"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

sábado, 16 de agosto de 2014

FRICÇÕES

Centenas de personagens inventados ocupam um grande espaço em nossas vidas e nunca vão embora. A ficção também é um método de reprodução humana

O Jorge Luis Borges chamou o espelho de método de reprodução humana anticonvencional. O sexo e o espelho são, os dois, culpados de multiplicar pessoas, e assim contribuir para as misérias do mundo. Borges escreveu sobre seus pesadelos com espelhos e labirintos e tinha um notório problema edipiano com o pai, além de um notório ascetismo com relação ao sexo. O pavor de espelhos e o desgosto com sexo e paternidade se acoplam na aversão de Borges ao produto das duas coisas: gente. Mais gente.

Mas enquanto lamentava a proliferação humana de um lado e do outro do espelho, Borges também colaborava para aumentar a demografia imaginária da Terra, inventando pessoas. Ao contrário dos espelhos, os ficcionistas não copiam gente, criam gente, e lançam irresponsavelmente no mundo. Como se não bastassem os parentes e os vizinhos e os bilhões de chineses, temos que nos preocupar com a Antígona, o Hamlet, o Raskolnikov, o Swann, centenas de personagens que, só por serem inventados, não ocupam espaço menor em nossas vidas, e nunca vão embora. A ficção também é um método de reprodução humana, de uma fertilidade espantosa.

Certa vez tive a ideia de imitar o “Ficciones” do Borges e escrever um livro só de histórias eróticas chamado “Fricções". O livro começaria não com uma ficção, o que só agravaria a densidade demográfica de gente inventada, mas com uma reminiscência. Em 1959 eu estava em Paris (disse ele só para dizer que estava em Paris) e tinha 22 anos. Num café, conheci uma moça húngara. Seu francês era quase nenhum. O meu era de Aliança Francesa, mas eu faltava muito. Conversamos em inglês. E acabamos indo para o seu quarto num prédio sem elevador. Quantos andares eram? Quem estava contando?! Meu único medo era que, na confusão das línguas, tivesse havido algum mal-entendido, e meu último franco tinha ido para pagar o café. Mas não, era sexo de graça mesmo. Só que sexo com uma especificação. Na cama, ela ordenou:

— Hit me!

— What?

— Hit me! Hit me!

Ela queria que eu batesse nela. Em 1956 a União Soviética tinha invadido a Hungria para abafar uma revolta contra a dominação comunista e ocupado o país por um bom tempo. Não fiz como os soviéticos. Bati, mas em retirada. Ainda mais que a húngara era grande.

16 de agosto de 2014

Luís Fernando Veríssimo, O Globo

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