Os estrangeiros, os pacientes e os limites do Programa Mais
Médicos
por MALU DELGADO
O paciente exibia uma ferida vermelha e úmida, de a
specto aflitivo, que lhe tomava boa parte da canela direita. Com 52 anos, convivia há cinco com o problema, até então sem diagnóstico claro e tratamento adequado. Durante a consulta, que durou cerca de meia hora, Odalis disse que se tratava de uma micose. Uma coisa simples, que a falta de cuidados por anos a fio transformou numa infecção. Passava das nove da manhã do dia 12 de dezembro quando Dorisvaldo Souza Ramos, um pedreiro sem carteira assinada, foi atendido por Odalis na Unidade Básica de Saúde (UBS) da Vila Feital, na periferia de Mauá, uma das 39 cidades da Região Metropolitana de São Paulo.
Falando um castelhano pausado, a médica explicou que a doença é provocada por um hongo. Dorisvaldo meneou a cabeça, sem deixar muito claro se havia compreendido que sua perna estava contaminada por fungos. Odalis então lhe disse que as sábanas – ¿Como se llama eso?, perguntou para a agente comunitária de saúde na sala – precisavam ser trocadas diariamente.
“Travesseiro, lençol”, respondeu a funcionária, olhando para o paciente.
Sentada ao lado do pedreiro – um mulato alto e magro, com a pele do rosto curtido bastante enrugada –, a médica lhe deu uma aula de higiene básica. Pediu que ele sempre lave as mãos, os pés, as pernas e que os enxugue bem. Que troque a roupa diariamente, todas as peças, assim como as toalhas e os lençóis. Explicou que, se ele coçar a perna e em seguida tocar outra região do corpo, vai levar os hongos a outros lugares. Insistiu que ele não pode trabalhar, pelo menos por alguns dias, para que a ferida finalmente apresente alguma melhora. Disse ainda que não pode calçar botas de plástico.
O pedreiro confirmou que trabalha com as tais botinas. Ela, por fim, sugeriu o uso de compressas com folhas de goiabeira – “Têm poderes cicatrizantes”.
O movimento na UBS da Vila Feital costuma ser intenso: são cerca de 700 atendimentos por dia, incluindo os que passam por lá para tomar vacina, medir a pressão, conferir o peso ou retirar remédios gratuitamente na farmácia. Os médicos fazem, em média, 32 consultas agendadas por dia, de segunda a sexta. Ao contrário das unidades de pronto atendimento (chamadas UPAs), as UBS não trabalham em regime de plantão 24 horas nem abrem nos fins de semana. Unidades desse tipo existem em todo o país, e seu objetivo é fazer o acompanhamento de rotina do moradores do entorno para evitar a procura às vezes desnecessária por hospitais. Naquela manhã de dezembro, havia 21 pessoas na fila às 7 horas, quando o posto da Vila Feital abre suas portas.
Com ruas asfaltadas ligadas por vielas e casas de alvenaria grudadas umas nas outras, a Vila Feital é uma favela urbanizada. Vivem lá em torno de 29 mil pessoas,das quais 27 102 (ou 7 679 famílias) estão cadastradas no posto público de saúde.
Odalis Osorio e a colega Norkis Sanchez Alonso, também cubana, escolheram morar a 300 metros do local de trabalho, na própria comunidade. A casa que dividem fica na parte baixa de uma ribanceira. É preciso descer uma escadaria e passar rente à janela de outros moradores para chegar à residência das cubanas. Na sala há dois sofás e nada mais (nem quadros, nem cortinas, nem enfeites, nem mesinhas). O fogão, o micro-ondas e a geladeira são de segunda mão – “Mas a geladeira foi pintada e está novinha”, disse Norkis. O luxo mínimo fica por conta dos aparelhos de televisão, um em cada quarto, no piso de cima do sobrado. Depois do trabalho, elas gostam de assistir às novelas brasileiras.
