“A MPB atingiu seu teto. E perdeu a importância, a transcendência e a ambição do anos 60”.
“O mundo ficou mais careta, com certeza”.
“A cena musical de Belém do Pará é a mais interessante do Brasil”.
“Brinco que Jorge Drexler é o maior revelação da MPB hoje”.
“Nem viajando de ácido aqueles hippies imaginavam que um dia cada um ia ter seu próprio jornal e rádio pra falar com o mundo o que quisesse. E praticamente de graça, isso é o sonho de qualquer anarquista. E o sonho para qualquer artista novo dos anos 60”.
E, depois dos musicais sobre Tim Maia e Elis Regina, vem aí uma montagem sobre Simonal.
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Jornalista, compositor, escritor, roteirista, produtor musical, dono de boate. Impossível reduzir a uma só palavra a trajetória de Nelson Motta, autor de sucessos estrondosos como a música de abertura da novela “Dancin’ Days”, das Frenéticas, “Como uma onda”, junto com Lulu Santos, ou ainda “Vale Tudo”, biografia de Tim Maia, que vendeu mais de 200 mil cópias, para ficar apenas em alguns exemplos.
A verdade é que a história musical brasileira das últimas cinco décadas não poderia ser contada sem o protagonismo deste paulistano adotado pelo Rio, hoje vivendo em um aconchegante apartamento em Ipanema, com bela vista para o mar – autor de “Nova York é aqui/ Manhattan de cabo a rabo”, espécie de guia cultural/ comportamental, morou por quase dez anos na cidade, na década de 90, mas diz preferir atualmente andar por Lisboa, “minha segunda casa”.
Nelson Motta está completando 70 anos no próximo dia 29, e uma série de lançamentos estão previstos para comemorar a data. Destaque para “As sete vidas de Nelson Motta” (editora Foz), que revisita alguns dos momentos mais expressivos de sua carreira. Motta tem boas histórias para contar, como o convívio com Samuel Wainer no extinto “Última Hora”, à frente de sua coluna ‘Poder Jovem’, aos 23 anos, dedicada à descoberta e divulgação de novos talentos e ideias, coisa que de uma forma ou de outra ele faria pelo resto da vida.
Outros pontos altos do livro são os encontros com Paulo Francis nos primórdios do programa “Manhattan Connection”, ou ainda o privilégio de acompanhar os bastidores da turnê dos Rolling Stones pela Europa no começo dos anos 80.
O livro mescla textos originais a uma seleção minuciosa de reportagens, crônicas e perfis assinados pelo autor e publicados nos principais jornais do país, entre os quais a Folha, além do material publicado na Última Hora entre 1967 e 1969, trazendo à tona a atmosfera do Rio de Janeiro, da bossa nova e dos festivais de MPB vivida à época.
Outro lançamento que chega às lojas é o CD “Nelson 70”, com letras de Nelson Motta e parceiros em novas versões. Coube a Lenine, Jorge Drexler, Céu, Ed Motta e Daniel Jobim, Gaby Amarantos, Fernanda Takai, Laila Garin, entre outros, o desafio de apresentar uma interpretação original a hits consagrados como “Certas Coisas”, “De repente California” ou “Noturno Carioca”. Além da inédita “Parece mentira”, na voz de Marisa Monte, acompanhada de João Donato ao piano.
Não bastassem o livro e o CD, o Canal Brasil exibirá uma série em oito episódios, toda em pb, contando a história de Nelson Motta através de parceiros, amigos e canções.
E completando o ciclo de comemorações, a quarta edição do Festival Sonoridades, com curadoria do próprio Nelson Motta, estreia no começo de novembro. A proposta é oferecer um recorte amplo, integrando novos talentos do momento, cenas regionais, músicos e artistas cultuados. Desta vez, subirão ao palco Alice Caymmi, 24 anos, que vem se destacando no circuito independente de MPB, acompanhada de Helio Flandres, da banda Vanguart, e o lendário hitmaker Michael Sullivan.
