Donald Trump sofre de uma doença mental? Para mim, a pergunta não faz sentido. Sempre parto do princípio que todas as pessoas sofrem de uma doença mental. Em rigor, estar vivo é uma doença mental. Mas divago.
Donald Trump sofre de uma doença mental, repito? São incontáveis os artigos que respondem afirmativamente. Já perdi a conta: um jornal, normalmente progressista, convida um psicólogo, um psiquiatra, um neurologista para dissertar sobre a cabeça de Trump.
O diagnóstico é sempre sombrio. Tão sombrio que o leitor poderia pensar que a "medicalização" da política é uma originalidade desta Presidência. Não é.
Houve um tempo em que me diverti com o assunto. Conheço mal a "medicalização" da esquerda pela direita. Mas suspeito que é tão ignara como a "medicalização" da direita pela esquerda -um esporte que teve em Theodor Adorno e seus camaradas os principais gurus: os conservadores, diziam eles, exibem uma personalidade "autoritária", "cínica", "violenta", que só pode produzir o nazismo e o Holocausto.
O livro "The Authoritarian Personality" foi publicado em 1950, poucos anos depois do suicídio coletivo da Europa. O que pode servir de atenuante.
Ou não. Porque Adorno deixou herdeiros. A lista é infinita -Michael Dodd, John Jost, Bob Altemeyer etc.- mas todos eles parecem concordar que o conservadorismo não é uma ideologia; é uma patologia que tem os seus sintomas: o medo do desconhecido; a agressão como linguagem primária; uma intolerância forte a situações de incerteza e ambiguidade; um fechamento cognitivo perante o pensamento abstrato.
Aliás, por falar em pensamento abstrato, estudos recentes (de Gordon Hodson e Michael Busseri) estabelecem uma ligação entre a homofobia e essa dificuldade em lidar com abstrações. Pergunta inevitável: quem não gosta de matemática também não gosta de gays? Parece que sim. O debate continua.
E continua com a participação da tecnologia: John Hibbing, da Universidade do Nebraska, afirma ter provado que existem diferenças na estrutura neuronal de um conservador. Para sermos mais precisos, no seu sistema nervoso simpático, que reage com repulsa sempre que alguém fala em "casamento gay".
Imagino que o próximo passo da ciência é encontrar um fármaco para tratar essa doença -ou, então, uma qualquer forma de lobotomia para que o sistema nervoso simpático seja, precisamente, mais simpático com minorias.
Longe de mim querer proibir, por palavras ou atos, a "medicalização" das ideologias: exercícios divertem-me e, quando leio essa prosa "científica", gosto de escrever os meus pensamentos nas margens do texto.
"Medo perante o desconhecido?" Stálin não tinha. "Intolerância perante a ambiguidade"? Na Coreia do Norte, a família Kim nunca soube o que isso era. "Fechamento cognitivo"? Felizmente, Fidel Castro era um pluralista.
Mas existem duas consequências mais sérias -e a obra do sociólogo Frank Furedi, que está longe de ser um conservador, não se cansa de as lembrar.
A primeira é que a transformação do rival em doente destrói qualquer possibilidade de debate. Se o rival é um louco, só um louco tenta argumentar com outro louco. Donde, silêncio ou insulto são as únicas atitudes razoáveis.
A consequência disso é a incomunicabilidade instalada entre esquerda e direita -ou, em linguagem mais prosaica, a transformação de uma comunidade política democrática numa sociedade de inimigos mais típica de uma ditadura.
Mas existe uma segunda consequência: tratar o adversário como louco é imitar as piores práticas dos regimes totalitários. Na União Soviética, por exemplo, o dissidente não era um agente político válido, ainda que perigoso para o regime. Era um doente mental -e o asilo, ou o "campo de reeducação", era o melhor lugar para ele.
Admito que Donald Trump tem uma saúde mental problemática -repito, todo mundo tem. Mas também admito que Trump gosta de "fabricar" essa instabilidade. No fundo, foi com esse número de circo que ele chegou à Casa Branca.
Se, por mera hipótese, a mídia deixasse de sondar o boletim psiquiátrico de Trump, isso sim, seria uma derrota para o presidente.
Mas "the show must go on" -e a loucura de Trump é sucesso de bilheteria. Para ele e para a mídia.