As duas não se conheciam em seu país de origem. Odalis, de 42 anos, especialista em clínica geral, estudou e trabalhava em Guantánamo. Norkis, com 46 anos, especializada em atenção primária à saúde, é de Las Tunas, na parte leste de Cuba. Professoras universitárias, elas chegaram ao Brasil em 3 de outubro de 2013. Conheceram-se no interior de Minas Gerais, em Venda Nova, quando frequentavam o curso preparatório de três semanas e passavam pelo “acolhimento” da primeira turma do Mais Médicos – o controverso programa do governo federal cujo objetivo é contratar temporariamente (por três anos, renováveis por mais três) médicos brasileiros e estrangeiros que estejam dispostos a trabalhar em unidades básicas de saúde de regiões com déficit de profissionais – ou seja, confins brasileiros e nas periferias pobres das cidades, onde a maioria dos médicos nativos tem pouquíssima, ou nenhuma, inclinação a botar os pés.
Em termos políticos, o governo quer dar uma resposta rápida, num ano eleitoral, àquela que costuma encabeçar a lista de insatisfações dos brasileiros: o atendimento público da saúde. O ex-ministro da área, o petista Alexandre Padilha, que se afastou do cargo no início deste mês para se dedicar à eleição, pretende fazer do programa uma das vitrines de sua campanha ao governo de São Paulo.
Na avaliação dos petistas, o Mais Médicos dará à presidente Dilma Rousseff discurso e imagens positivas na disputa pela reeleição, numa área em que nenhum político tem muito do que se vangloriar. Dirigentes do partido especulam inclusive que o programa terá um efeito político tão forte quanto o Bolsa Família, sempre apontado como um dos grandes responsáveis pela popularidade do ex-presidente Lula.
“Entendido?”, perguntou Odalis, dando prosseguimento à anamnese com Dorisvaldo. A cubana ficou preocupada com a pressão arterial do paciente: 13 por 9. “Come com muito sal? Gusta picante?”, indagou, arranhando o português. “Toma café? Fuma?” O pedreiro respondeu afirmativamente a todas as questões. “Vinte cigarrillas por dia? Tiene que dejar”, repreendeu Odalis, ganhando outro riso acanhado do paciente. Ele deixou o consultório com uma receita de antimicótico, um antibiótico (que em seguida seriam retirados gratuitamente na farmácia da UBS), a ficha de provável hipertenso, a recomendação para medir a pressão arterial a cada dois dias no posto e um outro papelzinho azul para marcar um retorno cinco dias depois. “Tem que voltar lunes, segunda, segunda-feira”, advertiu Odalis, rindo de sua confusão com os idiomas.
As médicas de Mauá integram o grupo de 5 378 profissionais cubanos que estão no Brasil na condição de “cooperados” do Mais Médicos e trabalham exclusivamente em postos de saúde. Dos 6 658 médicos que já atuam no programa, 81% são cubanos. Os 461 demais estrangeiros são de diferentes nacionalidades – argentinos, bolivianos, portugueses, espanhóis e até indianos. Entre os 1 512 brasileiros que se inscreveram para participar, só 819 começaram a trabalhar nas UBS – ou seja, 46% deles desistiram. A meta do governo federal era ter pelo menos 13 mil profissionais no programa até o fim do primeiro trimestre deste ano, o que não será cumprido.
No dia 24 de janeiro, o Ministério anunciou que dali a quatro dias mais 2 mil cubanos aportariam para o “terceiro ciclo do programa”, com início previsto para março. A notícia, divulgada de surpresa, desmentia o que a própria pasta da Saúde havia tornado público na véspera – que o terceiro ciclo teria mais 891 profissionais, apenas, e nenhum deles cubanos. Pela lei que criou o Mais Médicos, quando as inscrições de profissionais brasileiros e outros estrangeiros não são suficientes para suprir a demanda dos municípios inscritos no programa, o governo pode, então, acessar a cooperação internacional com Cuba, artifício que tem usado com frequência.
