Centenas de personagens inventados ocupam um grande espaço em nossas vidas e nunca vão embora. A ficção também é um método de reprodução humana
O Jorge Luis Borges chamou o espelho de método de reprodução humana anticonvencional. O sexo e o espelho são, os dois, culpados de multiplicar pessoas, e assim contribuir para as misérias do mundo. Borges escreveu sobre seus pesadelos com espelhos e labirintos e tinha um notório problema edipiano com o pai, além de um notório ascetismo com relação ao sexo. O pavor de espelhos e o desgosto com sexo e paternidade se acoplam na aversão de Borges ao produto das duas coisas: gente. Mais gente.
Mas enquanto lamentava a proliferação humana de um lado e do outro do espelho, Borges também colaborava para aumentar a demografia imaginária da Terra, inventando pessoas. Ao contrário dos espelhos, os ficcionistas não copiam gente, criam gente, e lançam irresponsavelmente no mundo. Como se não bastassem os parentes e os vizinhos e os bilhões de chineses, temos que nos preocupar com a Antígona, o Hamlet, o Raskolnikov, o Swann, centenas de personagens que, só por serem inventados, não ocupam espaço menor em nossas vidas, e nunca vão embora. A ficção também é um método de reprodução humana, de uma fertilidade espantosa.
Certa vez tive a ideia de imitar o “Ficciones” do Borges e escrever um livro só de histórias eróticas chamado “Fricções". O livro começaria não com uma ficção, o que só agravaria a densidade demográfica de gente inventada, mas com uma reminiscência. Em 1959 eu estava em Paris (disse ele só para dizer que estava em Paris) e tinha 22 anos. Num café, conheci uma moça húngara. Seu francês era quase nenhum. O meu era de Aliança Francesa, mas eu faltava muito. Conversamos em inglês. E acabamos indo para o seu quarto num prédio sem elevador. Quantos andares eram? Quem estava contando?! Meu único medo era que, na confusão das línguas, tivesse havido algum mal-entendido, e meu último franco tinha ido para pagar o café. Mas não, era sexo de graça mesmo. Só que sexo com uma especificação. Na cama, ela ordenou:
— Hit me!
— What?
— Hit me! Hit me!
Ela queria que eu batesse nela. Em 1956 a União Soviética tinha invadido a Hungria para abafar uma revolta contra a dominação comunista e ocupado o país por um bom tempo. Não fiz como os soviéticos. Bati, mas em retirada. Ainda mais que a húngara era grande.
16 de agosto de 2014
Luís Fernando Veríssimo, O Globo
O Jorge Luis Borges chamou o espelho de método de reprodução humana anticonvencional. O sexo e o espelho são, os dois, culpados de multiplicar pessoas, e assim contribuir para as misérias do mundo. Borges escreveu sobre seus pesadelos com espelhos e labirintos e tinha um notório problema edipiano com o pai, além de um notório ascetismo com relação ao sexo. O pavor de espelhos e o desgosto com sexo e paternidade se acoplam na aversão de Borges ao produto das duas coisas: gente. Mais gente.
Mas enquanto lamentava a proliferação humana de um lado e do outro do espelho, Borges também colaborava para aumentar a demografia imaginária da Terra, inventando pessoas. Ao contrário dos espelhos, os ficcionistas não copiam gente, criam gente, e lançam irresponsavelmente no mundo. Como se não bastassem os parentes e os vizinhos e os bilhões de chineses, temos que nos preocupar com a Antígona, o Hamlet, o Raskolnikov, o Swann, centenas de personagens que, só por serem inventados, não ocupam espaço menor em nossas vidas, e nunca vão embora. A ficção também é um método de reprodução humana, de uma fertilidade espantosa.
Certa vez tive a ideia de imitar o “Ficciones” do Borges e escrever um livro só de histórias eróticas chamado “Fricções". O livro começaria não com uma ficção, o que só agravaria a densidade demográfica de gente inventada, mas com uma reminiscência. Em 1959 eu estava em Paris (disse ele só para dizer que estava em Paris) e tinha 22 anos. Num café, conheci uma moça húngara. Seu francês era quase nenhum. O meu era de Aliança Francesa, mas eu faltava muito. Conversamos em inglês. E acabamos indo para o seu quarto num prédio sem elevador. Quantos andares eram? Quem estava contando?! Meu único medo era que, na confusão das línguas, tivesse havido algum mal-entendido, e meu último franco tinha ido para pagar o café. Mas não, era sexo de graça mesmo. Só que sexo com uma especificação. Na cama, ela ordenou:
— Hit me!
— What?
— Hit me! Hit me!
Ela queria que eu batesse nela. Em 1956 a União Soviética tinha invadido a Hungria para abafar uma revolta contra a dominação comunista e ocupado o país por um bom tempo. Não fiz como os soviéticos. Bati, mas em retirada. Ainda mais que a húngara era grande.
16 de agosto de 2014
Luís Fernando Veríssimo, O Globo
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