"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

SAMBÓDROMO: O DIREITO DE IR E VER OS DESFILES SEM NADA PAGAR


Charge de Jr. Lima, reprodução do site D24am






















Este artigo não é novo. Com o título “O sambódromo e a lei”, foi publicado pela primeira vez em 24.11.1987 na Tribuna da Imprensa e no ano seguinte, com o mesmo título, pelo jornal O Estado de São Paulo. Passam décadas e continua sendo um artigo sempre atual. Muda-se apenas o título. Aquele anterior não cabe mais. A lei perdeu sua referência como parâmetro maior, depois que o STF descumpriu a Lei nº 9882/99 que dispõe sobre o processo e julgamento da ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental que o PCdoB deu entrada na Suprema Corte e os ministros transformaram em julgamento do mérito uma decisão provisória e precária sobre pedido de liminares. Uma “pedalada” jurídica.
Daí o Mandado de Segurança (nº 34000, relator ministro Dias Tófolli) de dois eleitores (Carlos Newton e Frrancisco Bendl) contra o STF, com pedido para que a lei seja cumprida e a ADPF, já encerrada pelo STF, volte a ter curso como manda a lei.
NERO E O COLISEU
A construção, na Rua Marquês de Sapucaí, do que se resolveu intitular de sambódromo ou passarela do samba é ilegal. A cobrança de ingresso para que o povo assista aos festejos que lá são comemorados, é mais ilegal ainda. Diga-se, antes de mais nada, que a obra tem forte conotação de semelhança com a obra de Vespasiano na Roma antiga. O Coliseu, com capacidade também para pouco menos de 100 mil pessoas, surgiu com a finalidade principal de servir de circo, trágico circo para o deleite dos pagãos a verem o sacrifício dos cristãos, e serviu também e principalmente para perpetuar o nome do Imperador que iniciou a obra e que tinha, também, a fama de ser um governante notoriamente aumentador de impostos e taxas.
A diferença no tempo é que no ano de 69, o problema não se concentrava na Educação, na Saúde, na Segurança e sim nas latrinas. “Como seu filho Tito se admirasse por ter sido lançado imposto sobre as latrinas, Vespasiano deu-lhe a cheirar uma moeda e disse-lhe: – Meu filho, o dinheiro não tem cheiro (Lelo, Porto). O Coliseu ficou conhecido como a Casa de Ouro de Nero, o verdadeiro.
DONO DO SAMBÓDROMO É O POVO
Para se ver o Carnaval, porém, seja nas construções erguidas da rua para as calçadas, seja na própria rua, mesmo de pé, logo em áreas de uso comum do povo, como diz a lei, esse mesmo povo, cujo direito de ver e transitar é indiscutível, tem que pagar e muito para usufruir de um bem que, pela tradição e pela legislação ao povo pertence. Foi crendo ainda nisso que Castro Alves proclamou: “A praça! A praça é do povo como o céu é do amor. É o antro onde a liberdade cria águias em seu calor”.
O caso, porém, não é poético ou literário. O homem do povo sabe que “as ruas públicas não são bens dominiais, não se achando no patrimônio de ninguém, mas somente na jurisdição administrativa das municipalidades”, como proclamou o Supremo Tribunal Federal de outrora, pelo voto de Laudo Camargo (RE 10.042). Não é somente Washington de Barros Monteiro quem afirma, mas igualmente Helly Lopes Meirelles diz que os bens de uso comum do povo ou de uso público são os mares, rios, estradas, RUAS e praças. São bens de fruição do próprio povo. A utilização de bens públicos, ou é feita pelo povo em geral (uti universi), relativamente aos de uso como (RUAS, praças, etc.) ou pelo poder público (repartições públicas, veículos, etc.). Toda a utilização contrária à destinação dos bens ou destoantes de seus regulamentos, é ilegítima e pode ser impedida por via administrativa ou judicial.
ERA UMA RUA…
Ora, ninguém contesta que a Marquês de Sapucaí era uma rua ou bem de uso comum. Menos ainda que as arquibancadas foram erguidas com o dinheiro dos munícipes. E se foram erguidas sobre o que é bem de uso comum, continua sendo o povo o titular do direito do bem comum. Sabe-se mais que a rua em questão não foi objeto de tredestinação, o que se traduz na conclusão de que não foi degradada administrativamente, o que exigiria lei expressa.
Logo, é consequência lógica e legal, lá não se podem restringir ao povo o seu direito de Ir e Vir, de entrar e ver o que lá se passa ou passará. Ou condicionar, a pagamento, o exercício dos direitos inalienáveis do povo.
NO CÓDIGO CIVIL DESDE 1916
Nem se invoque a possibilidade de ter ocorrido a figura da afetação, que Freitas do Amaral, o professor emérito e político combativo de Portugal, define como sendo destinação, por lei, regulamento ou ato administrativo, de uma certa coisa para outros fins que não os que devem suportar-se conformes, em primeira linha, à natureza da coisa. Ele dá exemplos expressivos e adequados ao caso em tela: “É o que se dá, por exemplo, quando uma praça pública é destinada extraordinariamente para servir de mercado, ou é ocupada para a realização de um festa tradicional, ou ainda, quando um monumento nacional é utilizado para um concerto (“A Utilização do Domínio Público Pelos Particulares”, página 47). Em primeiro lugar, porque não se vislumbra que a afetação importe em pagamento, para que o povo passe ou entre ou veja. Em segundo lugar, porque inadmite a eternização do estado da coisa. Tudo isso que a doutrina registra reflui do artigo 66 do Código Civil de 1916 e repetido, sem retoque, no artigo 99, I, do Código Civil de 2003: “São bens públicos os de uso comum do povo, tais como os mares, rios, estradas, ruas e praças”.
ASSIM FOI E SERÁ PARA SEMPRE
Conclui-se, portanto, que o Município do Rio de Janeiro, ou mesmo o Estado, jamais poderia se apropriar e incluir no seu patrimônio um bem de uso comum do povo e cobrar ingresso para que o cidadão pudesse ir e ver o que lá se passa. Tudo isso é um verdadeiro atentado contra a legalidade e que foi aceito por todos. Ninguém poderá reclamar contra o pagamento para assistir um espetáculo no Teatro Municipal. É uma construção que não ocorreu na rua ou na praça pública e, ao que parece, não violou os direitos de ninguém.
Assim como o particular, o poder público tem o direito de usar e usufruir o que é seu, sendo certo que essa utilização deve ter em vista o interesse da coletividade. O caso do sambódromo é diferente. Há décadas, comete-se uma brutal ilegalidade contra o povo, e privilegia-se com exclusividade a TV Globo nas transmissões dos desfiles das Escolas de Samba. E assim foi e será para sempre.

12 de fevereiro de 2016
Jorge Béja

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