Padilha acompanhou Dilma Rousseff em sua ida a Cuba no final de janeiro. Foi sua última viagem oficial como ministro. Em Havana, posou para uma foto em que aparece à frente do exército de 2 mil cubanos (todos em fila e de jaleco branco) que começariam a chegar ao Brasil no dia seguinte. Depois divulgou a imagem pelo Twitter.
Somados os profissionais do terceiro ciclo, o Mais Médicos passará a ter a partir do mês que vem 9 549 profissionais – 7 378 deles de Cuba, o que representa 77% do total. Segundo a Organização Mundial de Saúde, existem hoje 46 295 cubanos trabalhando em 66 países, incluindo o Brasil. Destes, 20 616 são médicos, e os demais são enfermeiros ou agentes comunitários. Isso significa que mais de um terço dos doutores cubanos espalhados pelo mundo está concentrado no Brasil. A exportação de médicos tornou-se uma espécie de commodity cubana. Estudos mostram que na última década os ganhos obtidos pelo governo dos Castro com serviços médicos, incluindo a exportação de doutores, corresponderam a quase 30% do total de exportações da ilha.
Na mesma manhã chuvosa de dezembro em que diagnosticou a micose de Dorisvaldo, a doutora Odalis atendeu um garoto de 14 anos. Alex Sandro Guzzo chegou ao posto visivelmente contrariado e abatido, acompanhado pela mãe, Fernanda da Silva Guzzo, de apenas 31 anos. De aparência muito frágil, tinha terríveis dores de cabeça já fazia um ano. Até aquela consulta, havia se limitado a recorrer seguidas vezes ao pronto-socorro durante as piores crises, onde lhe receitavam invariavelmente uma injeção de dipirona. E só.
A médica se espantou ao tomar conhecimento de que o adolescente nunca fizera nenhum exame clínico ou laboratorial, apesar de sentir dores tão intensas há tanto tempo. Mandou a enfermeira pesar e medir a altura do garoto, submeteu mãe e filho a um interrogatório cerrado. Quis saber se ele assistia televisão por muitas horas consecutivas. Fernanda se antecipou e disse que o vício não era a tevê, mas o videogame.
Odalis explicou que Alex Sandro precisava ir ao oftalmologista, o que deixou a mãe surpresa. As lancinantes dores podiam simplesmente ser causadas por um problema de vista. Depois de receitar vários exames (sangue, fezes, urina), a médica perguntou, para finalizar a consulta: “Sente algo más?” “Ele sente muitas dores nas pernas, nos braços. Mas é normal, né doutora, fase de crescimento.” Odalis contestou a mãe imediatamente: “Não, não é normal que tenga dolor.” Retomou o interrogatório e descobriu que Alex Sandro passou praticamente toda ainfância sendo medicado por antibióticos (sobretudo amoxicilina) e injeções de Benzetacil, devido a constantes amigdalites e viroses. Arriscou, enfim, mais um diagnóstico: “Pode ter febre reumática pela repetição dos medicamentos na infância.” Fez novas recomendações e, dirigindo o olhar à mãe e ao filho, perguntou se eles entenderam tudo. Fernanda deixou o consultório mais aliviada: “Gostei dela. Se continuar assim vai ser bom.”
Até a chegada das cubanas à Vila Feital, havia apenas cinco equipes da UBS com médicos, numa estrutura que prevê sete equipes trabalhando – cada uma delas com um médico, um enfermeiro, dois auxiliares de enfermagem e seis agentes comunitários. A doutora Norkis Alonso ocupa agora o consultório amarelo, que estava vago. Fica quase em frente ao consultório rosa, de Odalis. Ali, como em boa parte das unidades básicas de saúde país afora, as equipes são divididas por cores. Os protocolos médicos são arquivados em pastas coloridas dispostas em prateleiras e arquivos de metal. O aspecto é o de um grupo escolar da década de 70. A sensação de coisa antiga é reforçada por portas enferrujadas, vidros quebrados e macas visivelmente rodadas do posto médico.
