é conhecido. É sempre temerário, e arrisca soar demagógico, buscar num outro período histórico ilustrações do presente, mas que bem faria, à história do Brasil, se dispuséssemos de uma biografia de Tiradentes. A possibilidade de travar a produção de biografias que vige no Brasil de hoje contribui para a mutilação da história.

27 de outubro de 2013
Roberto Pompeu de Toledo

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