Procuradores que o seguem não escondem sua oposição à reforma previdenciária. Atrás da santa indignação contra a elite política, estão motivações corporativas
‘O Brasil é nosso! Precisamos trabalhar incessantemente para retomar os rumos deste país, colocando-o a serviço de todos os brasileiros, e não apenas da parcela de larápios egoístas e escroques ousados que, infelizmente, ainda ocupam cargos vistosos em nossa República.” As frases, que pertencem à linguagem da política, estão na carta de despedida de Rodrigo Janot a seus pares do Ministério Público (MP). Dado o desfecho do “caso Joesley”, a hipótese de que o paladino justiceiro elaborara a catilinária como manifesto de uma candidatura não poderá ser testada. Contudo, na hora da posse de Raquel Dodge, o documento proporciona a oportunidade de uma reflexão sobre “os rumos deste país” — o país no qual uma significativa corrente de procuradores opera como partido, erguendo a bandeira da salvação nacional.
Janot adora Janot. Numa passagem, ele elogia a si mesmo sob o pretexto de dignificar os “críticos” que “ajudaram-me a desviar do caminho da soberba”. Mas, quando alguns (poucos) “críticos” alertaram-no para a natureza escandalosa do acordo de impunidade firmado com Joesley Batista, o procurador-geral acusou-os de “deturpar o foco do debate” com a finalidade maléfica de ocultar “o estado de putrefação de nosso sistema de representação política”. Joesley está na cadeia apesar de Janot — eis um epitáfio apropriado para o seu mandato.
Janot ama Janot. “Devo ter errado mais do que imagino”, sugere com a empáfia da falsa humildade, “mas nunca falhei por omissão, por covardia ou por acomodação”. As célebres “listas de Janot” seguem aí, suspensas no ar, com dezenas de políticos investigados mas nunca denunciados ou processados — e não por culpa do STF, mas de um procurador-geral pouco propenso a juntar provas aos seus múltiplos pedidos de abertura de inquérito. Quem é corrupto e quem não é? O sistema de Justiça solicita resposta nítida, tão célere quanto possível, à indagação. Mas o justiceiro que divide o Brasil em “todos os brasileiros”, de um lado, e a banda de “larápios egoístas e escroques”, de outro, prefere pregá-la eternamente ao firmamento, como peça central de um discurso político demagógico. Os corruptos agradecem.
Janot não junta provas, mas pede prisões à base de delações. Os acordos de delação firmados com Sérgio Machado e Delcídio do Amaral inspiraram o acordo espúrio com Joesley. Do primeiro, nasceram pedidos de prisão preventiva contra Romero Jucá, Renan Calheiros e José Sarney, enquanto do segundo emanaram a prisão do banqueiro André Esteves e denúncias criminais contra Lula e Dilma Rousseff. Agora, porém, quase nada sobra daquelas duas delações perpassadas por mentiras comprovadas. No fim do arco-íris, o justiceiro sem medo ofereceu aos defensores dos acusados a brecha para exibir evidências do atropelo do devido processo legal. Janot minou o instituto da delação premiada, cavando a trincheira de combate escolhida pelas bancas de advogados célebres.
Janot enxerga-se como um desbravador. “Hoje, olhando para trás, percebo o quanto mudamos nesses quatro anos de caminhada”. Não é preciso olhar tão longe. Nos últimos conturbados meses, o justiceiro sem mácula mandou prender dois procuradores federais de seu círculo íntimo, Ângelo Goulart Villela e Marcelo Miller, sob a acusação de se bandearem para a cidadela do inimigo. A dupla história de punhaladas pelas costas revela que, de fato, como proclama um Janot shakespeariano, “há algo de podre no Reino da Dinamarca” — com a condição de interpretarmos a Dinamarca como metáfora do próprio MP. Não se sabe, ainda, se Goulart Villela e Miller são traidores. Conhece-se, contudo, a moldura das supostas traições: a estranha aliança entre o MP e os irmãos Batista. Janot, o destruidor, despede-se em meio a um cenário de ruínas.
Janot, o “primeiro da lista”, não compareceu à posse da sucessora, a “segunda da lista”, como nos recorda implicitamente sua carta repleta de insinuações. A ausência vale como proclamação: “o MP sou eu”, eis a mensagem do justiceiro que queria ser rei. O Brasil de Janot é uma República de facções corporativas com agendas políticas particulares — e em guerrilha perene umas com as outras. Goulart Villela sustenta a tese de que o procurador-geral tramou o célere acordo com Joesley para, derrubando Temer, barrar a ascensão de Raquel Dodge. Janot, o puro, usou o MP para contestar a reforma das leis trabalhistas. A corrente de procuradores que o segue não esconde sua oposição à reforma previdenciária. Atrás da santa indignação contra a elite política, ocultam-se indisfarçáveis motivações corporativas.
Dodge falou em Constituição, leis, liberdades e direitos, uma linguagem incompreensível para Janot. Confirmou seu apoio à investigação implacável da corrupção política, um compromisso pelo qual será julgada no tribunal da opinião pública. Mesmo sua referência infeliz à “harmonia dos Poderes”, sentença típica de um Brasil arcaico, incapaz de conviver com os pesos e contrapesos das democracias modernas, deveria ser traduzida como crítica ao salvacionismo de procuradores messiânicos. Depois do justiceiro, é tempo de reconstrução.
25 de setembro de 2017
Demétrio Magnoli, O Globo
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