“A primeira sensação que tenho é de privilégio: chegar inteiro aos 70, em plena atividade, é uma façanha”, diz Nelson Motta. “A coisa que mais detesto é nostalgia. A tudo me entreguei com grande intensidade, de maneira que acabo não tendo saudade de nada”, acrescenta.
Culturalmente, como enxerga o Brasil de hoje?
Em grande ebulição e atividade. Na literatura, na música, na televisão, era uma coisa que sempre foi reservada a uma pequena casta de autores e hoje já não é mais assim. Um cara como João Emanuel Carneiro, escrevendo uma novela como “Avenida Brasil”, é um evento cultural de alto nível.
Tenho lido coisas ótimas, Pornopopeia é um dos melhores livros de qualquer lugar. Tem sofisticação e grossura, mistura erudito e popular em uma atmosfera extremamente dramática e hilariante. E cronistas como o Antonio Prata, meu favorito hoje. Ele não tem uma coisa raivosa, passional, tem uma tolerância.
De música eu vejo que os grandes nomes de velhas gerações continuam em atividade, e bem. Este último disco do Chico para mim é um dos dois ou três melhores de sua carreira. Não é só minha opinião: o nível que chegaram as letras, como ele evoluiu como músico também, até como cantor ele melhorou muito.
Caetano também tem uma atividade impressionante. Muito garoto não tem a coragem como ele de fazer um disco como “Cê”.
E sobre os novos?
Criolo e Emicida são muito interessantes, Gaby Amarantos também.
Acho alegre a descoberta do tecnobrega. Gosto e me divirto com Waldo Squash, Felipe Cordeiro, Lia Sophia. A cena musical de Belém do Pará para mim é a mais interessante do Brasil, fui lá varias vezes, criaram até um novo modelo de negócios. Foram os primeiros a transformar a internet em modelo de divulgação. Os artistas ganham dinheiro fazendo shows nas centenas de casas noturnas espalhadas pela cidade. O tecnobrega virou uma usina.
Belém tem tanta música alegre e dançante como na época da discoteca. A excitação que o tecnobrega provoca é igualzinha.
E MPB?
Quando um jovem me diz que faz MPB eu lhe respondo, tem que estar disposto a fazer melhor que Chico e Caetano.
Mas isso é possível?
Não, nesse formato bateu o teto. Tem que fazer diferente, é a única forma. Tem compositores interessantes, gosto muito de algumas coisas do Max de Castro, do Ed Motta. O Lenine tem uma consistência, está sempre avançando.
Agora, fazer bossa depois de Tom e João é duro. Mas veja que interessante, a bossa com tecno e trip hop funcionou. É como vodka, a bossa é o gênero que mais se beneficiou com a eletrônica. Houve uma renovação. Não se pode dizer se melhor ou pior que os originais. É diferente. Mas não existiria sem eles.
A música de antes era melhor?
A música popular perdeu o status, virou commoditie, as pessoas a consomem como se fosse água encanada. A música perdeu a importância, a transcedência e a ambição do anos 60, quando era trilha de movimentos sociais, por exemplo.
Mas há uma ilusão de que em outras épocas a boa música era majoritária. Conversa mole. Nos anos 70, Chico, Caetano e Jorge Ben eram para universitários de classe média. Os grandes sucessos eram Paulo Sergio, Odair Jose, Nelson Ned, Agnaldo Timóteo. Como mostra o livro do Paulo Cesar Araujo, “Eu não sou cachorro não”, esses caras fizeram mais oposição à ditadura e foram mais perseguidos que os artistas politizados.
Nos anos 80 igual. É ilusão achar que nas rádios imperavam os Titãs ou Paralamas. Havia uma caralhada horrorosa, igual a hoje. É preciso uma massa crítica enorme de merda pra você tirar uns 5 ou 10% de pérola, de músicas que vão se incorporar na vida das pessoas e influenciar na produção futura.
