"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

sexta-feira, 9 de maio de 2014

VINTE MIL ÉGUAS SOBRE MARINA

Historieta sobre como Lula convenceu Marina a ficar no governo é tão boa que parece piada

A maneta e o maneta se casaram, ela ficou grávida e o filho nasceu. Qual o nome do filme? “Ninguém segura esse bebê.” Odete e Célia, duas galinhas, comeram milho e explodiram. Como chama o filme? “Dois milhos e bum! Odete e Célia no espaço.” Marina passeava pelo seringal acreano, vieram vinte mil éguas e a atropelaram. Qual é o filme? “Vinte mil éguas sobre Marina.”

Não bastassem o linchamento no Guarujá, a alta da inflação, os estádios que não ficam prontos, a madrasta que matou o menino, a gatunagem em Pasadena, o sertanejo-universitário, o racionamento que vem aí, a volta da vaca louca, a anexação da Crimeia, o assassinato do dançarino, o doleiro com jatinho, as propagandas com Felipão e o Porta dos Fundos, esse papa que não para de assustar nenês, gente que conversa alto no cinema, o aparelhamento do COI, a dorzinha nas costas, o implante de Renan e a peruca de Paulo Skaf, os marmanjos de bermuda nos aeroportos, o tiozinho que insiste em perguntar “tá ligado?”, a ameaça de Sarney de voltar à presidência do Senado, o preço exorbitante da maconha uruguaia, as frases longas nas colunas e a anestesiante indignação que tudo isso provoca, o Brasil anda carente de boas piadas. No máximo se escutam trocadalhos do carilho. Para bom entendedor meia palavra bos. Isso o governo não vê. Imagina na Copa.

Por essas e por outras, muitas outras, surgiu o movimento Volta, Lula. Na segunda-feira passada, a jornalista Mônica Bergamo, uma abelhuda em tempo integral, contou como se deu a saída de Marina Silva do governo. A história, espalhada pelo próprio presidente (a repórter entrevistou três ex-ministros e um auxiliar direto dele), é tão boa que parece uma piada.

Estava Lula no gabinete, apoquentado por uma dessas chuvas de abacaxis que costumam cair sobre o Planalto, quando um estafeta veio dizer que Marina queria lhe falar com urgência. O presidente mal se lembrava da ministra do Meio Ambiente, uma das raras que não causava problemas. No entanto, ela lhe disse que sairia do governo. Lula quase caiu da cadeira. Tentou demovê-la por todos os meios. Não queria de jeito nenhum que a estrela verde sumisse da Esplanada. Marina remanchou, explicou, contra-argumentou. Lula negaceou, não se rendia. Até que a rainha deu o xeque-mate: “Presidente, eu conversei com Deus. E é o momento de eu sair”.

Frente à irretorquível palavra divina, Lula pediu um tempo, até que arrumasse um novo ministro. Mas voltou à rotina de catástrofes intratáveis e deixou o assunto de lado. Marina, não. Pediu outro encontro. Queria formalizar a saída do governo. O presidente cofiou a barba e matutou. Recebeu Marina e lhe disse que Deus também havia lhe falado, num sonho. “Ele me disse que ainda não está na hora de você sair do meu governo”, contou Lula à ministra. “Você ainda tem muito o que fazer na nossa equipe.”

Foi a vez de Marina quase cair da cadeira, desconcertada. Numa das versões contadas pelo presidente, a ministra teria sido acompanhada nas duas audiências por um pastor. Quando Deus apareceu na conversa pela segunda vez, o santo homem disse: “Então empatou”. Com o empate, Marina titubeou e, vai que Deus tenha mesmo falado a Lula, continuou no governo. Só veio a deixá-lo meses depois.

Mais chato que quem conta piadas sem parar é quem as analisa. Mas como nada menos que 15 músculos são acionados no desfecho de uma boa anedota, sem contar os envolvidos na inversão da respiração, note-se que Marina se irritou quando foi entrevistada sobre a historieta. E que Lula mandou dizer que não queria falar do assunto. Por que o desconforto?

A zanga de Marina não é para menos: ela se sai mal na piada. Aparece simultaneamente como ingênua e pretensiosa, uma crente com quem o Criador de Todas as Coisas — inclusive do vírus da dengue — se entretém num tête-à-tête. (Freud, que colecionava piadas e escreveu um livro sobre elas, nele usou o infame trocadilho tête-à-bête). Marina deve ter o superego do tamanho do Amazonas, capaz de recalcar qualquer energia marota que fermente num igarapé do id. Não se brinca com religião. Quem tem canal direto com o Pai sabe disso.

Já a quietude de Lula foi safa. Além de malandro, ele sai da historieta como um pai benigno. Gosta da ministra e precisa dela no governo. É um pragmático astuto que, para mantê-la no cargo, desce ao seu nível, fala a sua linguagem, apela ao outro Pai. Ela ficou no ministério e o seu narcisismo foi recompensado. E é novamente recompensado toda vez que conta o caso e os outros gargalham. Como não existe riso sem cumplicidade (cócegas em si mesmo não funcionam), Lula precisa de uma plateia para provar a si mesmo o quanto está acima dos outros. Daí o seu carisma. Conta outra, Lula!
 
09 de maio de 2014
Mario Sergio Conti, O Globo

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