"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

O GRANDE DESAFIO AINDA É FISCAL

Cálculos recentes mostram que, na União, as despesas obrigatórias passaram de um pouco mais de 70% da receita corrente líquida, em 2008, para cerca de 104% no corrente ano

À medida que vêm à tona novos dados do IBGE, a luz da retomada do crescimento do PIB se mostra mais visível no fundo do túnel. O evento-chave da última divulgação é que finalmente apareceram sinais de recuperação do investimento privado, variável fundamental nessa narrativa. Aqui, o que conta mesmo é a percepção dos investidores sobre o desempenho futuro da economia, esta, por sua vez, diretamente associada à situação das finanças públicas. Só que, se retirarmos o curto período do recente boom de commodities, o Brasil está em crise fiscal desde o início dos anos oitenta, ou seja, há mais de trinta anos.

Foi graças a ela que as expectativas se tornaram as piores possíveis no segundo mandato Dilma, os investimentos desabaram, e o país despencou na maior e mais demorada recessão de sua história.

Diante desta, as receitas públicas foram ao chão, problemas estruturais das contas públicas se misturaram aos conjunturais, e as soluções apresentadas pelas autoridades se mostraram as mais confusas possíveis, para dizer o mínimo. Acuado pelas agências de risco internacionais, o ministro da Fazenda acaba de bradar que, se for necessário para ajustar o déficit público às metas, o governo aumentará a carga tributária. Nada mais trivial, nem tão inconveniente para um país em depressão econômica.

Olhando para a União, o “x” da questão é o rápido crescimento dos gastos obrigatórios, aqueles que têm por trás alguma determinação legal de que sua realização tem de ocorrer. Cálculos recentes mostram que, na União, as despesas obrigatórias passaram de um pouco mais de 70% da receita corrente líquida em 2008, até chegar a cerca de 104% no corrente ano.

Ou seja, antes mesmo de considerar as despesas discricionárias (onde se situam os investimentos) e o serviço da dívida, a União gasta mais do que arrecada liquidamente. O item de maior peso nos gastos obrigatórios se refere à Previdência, tanto a geral como a específica dos servidores, por isso mesmo sempre destacado quando se fala em fazer algum ajuste.

Por conta desse desarranjo, a União entrou numa trajetória de seguidos e elevados déficits primários, ou seja, de falta de quaisquer recursos não-financeiros para pagar ao menos uma pequena parcela do serviço da dívida, o que, mantida a política de financiar déficits com emissão de moeda à galega, leva à explosão da dívida e de volta à hiperinflação.

Na gestão atual, o governo acabou colocando os seguintes limitadores financeiros adicionais para tentar implementar uma gestão financeira mais equilibrada: 1) uma meta declinante de déficits primários; 2) um teto para o crescimento dos gastos totais (exclusive dívida) equivalente à taxa de inflação, dessa feita por emenda constitucional. E prometeu aprovar uma reforma da Previdência capaz de reduzir esse tipo de gasto de forma expressiva no curto prazo, algo, como se sabe, muito difícil de realizar.

Esqueceu-se, apenas, de verificar que, mesmo atendendo às duas primeiras exigências em 2018 (o que não será fácil), mas dependendo do alcance da terceira, poderia não cumprir algo mais antigo e fundamental, a pouco lembrada “regra de ouro” das finanças públicas brasileiras. Pelo art. 167, III, da Constituição, operações de crédito não podem financiar gastos correntes. E tudo indica que, se nada for feito para evitá-lo, isso acontecerá em 2018, caso em que haveria responsabilização penal e administrativa do Tesouro, e política do presidente. O que mostra que alguma solução, obviamente, a Fazenda acabará indicando.

Em relação às destroçadas finanças estaduais, conforme tenho discutido amplamente neste espaço, a política oficial é deixá-los à deriva, a não ser pelo programa de recuperação dificilmente aplicável — e olhe lá — a qualquer Estado que não o Rio de Janeiro, caso em virtual extrema-unção.

Diante da forte resistência a aprovar a atual reforma, penso ser melhor deixar a mudança das regras previdenciárias para uma segunda fase, e, enquanto há tempo, adotar a melhor solução possível no curto prazo, conforme sugestão que venho apresentando há algum tempo e que pode ser vista em maior detalhe no artigo que publiquei há pouco e está reproduzido em “www.raulvelloso.com.br” com o título “Como manter a regra de ouro”.

Na verdade, para uma boa mudança, e como tenho enfatizado: 1) os efeitos teriam de ser rápidos; 2) o ônus deveria ser maior sobre os menos pobres; 3) algum tipo de troca com grupos sociais relevantes teria de ocorrer; e 4) o equacionamento do brutal problema financeiro de curto prazo dos entes subnacionais deveria ser parte da solução. Agora acrescento um quinto item: a regra de ouro tem de ser obedecida. Só que a estratégia de ação seguida pelo governo não atende a nenhum desses pré-requisitos.

Sendo uma reforma que só mira regras e abrange todo o espectro de beneficiários, afeta igualmente menos pobres e mais pobres. Para não ferir fortemente direitos adquiridos, a vigência de uma reforma como a proposta pelo governo acaba acontecendo muito tempo depois do que os reformistas desejariam.


10 de janeiro de 2018
Raul Velloso é economista

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