As coisas andam esquisitas. Ou sempre estiveram, não sei. Dia agradável de trabalho na Serra da Canastra, revisitei a nascente do São Francisco e vi uma loba-guará se movendo com liberdade em seu território. De noite sonhei com o PT. Logo com o PT.
Sentei-me na cama para entender como os pesadelos do Planalto invadiam meus sonhos na montanha. Lembrei-me de que no início da noite vira a história de André Vargas e do doleiro Alberto Youssef na TV, os farmacêuticos do ar que vendiam remédios dos outros ao Ministério da Saúde.
Pensei: esse Vargas é vice, no ano que vem seria presidente da Câmara dos Deputados. Como foi possível a escalada de um quadro tão medíocre? A resposta é a obediência, o atributo mais valorizado pelos dirigentes, antítese de inquietação e criatividade, sempre punidas com o isolamento.
Vargas fazia tudo o que o partido queria: pedia controle da imprensa e fazia até o que o partido aprova, mas não ousa fazer, como o gesto de erguer o punho na visita do ministro Joaquim Barbosa, do STF, ao Congresso. Em nossa era, esse deputado rechonchudo, que poderia passar por um burguês tropical, simboliza o resultado catastrófico da política autoritária de obediência, imposta de cima.
Num falso laboratório, com o nome fantasia de Labogen (gen é para dar um ar moderno), Vargas e Youssef tramavam ganhar dinheiro vendendo remédios ao ministério. O deputado, que ocupava o mais alto cargo do PT na Câmara, trabalhava para desviar dinheiro da saúde! É um tipo de corrupção que merece tratamento especial, pois suga recursos e equipamentos destinados a salvar as pessoas. A corrupção na saúde ajuda a matá-las.
A catástrofe dessa política autoritária se revela também na escolha de Dilma Rousseff para suceder a Lula. Sob o argumento de que os quadros políticos poderiam abrir uma luta fratricida, escolheu-se uma técnica com capacidade de entender claramente que Lula e o PT fariam sua eleição. A suposição de que o debate entre candidatos de um mesmo partido seria ameaçador para o governo é uma tese autoritária. Nos EUA, vários candidatos de um mesmo partido disputam as primárias. E daí?
Lula sabia que um quadro político nascido do choque de idéias seria um sucessor com potencial maior que Dilma para ganhar luz própria. E a visão autoritária de Lula - sair plantando postes nas eleições, em vez de aceitar que novas pessoas iluminassem o caminho - contribuiu para a ruína do próprio PT.
Tive um pesadelo com o PT porque jamais poderia imaginar que chegasse a isso. Os petistas, aliás, carnavalizaram uma tradição de esquerda. Figuras como André Vargas erguem os punhos com a maior facilidade, como se estivessem partindo para a Guerra Civil Espanhola na Disneylândia. E os erguem nos lugares e circunstâncias mais inadequados, como num momento institucional. Um vice-presidente não pode comportar-se na Mesa como um militante partidário.
O correto é que tivesse sido destituído do cargo depois daquele punho erguido. Mas o PT e seus aliados não deixariam o processo correr. Ele são fortes, organizados, bloqueiam tudo. Será que essa força toda dará conta do que vem por aí?
22 de abril de 2014
Fernando Gabeira, O Estado de São Paulo
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