Jeferson Bacelar e Antonio Risério entrevistam o sociólogo Carlos Alberto Dória. Da Gazeta dos Búzios, revista eletrônica baiana. Confira abaixo.
Carlos Alberto Dória, Doutor em Sociologia pela UNICAMP, é hoje um dos maiores especialistas nos estudos sobre alimentação no Brasil, reputado nacional e internacionalmente. Com várias publicações, entre os seus livros, destacamos “Estrelas no Céu na Boca. Escritos sobre culinária e gastronomia” (2006); em parceria com Alex Atala, escreveu “Com unhas, dentes e cuca” (2008); “A culinária materialista” (2009); “A formação da culinária brasileira” (2014). Seu último livro, derivado de uma seleção de textos do seu blog e-Bocalivre.blogspot.com foi publicado neste ano, com o título “e-Boca Livre. Cometudo # Falademais” (Editora Tapioca).
Entrevista realizada por Jeferson Bacelar (J) e Antonio Risério (R).
J. Continua achando que existe uma grande ignorância sobre alimentação no Brasil? Quem tem responsabilidade sobre tal situação?
Não acho isso, Bacelar. Do ponto de vista antropológico qualquer cultura dota os indivíduos das informações suficientes para saberem comer e se reproduzirem como espécie. Agora, no tocante à cultura erudita sim, vivemos um bom “atraso” se nos compararmos aos países europeus e anglo-saxões, que pelo menos há 3 décadas vem se dedicando a entender as mudanças modernas no comer. A sociedade moderna quer discutir, sob qualquer aspecto, a qualidade do que se come.Prova disso é a deificação do cotidiano. Todo mundo adere a uma explicação meio mágica do que é bom para os seres humanos. Esse, por exemplo, é um tema relativamente novo e a universidade brasileira não está ainda mobilizada para isso, salvo no aspecto nutricional - o que é parcial e é pouco. A responsabilidade pelos destinos coletivos, públicos, é sempre do Estado.
R. Tem gente que considera a “gastronomia” uma espécie de aspecto “coxinha” ( digamos assim) de um fazer antropológico geral – a culinária. Você concorda ou discorda? Por que?
Enquanto muita gente procura instituir um campo de conhecimento novo, a mídia ressalta os aspectos da celebração moderna em torno do comer. Isso é coxice mesmo!, Risério! Eu considero gastronomia como o discurso sobre o comer, à busca do “melhor”. Não se come gastronomia; discursa-se gastronomicamente, coteja-se opiniões sobre “o melhor”, onde e como ele é produzido, etc. O que é diferente da gourmetização, essa atividade a que se dedicam a publicidade e o marketing, inventando qualidades materiais que são, muitas vezes, desprezíveis do ponto de vista da experiência sensível. Por exemplo, o grau de acidez do azeite não interfere no paladar, não conseguimos perceber as diferenças, mas o marketing do azeite frisa esse aspecto inútil. Esse discurso, enfim, se descolou da prática culinária e gira em falso no ar. Só coxinhas e coxões se importam com ele.
J. O que você acha da “patrimonialização” do acarajé e da indumentária das baianas de acarajé?
Repare, Bacelar. Você sabe o que é um bom acarajé, não é? De longe! O que importa se ele se chama “acarajé” e é vendido por uma “baiana” estilizada ou se chama “bolinho de jesus” e é vendido por uma evangélica despida desses trajes? Para a sua fome de acarajé, rigorosamente nada. Para mim não há diferença alguma. Mas por que o Estado (no caso a Prefeitura de Salvador) insiste na caricatura da “baiana”? Como dizia um antropólogo inglês, Sir Edmund Leach, quando mais fraco o mito numa sociedade, tanto mais ela se esforça para definir e impor os ritos evocativos, mais fortes eles são. Acho que a “banalidade” do acarajé enfraqueceu o mito, e por isso esse desespero do poder público em salvar o simbolismo que foi ativo no passado e não é mais. A comida é o tipo da coisa que é viva enquanto é produzida, consumida; e “morta” quando cai em desuso e só permanece no repertório passadista. Ninguém precisa “resgatar” nada; ritualizar nada! Não há identidade alguma em perigo, salvo a do poder público. Afinal, em nome de que ele se pensa como legítimo governante dos baianos? Eu preferiria que se destacasse não por perseguir evangélicas, mas por promover uma educação de qualidade sem igual no Brasil.
R. Muita gente que escreve sobre comida o faz na base da permuta: minha reportagem por um prato de lentilhas ou meu texto comentário por uma lagosta grelhada, a depender do status do jornalista. Qual a sua opinião sobre o assunto?
O jabá é uma instituição no jornalismo brasileiro. Na política, na música, etc. Aliás, no mundo desde muito tempo. Você já leu Ilusões Perdidas, de Balzac, com certeza… Ele já está lá, retratado. Agora, somente agora, chegou na gastronomia, que antes não fazia parte do interesse das pessoas. Ontem, hoje e sempre devemos nos pautar pelas pessoas honestas, de opinião independente, em qualquer campo do saber. Há uma irresponsabilidade muito grande da imprensa diante da alimentação. Basta ver o silêncio que cerca produtos perigosos para o ser humano como o salmão de cativeiro. Se você procurar na web, achará muitas matérias em inglês; poucas em português. Isso nos diz algo sobre o comprometimento suspeito com a indústria.
