"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

sábado, 16 de agosto de 2014

"COISAS ESTÚPIDAS"

Dias atrás, enquanto começavam os ataques aéreos americanos no Norte do Iraque, um alto oficial do Pentágono, o general William Mayville, esclareceu seus limites. “De forma nenhuma pretendo sugerir que nós estamos, de fato, contendo ou de algum modo destruindo a ameaça posta pelo Estado Islâmico (EI).” Os bombardeios têm os objetivos táticos de romper o cerco aos yazidis no Monte Sinjar e retardar o avanço dos jihadistas rumo a Irbil, oferecendo tempo para os curdos reforçarem as defesas de sua capital. Mas, reconheceu Mayville, “dificilmente afetarão a capacidade militar do EI ou suas operações em outras áreas do Iraque e da Síria”. Barack Obama substituiu o triunfalismo da Doutrina Bush por algo como uma doutrina de retirada estratégica. As implicações da segunda revelam-se tão desastrosas quanto as da primeira.

Até há pouco, a política externa de Obama sofria apenas críticas públicas dos republicanos, que nunca acertaram as contas com a falência da visão neoimperial de Bush. A proclamação do califado jihadista do EI, contudo, provocou uma ruptura na aparente unidade dos democratas – e a ex-secretária de Estado Hillary Clinton expôs o cisma à luz do dia. Numa longa entrevista à publicação The Atlantic, a provável candidata presidencial disparou obuses certeiros contra a “doutrina Obama”. Hillary disse que “grandes nações precisam de princípios organizadores” e que “não faça coisas estúpidas” não é “um princípio organizador”.

“Não faça coisas estúpidas”, a expressão irônica cunhada pelo presidente para sintetizar sua política externa, é uma referência óbvia à invasão do Iraque, a “guerra estúpida” de Bush, na definição célebre de Obama. Mas a síntese pela negativa representa também uma adesão ao sentimento isolacionista que perpassa a sociedade americana. Uma expressão sofisticada da orientação política isolacionista, que emerge amiúde nos raciocínios de Obama, é a crítica à noção neoconservadora de “difusão da democracia”. Os EUA não podem moldar o Oriente Médio, ou o mundo muçulmano, segundo um figurino político desenhado em Washington. Hillary está de acordo com isso, mas rejeita as duas alternativas polares: “Quando você está se entrincheirando e recuando, não tomará decisões melhores do que quando está avançando de modo agressivo e beligerante”.

A centelha da cisão foram as decisões sobre a guerra civil na Síria, o evento crucial que congelou a “Primavera Árabe”. Como revelou em Hard choices, seu livro de memórias sobre os quatro anos à frente do Departamento de Estado, Hillary alinhou-se com as propostas de Robert S. Ford, o embaixador que indicara para a Síria, finalmente rejeitadas pela Casa Branca. Inutilmente, Ford tentou convencer o governo americano a respaldar as correntes moderadas da oposição interna síria, fornecendo armas e treinamento para suas improvisadas forças militares. Temendo as consequências de longo prazo do compromisso estratégico, Obama preferiu operar quase exclusivamente no tabuleiro diplomático.

A “coisa estúpida” seria, na análise do presidente, transferir armas que poderiam terminar nas mãos dos jihadistas. Entretanto, como registra Hillary, estúpido foi contribuir, pela inação, para o fracasso do Exército dos Sírios Livres. “O insucesso em ajudar a criar uma força combatente viável dos que estiveram na origem dos protestos contra Assad – correntes islamistas, secularistas e intermediárias – abriu um grande vácuo, que os jihadistas agora ocuparam”, pontuou a ex-secretária de Estado. A instalação de um califado do EI em Mossul, que ameaça provocar a implosão definitiva do Iraque, é uma prova de que a “guerra ao terror” não se concluiu com a eliminação de Osama bin Laden – e um indício clamoroso do erro estratégico de Obama na Síria.

As convicções de Obama sobre política externa foram esculpidas durante os anos loucos de George W. Bush, por oposição à arrogância unilateralista dos neoconservadores, e cimentaram-se na hora de sua chegada à Casa Branca, quando o colapso financeiro forçou o país a desviar o olhar para a reconstrução econômica interna. “Não faça coisas estúpidas” é um reflexo dessa experiência. Contudo, não é exato acusar o presidente de fechar os EUA na concha do isolacionismo – ou mesmo de incapacidade de formular uma estratégia geral de política externa. A estratégia existe, mas passa ao largo do Oriente Médio e subestima as ameaças postas pelo jihadismo.

Confrontado com a ascensão histórica da China, Obama promove um “giro estratégico” na direção da Ásia, uma orientação de largo alcance que se articula em iniciativas políticas, econômicas e militares. As retiradas do Afeganistão e do Iraque são componentes lógicos dessa estratégia, que também se encontra na raiz das hesitações em confrontar a Rússia no teatro da crise ucraniana. Mas “coisas estúpidas” acontecem em rápida sequência no Oriente Médio – e o desengajamento da maior potência do mundo potencializa as instabilidades geopolíticas.

A escolha errada na Síria fechou dramaticamente o leque de opções no Iraque. Mesmo assim, Obama ainda tem a oportunidade de ordenar uma campanha massiva de bombardeios aéreos contra o EI, no Iraque e na Síria, enquanto manobra na esfera diplomática para, com o auxílio paradoxal do Irã, costurar uma coalizão governamental inclusiva em Bagdá. Mas o “não faça coisas estúpidas” paralisa a Casa Branca, que opera por impulsos reativos, a reboque dos eventos. Os ataques aéreos “muito limitados”, nas palavras de Obama, junto com o desesperado fornecimento de armas aos curdos, apenas prolongam os estertores do Iraque, que se inscrevem na moldura de uma guerra regional entre sunitas e xiitas.

Hillary está dizendo que um sinal vermelho não é uma doutrina estratégica. “Coisas estúpidas”, conta-nos a história, costumam acompanhar o desengajamento das grandes potências.


16 de agosto de 2014
 Demétrio Magnoli, O Globo

Nenhum comentário:

Postar um comentário