Só que hoje há uma quantidade infinita de barulho e porcaria em volta, então está mais difícil de encontrar as pérolas. Mas as coisas boas continuam existindo e certamente na mesma proporção, até mesmo em maior quantidade.
Qual seu posicionamento sobre as biografias não-autorizadas?
Refleti bastante sobre isso. Não fiquei nem com o Roberto Carlos, nem com o Procure Saber. Sou a favor da liberdade total das biografias, que cada um arque com suas consequências, e que a Justiça seja rápida e eficiente.
E como enxerga a juventude atualmente?
Com um poder danado. Eles têm armas e recursos que nunca ninguém ousou sonhar. Nem viajando de ácido aqueles hippies imaginavam que um dia cada um ia ter seu próprio jornal e rádio pra falar com o mundo o que quisesse. E praticamente de graça, isso é o sonho de qualquer anarquista. Este era o sonho para qualquer artista novo dos anos 60.
Mas tem o uso que fazem destas armas.
O uso que fazem é complicado. Hoje as pessoas reclamam, que não tem espaço. É lógico: hoje o acesso às oportunidades é mais democrático. É o que acontece na música e na literatura hoje. Então não pode reclamar. Depende da ambição de cada um. Essa igualdade de oportunidades é um dos fatos mais marcantes desse momento cultural.
Quem quer fazer vai lá e faz. Já vi pessoas nas piores condições, que vão lá e fazem. Um artista conceitual pode ter 20, 30 mil seguidores espalhados pelo mundo.
Uma vez perguntei ao João Gilberto, sobre como seria a promoção ideal de um artista, no seu entendimento. Ele respondeu: ‘ informar corretamente as pessoas interessadas’. Palavras de fogo. Isso é tudo, o resto é conversa. Não vou falar de Lou Reed no programa do Faustão. Basta informar corretamente.
O mundo ficou mais careta?
Com certeza. A repressão política dos anos 60 de certa forma estimulou o avanço comportamental.
Nos Estados Unidos, a partir dos anos 90, a produção cultural passa a se voltar para a classe média, público alvo gigantesco. Então o nível tem que abaixar, para atender aquele gosto, aqueles valores. É preciso mediocrizar para atender a mais gente.
Houve uma grande ascensão do politicamente correto, que chegou com atraso por aqui, claro que com algumas diferenças. Aqui os valores familiares, conservadores, acabaram predominando. Quem quiser vender livro, disco, dar ibope, tem que falar a linguagem que as multidões entendem.
O Brasil é muito conservador, se você fizer plebiscito sobre pena de morte, aborto, legalização das drogas, vai ficar chocado com os resultados. Eu não vou levar susto nenhum porque conheço. A gente tinha uma ilusão que o Brasil inauguraria uma nova forma de civilização, sem o peso da história européia e nem o mercantilismo americano. Uma miscigenação atlântica, um mito enfim. Acho que foi muito ácido que a gente tomou. A realidade é que o Brasil mantém os valores e a tradição das classes dominantes, agora assimilados pela classe média.
Sou um libertário, um liberal radical, e ainda quero ser independente, poder mudar de opinião sem ser acusado disso ou daquilo.
Ácidos, cocaína e maconha são recorrentes em sua prosa.
Isso aparece porque foi minha época, porque vivi intensamente. No final dos 70 e início dos 80, era dono de boate. Foram 4 ou 5 anos na cocaína. E tomava mandrix, que era um ecstasy muito melhorado, um afrodisíaco, na verdade. Tive uma fase de devassidão na noite, vivi o máximo ali.
Foi bom mas a consequências foram os anos seguintes a pagar essa conta, com saúde e cabeça. Hoje fumo um baseado aqui e ali. Gosto, só me faz bem e minha memória é ótima.
O que você tem escutado?
