Este artigo não é sobre a pornografia no mundo virtual nem tampouco sobre os riscos de as redes sociais empobrecerem o relacionamento humano. Trata de um dos aspectos mais festejados da internet: o empowerment ("empoderamento", fortalecimento) do cidadão proporcionado pela grande rede.
É a primeira vez na História em que todos, ou quase todos, podem exercer a sua liberdade de expressão, escrevendo o que quiserem na internet. De forma instantânea, o que cada um publica está virtualmente acessível aos cinco continentes. Tal fato, inimaginável décadas atrás, vem modificando as relações sociais e políticas: diversos governos caíram em virtude da mobilização virtual, notícias antes censuradas são agora publicadas na rede, etc. Há um novo cenário democrático mais aberto, mais participativo, mais livre.
E o que pode haver de negativo nisso tudo? A facilidade de conexão com outras pessoas tem provocado um novo fenômeno social. Com a internet, não é mais necessário conviver (e conversar) com pessoas que pensam de forma diferente. Com enorme facilidade, posso encontrar indivíduos "iguais" a mim, por mais minoritária que seja a minha posição.
O risco está em que é muito fácil aderir ao seu "clube" e, por comodidade, quase sem perceber, ir se encerrando nele. Formam-se, assim, os novos guetos: círculos fechados de pessoas que pensam da mesma forma, com pouca disposição para o diálogo. E isso já se faz notar, por exemplo, na polarização do debate político brasileiro.
Não é infrequente que dentro dos guetos, físicos ou virtuais, ocorra um processo que desemboca no fanatismo e no extremismo. Há um fortalecimento no grau de adesão aos próprios argumentos - os seus participantes se tornam mais convencidos sobre as suas teses -, mas sem necessariamente coexistir um aprofundamento sobre as razões para esse convencimento. Pode-se estar "muito convencido" subjetivamente, mas não "bem convencido" objetivamente, no sentido de possuir argumentos que sustentam a sua tese no âmbito público.
O exercício de ser questionado nas suas convicções e a busca por encontrar respostas a essas objeções são elementos essenciais para a qualidade da argumentação. Num gueto, tudo isso fica do lado de fora. Há uma blindagem dos seus integrantes, impedindo o debate.
Em razão da ausência de diálogo entre posições diversas, o ativismo na internet nem sempre tem enriquecido o debate público. O empowerment digital é frequentemente utilizado apenas como um instrumento de pressão, o que é legítimo democraticamente, mas, não raras vezes, cruza a linha, para se configurar como intimidação, o que já não é tão legítimo assim...
Essa estratégia, usada por muitos grupos na rede, tem ainda o grave efeito, por culpa dos seus próprios promotores, que apostam na força e no curto prazo, de fazer com que legítimas demandas sociais permaneçam marginalizadas. Perante a sensibilidade da sociedade, são percebidas como causas carentes de legitimidade.
A internet, como espaço de liberdade, não garante por si só a criação de consensos nem o estabelecimento de uma base comum para o debate. Todos falam, mas ninguém parece escutar quem pensa diferente.
Um exemplo são os comentários postados junto das notícias de diversos portais. Em princípio, deveria ser algo espetacular: dar voz aos leitores. Mas qual foi a última vez que você leu um comentário que realmente contribuiu para a discussão do assunto tratado? Talvez não soe bem aos ouvidos contemporâneos, mas quantidade de participantes não é sinônimo de qualidade no debate.
Evidencia-se, aqui, um ponto importante. A internet não substitui a imprensa. Pelo contrário, esse fenômeno dos novos guetos põe em destaque o papel da imprensa no jogo democrático. Ao selecionar o que se publica, ela acaba sendo um importante moderador do debate público. Aquilo que muitos poderiam ver como uma limitação é o que torna possível o diálogo, ao criar um espaço de discussão num contexto de civilidade democrática, no qual o outro lado também é ouvido.
O filtro da imprensa pode ser muito saudável democraticamente. E isso não é elitismo, como se a opinião de alguns valesse mais do que a de outros. É exatamente o contrário. Num jornal, o que sai escrito foi em geral questionado por muitas outras cabeças. Na internet, cada um publica o que quer e ponto final.
A racionalidade não dialogada é estreita, já que todos nós temos muitos condicionantes, que configuram o nosso modo de ver o mundo. Sozinhos, nunca somos totalmente isentos, temos sempre um determinado viés. Numa época de incertezas sobre o futuro da mídia, aí está um dos grandes diferenciais de um jornal em relação ao que simplesmente é publicado na rede.
Imprensa e internet não são mundos paralelos: comunicam-se mutuamente, o que é benéfico a todos. No entanto, seria um empobrecimento democrático para um país se a primeira página de um jornal fosse simplesmente o reflexo da audiência virtual da noite anterior. Como aponta Steve Coll, diretor da Faculdade de Jornalismo da Columbia University, o trabalho dos editores de um jornal não perdeu significado com a internet. Pelo contrário, nunca foi tão necessária uma ponderação serena e coletiva do que será manchete no dia seguinte.
O perigo da internet não está propriamente nela. O risco é considerarmos que, pelo seu sucesso, todos os outros âmbitos devam seguir a sua mesma lógica, predominantemente quantitativa. O mundo contemporâneo, cada vez mais intensamente marcado pelo virtual, necessita também de outros olhares, de outras cores. A internet, mesmo sendo plural, não tem por que se tornar um monopólio.