J. O Food-Truck foi implantado em Salvador, através de projeto da Câmara de Vereadores, sem maiores discussões. Já tem associação, presidente, etc. Qual a sua visão sobre o assunto, a partir da experiência paulista?
Em São Paulo muita gente esperava que a regulamentação fosse favorecer os comerciantes de comida de rua. Ao contrário, estabeleceu uma concorrência para eles, e definiu um padrão sanitário que eles não conseguem seguir, ficando “ilegais”. Além disso, foi uma iniciativa que definiu as condições de estacionamento dos food trucks, ou seja, algo que favoreceu donos de terrenos baldios, postos de gasolina, etc. As vagas nas ruas, vagas públicas, não são suficientes e criaram uma demanda imobiliária por estacionamento. Hoje tem food truck que paga R$ 1 mil por dia para poder estacionar e operar. isso favorece a população? Não! E os vendedores tradicionais de comida de rua? Também não! Esse é um modismo que não irá durar. Muita gente vai ser eliminada desse mercado. Ficarão os que já estão apoiados em estruturas comerciais mais fortes, como extensão de restaurantes, cadeias de sanduíches, etc. Mesmo assim, a moda fará estragos em São Paulo, em Salvador e Brasil afora que se quer “moderninho”.
R. Na sua opinião, os estudos de história e antropologia da alimentação no Brasil, já começam a se aproximar de um nível satisfatório, em quantidade e qualidade?
Difícil dizer, Risério. Tenho lido trabalhos interessantes, assim como tenho lido muito trabalho bobo. O impulso numa direção desejada dependerá de um engajamento maior do CNPq, da Capes… Não se faz ciência no país sem financiamento público, todos sabemos. Algumas discussões diversionistas apareceram, reivindicando recursos da Lei Rouanet para a gastronomia.Pessoalmente sou contra a Lei Rouanet em geral, e tenho me manifestado nesse sentido desde 2003, quando publiquei um livro sobre política cultural chamado Os federais da cultura, e sou contra especialmente porqueela fomenta uma irresponsabilidade do setor público que me parece inaceitável.
Agora, há lacunas muito grandes no conhecimento culinário. O milho, por exemplo, e sua história no Brasil desde antes do descobrimento; o mate e os jesuítas, e como se divulgou pela América Espanhola mas foi contido no sul do Brasil, não penetrando a América portuguesa. Nós vivemos essas coisas e não entendemos bem. Se você preferir um tema mais atual, como se dividiu e quais as fronteiras entre o Brasil do coentro e o da salsinha? Um problema banal, mas misterioso - coisas que mostram a necessidade de mais estudos.
J. Você fala em uma “nova cozinha brasileira”. Onde ela aparece? A Bahia já ganhou espaço nessa transformação ou continuamos apenas exóticos?
Em toda sociedade de classes existem duas culinárias: a da elite, que é unificada em torno de modelos burgueses de comer de expressão mundial, desde o período napoleônico; e as culinárias populares, que são diversas, não unificadas, particulares, com fronteiras que mal traçamos. Mal conhecemos as culinárias brasileiras, como as pessoas de fato comem Brasil afora. Lembro de uma pesquisa da professora Mara Zélia, da cadeira de Etnofarmácia da Universidade Federal da Bahia, na costa dos coqueiros, onde encontrou uma planta, a “canela” (Otonia atonia) que era usada lá. A identificação foi feita pela remessa de exemplares para o Jardim Botânico no Rio de Janeiro… Era a solução “dos pobres” para a falta de canela tradicional. Quantas situações dessas devem existir por ai? Só um levantamento sistemático, por todo o país, pode revelar essa diversidade e riqueza.
Pois bem, vivemos um momento de valorização dos ditos “ingredientes brasileiros”, que são as coisas que comemos desde tempos passados, mesmo que tenham sido trazidos pelos navegantes portugueses. Há, portanto, em questão, uma visão nacionalista que quer influir no comer. Mas o importante, me parece, não é isso e, sim, a capacidade de nossa culinária encantar as pessoas, o “encantamento do mundo” através do comer, que pode nos opor por um instante à burocratizarão da vida, à mesmice. Avivar isso é que chamo de construir a “nova cozinha brasileira”. O que significa também desprendimento face à tradição como, por exemplo, os excessos de açúcar ou gorduras. Hoje em dia é preciso rever isso, e tem gente fazendo numa direção bem gratificante, com bons resultados, nos quatro cantos do país. Enfim, é se voltar sobre as culinárias populares com engajamento, curiosidade, espírito questionador ,pois até agora, e desde o Cozinheiro Nacional, do século XIX, só tratamos da culinária das elites afrancesadas. É essa culinária das elites - sob pretexto de que todo mundo precisa conhecer as técnicas universais - que informa os cursos de gastronomia, colocando as novas gerações longe do país popular. O bom desafio é buscar os problemas não pensados até agora.
03 de janeiro de 2016
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