O Jorge Drexler eu adorei logo de cara, seu estilo de fazer música. Ficamos amigos. Brinco que ele é a maior revelação da MPB dos últimos anos. Ele tem uma influência tão forte da MPB, e assimilou isso muito bem junto com o talento original dele. O que faz no violão é padrão Djavan para mim, fora que é um letrista extraordinário.
É o artista que mais ouço no meu ipod. Gosto também de música argentina. Bajofondo é sensacional. Escuto também o Tanghetto, Otros Aires. E os novos fadistas portuguesas, absolutamente geniais, como a Carminho, Cuca Roseta, Antonio Zambujo. O fado é foda.
70 anos. O que dizer a essa altura da vida?
A primeira sensação que tenho com isso é de privilégio: chegar inteiro, em plena atividade, aos 70 é uma façanha. Me senti obrigado a olhar para trás, por causa do livro. É uma coisa que não costumo fazer normalmente… a coisa que mais detesto é nostalgia. Porque vivi muitas fases diferentes na minha vida, fazendo jornalismo, literatura ou direção de programas de TV. A todas me entreguei com grande intensidade, então você acaba não tendo saudade de nada, não ficou devendo. O que eu mais gosto é de escrever, seja jornalismo, ficção ou roteiro.
Quais os picos de sua carreira?
Como são atividades diversas e muito diferentes, os picos pra mim se confundem muito com o primeiro trabalho que deu certo ali, que é o desafio. Digamos que eu era um reporterzinho de cultura no JB de 22 anos, e Samuel Wainer me chamou para fazer uma coluna de meia página, isso é um pico. Ou “Saveiros” com Dori, pela qual venci o Festival de 66. Mas foi um pico meio incompleto, ali também inauguramos a vaia (risos). “Saveiros” foi uma das minhas primeiras letras, ali é só corretinho. Tem uma imitação de Dorival e Jorge Amado, nem tinha ido à Bahia. Em 67 lançamos “O Cantador”, ali sim uma música muito boa. Considero minha primeira letra profissional, aos 23 anos. Mas aquele era o festival dos festivais, e não ganhamos.
Em suma, faltava um puta hit popular, que foi “Perigosa Bonita e Gostosa” com Frenéticas e “Dancin Days” logo em seguida. Essas músicas me trouxeram mais emoção que outros sucessos com Lulu e Guilherme Arantes, que viriam depois. É que o primeiro hit você nunca esquece.
Na literatura, isso veio com “Noites Tropicais” que se tornou um mega hit. Além disso recebeu ótimas críticas. Tim Maia vendeu o dobro, mas esse eu vinha já há dez anos maturando, era praticamente uma carta marcada, não precisava acertar era só não errar, porque esse personagem é o sonho de qualquer ficcionista.
E no teatro?
No teatro houve uma vingança, um pico com sangue na boca. Em 76 escrevi um musical com o Guto Graça Mello, para a Marilia Pera, com quem era casado, fazer. Tinha textos do Gabriel García Marquez, do Carlos Castañeda, do Borges, uma coisa espiritual e mística. Foi um fracasso devastador, praticamente quebramos, eu e a Marilia.
Só em 2011, com o musical do Tim Maia, lavei a alma. Descobri que de todas as coisas que fiz na vida, não há gratificação artística mais forte para mim, do que o teatro. Não há dinheiro que pague, quando no escuro, você vê pessoas chorando de soluçar com o Tim Maia doente, ou chorando de rir sobre piadas que você escreveu.
Escrevi também Elis, uma produção de alto luxo, mais ambiciosa, que também me deu muita alegria, e continua dando. E agora já estamos ensaiando um musical sobre o Simonal. Esse vai ser o melhor de todos, com fortíssimo componente dramático. Simonal é um personagem inacreditável por causa dos altos e baixos de sua carreira. Por conta de uma polêmica espetacular, ele teve sua qualidade artística negligenciada. Ora, o diretor musical na época era o Cesar Camargo Mariano, Simonal era pilantragem só no nome, pois sua música tinha muita ambição.
12 de janeiro de 2015
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