16 de janeiro de 2018
João Pereira Coutinho, Folha de S.Paulo
Donald Trump sofre de uma doença mental, repito? São incontáveis os artigos que respondem afirmativamente. Já perdi a conta: um jornal, normalmente progressista, convida um psicólogo, um psiquiatra, um neurologista para dissertar sobre a cabeça de Trump.
O diagnóstico é sempre sombrio. Tão sombrio que o leitor poderia pensar que a "medicalização" da política é uma originalidade desta Presidência. Não é.
Houve um tempo em que me diverti com o assunto. Conheço mal a "medicalização" da esquerda pela direita. Mas suspeito que é tão ignara como a "medicalização" da direita pela esquerda -um esporte que teve em Theodor Adorno e seus camaradas os principais gurus: os conservadores, diziam eles, exibem uma personalidade "autoritária", "cínica", "violenta", que só pode produzir o nazismo e o Holocausto.
O livro "The Authoritarian Personality" foi publicado em 1950, poucos anos depois do suicídio coletivo da Europa. O que pode servir de atenuante.
Ou não. Porque Adorno deixou herdeiros. A lista é infinita -Michael Dodd, John Jost, Bob Altemeyer etc.- mas todos eles parecem concordar que o conservadorismo não é uma ideologia; é uma patologia que tem os seus sintomas: o medo do desconhecido; a agressão como linguagem primária; uma intolerância forte a situações de incerteza e ambiguidade; um fechamento cognitivo perante o pensamento abstrato.
Aliás, por falar em pensamento abstrato, estudos recentes (de Gordon Hodson e Michael Busseri) estabelecem uma ligação entre a homofobia e essa dificuldade em lidar com abstrações. Pergunta inevitável: quem não gosta de matemática também não gosta de gays? Parece que sim. O debate continua.
E continua com a participação da tecnologia: John Hibbing, da Universidade do Nebraska, afirma ter provado que existem diferenças na estrutura neuronal de um conservador. Para sermos mais precisos, no seu sistema nervoso simpático, que reage com repulsa sempre que alguém fala em "casamento gay".
Imagino que o próximo passo da ciência é encontrar um fármaco para tratar essa doença -ou, então, uma qualquer forma de lobotomia para que o sistema nervoso simpático seja, precisamente, mais simpático com minorias.
Longe de mim querer proibir, por palavras ou atos, a "medicalização" das ideologias: exercícios divertem-me e, quando leio essa prosa "científica", gosto de escrever os meus pensamentos nas margens do texto.
"Medo perante o desconhecido?" Stálin não tinha. "Intolerância perante a ambiguidade"? Na Coreia do Norte, a família Kim nunca soube o que isso era. "Fechamento cognitivo"? Felizmente, Fidel Castro era um pluralista.
Mas existem duas consequências mais sérias -e a obra do sociólogo Frank Furedi, que está longe de ser um conservador, não se cansa de as lembrar.
A primeira é que a transformação do rival em doente destrói qualquer possibilidade de debate. Se o rival é um louco, só um louco tenta argumentar com outro louco. Donde, silêncio ou insulto são as únicas atitudes razoáveis.
A consequência disso é a incomunicabilidade instalada entre esquerda e direita -ou, em linguagem mais prosaica, a transformação de uma comunidade política democrática numa sociedade de inimigos mais típica de uma ditadura.
Mas existe uma segunda consequência: tratar o adversário como louco é imitar as piores práticas dos regimes totalitários. Na União Soviética, por exemplo, o dissidente não era um agente político válido, ainda que perigoso para o regime. Era um doente mental -e o asilo, ou o "campo de reeducação", era o melhor lugar para ele.
Admito que Donald Trump tem uma saúde mental problemática -repito, todo mundo tem. Mas também admito que Trump gosta de "fabricar" essa instabilidade. No fundo, foi com esse número de circo que ele chegou à Casa Branca.
Se, por mera hipótese, a mídia deixasse de sondar o boletim psiquiátrico de Trump, isso sim, seria uma derrota para o presidente.
Mas "the show must go on" -e a loucura de Trump é sucesso de bilheteria. Para ele e para a mídia.
16 de janeiro de 2018
João Pereira Coutinho, Folha de S.Paulo
Nenhum comentário:
Postar um comentário