É a primeira vez na História em que todos, ou quase todos, podem exercer a sua liberdade de expressão, escrevendo o que quiserem na internet. De forma instantânea, o que cada um publica está virtualmente acessível aos cinco continentes. Tal fato, inimaginável décadas atrás, vem modificando as relações sociais e políticas: diversos governos caíram em virtude da mobilização virtual, notícias antes censuradas são agora publicadas na rede, etc. Há um novo cenário democrático mais aberto, mais participativo, mais livre.
E o que pode haver de negativo nisso tudo? A facilidade de conexão com outras pessoas tem provocado um novo fenômeno social. Com a internet, não é mais necessário conviver (e conversar) com pessoas que pensam de forma diferente. Com enorme facilidade, posso encontrar indivíduos "iguais" a mim, por mais minoritária que seja a minha posição.
O risco está em que é muito fácil aderir ao seu "clube" e, por comodidade, quase sem perceber, ir se encerrando nele. Formam-se, assim, os novos guetos: círculos fechados de pessoas que pensam da mesma forma, com pouca disposição para o diálogo. E isso já se faz notar, por exemplo, na polarização do debate político brasileiro.
Não é infrequente que dentro dos guetos, físicos ou virtuais, ocorra um processo que desemboca no fanatismo e no extremismo. Há um fortalecimento no grau de adesão aos próprios argumentos - os seus participantes se tornam mais convencidos sobre as suas teses -, mas sem necessariamente coexistir um aprofundamento sobre as razões para esse convencimento. Pode-se estar "muito convencido" subjetivamente, mas não "bem convencido" objetivamente, no sentido de possuir argumentos que sustentam a sua tese no âmbito público.
O exercício de ser questionado nas suas convicções e a busca por encontrar respostas a essas objeções são elementos essenciais para a qualidade da argumentação. Num gueto, tudo isso fica do lado de fora. Há uma blindagem dos seus integrantes, impedindo o debate.
Em razão da ausência de diálogo entre posições diversas, o ativismo na internet nem sempre tem enriquecido o debate público. O empowerment digital é frequentemente utilizado apenas como um instrumento de pressão, o que é legítimo democraticamente, mas, não raras vezes, cruza a linha, para se configurar como intimidação, o que já não é tão legítimo assim...
Essa estratégia, usada por muitos grupos na rede, tem ainda o grave efeito, por culpa dos seus próprios promotores, que apostam na força e no curto prazo, de fazer com que legítimas demandas sociais permaneçam marginalizadas. Perante a sensibilidade da sociedade, são percebidas como causas carentes de legitimidade.
A internet, como espaço de liberdade, não garante por si só a criação de consensos nem o estabelecimento de uma base comum para o debate. Todos falam, mas ninguém parece escutar quem pensa diferente.
Um exemplo são os comentários postados junto das notícias de diversos portais. Em princípio, deveria ser algo espetacular: dar voz aos leitores. Mas qual foi a última vez que você leu um comentário que realmente contribuiu para a discussão do assunto tratado? Talvez não soe bem aos ouvidos contemporâneos, mas quantidade de participantes não é sinônimo de qualidade no debate.
Evidencia-se, aqui, um ponto importante. A internet não substitui a imprensa. Pelo contrário, esse fenômeno dos novos guetos põe em destaque o papel da imprensa no jogo democrático. Ao selecionar o que se publica, ela acaba sendo um importante moderador do debate público. Aquilo que muitos poderiam ver como uma limitação é o que torna possível o diálogo, ao criar um espaço de discussão num contexto de civilidade democrática, no qual o outro lado também é ouvido.
O filtro da imprensa pode ser muito saudável democraticamente. E isso não é elitismo, como se a opinião de alguns valesse mais do que a de outros. É exatamente o contrário. Num jornal, o que sai escrito foi em geral questionado por muitas outras cabeças. Na internet, cada um publica o que quer e ponto final.
A racionalidade não dialogada é estreita, já que todos nós temos muitos condicionantes, que configuram o nosso modo de ver o mundo. Sozinhos, nunca somos totalmente isentos, temos sempre um determinado viés. Numa época de incertezas sobre o futuro da mídia, aí está um dos grandes diferenciais de um jornal em relação ao que simplesmente é publicado na rede.
Imprensa e internet não são mundos paralelos: comunicam-se mutuamente, o que é benéfico a todos. No entanto, seria um empobrecimento democrático para um país se a primeira página de um jornal fosse simplesmente o reflexo da audiência virtual da noite anterior. Como aponta Steve Coll, diretor da Faculdade de Jornalismo da Columbia University, o trabalho dos editores de um jornal não perdeu significado com a internet. Pelo contrário, nunca foi tão necessária uma ponderação serena e coletiva do que será manchete no dia seguinte.
O perigo da internet não está propriamente nela. O risco é considerarmos que, pelo seu sucesso, todos os outros âmbitos devam seguir a sua mesma lógica, predominantemente quantitativa. O mundo contemporâneo, cada vez mais intensamente marcado pelo virtual, necessita também de outros olhares, de outras cores. A internet, mesmo sendo plural, não tem por que se tornar um monopólio.
14 de maio de 2014
Nicolau da Rocha Cavalcanti, O Estado de S.Paulo
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