Ao escutar a recomendação de Norkis de que devia tomar “uma tableta de AS por la noche”, a aposentada Raimunda Ferreira Josué ficou calada e olhou para os lados, como se pedisse socorro. A cubana percebeu o abismo da comunicação entre elas. Tentou restabelecer o contato, falando alto e pausadamente: “As-pi-ri-na! Entendeu, Raimunda?” A senhora de 73 anos respondeu timidamente que sim, mas a testa franzida era um sinal claro de que ainda estava confusa. “Não tem perigo não, né? Vou tomar tudo.” “Sim, vai tomar tudo”, repetiu Norkis. “O que é? É comprimido?”, perguntou de novo Raimunda, nocauteada pelo enigma da tableta. Norkis lhe explicou tudo pacientemente mais uma vez. “É que eu não tenho leitura. Chego em casa e tenho que mostrar para a minha nora”, justificou-se a senhora, analfabeta. Ao se despedir da paciente, Norkis enfatizou que será sua médica por três anos, um mantra que tanto ela como Odalis repetem ao final de cada consulta. E agradeceu à aposentada pelo tempo em que estiveram juntas, gentileza que também pareceu confundir Raimunda.
A comunicação com pacientes é um problema que Norkis Alonso já havia enfrentado em 2008, quando foi para Belize, na fronteira com o México, também num acordo de cooperação internacional de Cuba. Ela atendeu à comunidade indígena de Punta Gorda – “uma terra muito pobre, de que ninguém se lembra” –, onde a maioria dos habitantes falava o idioma iucateque. Na época, o filho mais novo da médica tinha 4 anos. Agora, com 10, ele se separou mais uma vez da mãe. A filha mais velha, de 22 anos, escreve e-mails diários para Norkis, que os responde também todos os dias, às sete da manhã, antes de ir para a UBS, onde começa a trabalhar às oito. Os dois filhos ficaram em Cuba com o pai e os avós.
Norkis e Odalis encaram a distância da família com resignação. Além da oportunidade financeira, a viagem profissional a um outro país tem, para elas, um caráter missionário. “Estudei medicina para ajudar a população carente”, disse Norkis, da forma mais direta possível. Mais expansiva e brincalhona que a colega, Odalis também já havia passado por outra experiência internacional. Esteve entre 2003 e 2006 na Venezuela de Hugo Chávez.
Era um período tenso, logo após o golpe de 2002 que tentou destituir o presidente. A doutora se lembrou de que ela e seus compatriotas enfrentaram problemas de aceitação por parte dos colegas venezuelanos. Agora, Odalis deixou os dois filhos, de 4 e 11 anos, com o pai. Sem saber usar o Skype ou manejar qualquer outra comunicação similar pela internet – ferramentas às quais não têm acesso em Cuba –, as duas se queixaram dos altíssimos preços da telefonia brasileira. Três meses após a chegada ao Brasil, descobriram finalmente em janeiro um cartão telefônico que lhes permite pagar 9,90 reais para falar por cinco minutos com os familiares que ficaram na ilha.
No início, as cubanas não demonstram muito interesse em comentar a celeuma que o Mais Médicos provocou no Brasil. “Não temos problemas com os médicos brasileiros. Estão cuidando do espaço deles. Mas não sei o que se passa. Só estamos ajudando o Brasil”, respondeu Norkis quando lhe perguntei sobre a hostilidade e as reservas dos colegas nativos em relação aos cubanos. Depois de instantes, ela acrescentou: “Em Minas Gerais os médicos brasileiros não quiseram dar aulas para nós.” O curso preparatório de atenção primária no SUS foi ministrado por enfermeiros e agentes comunitários. Havia apenas um médico dando aulas na turma das cubanas. “Era evidente que havia algo no ar”, concluiu Norkis.
Para o Conselho Federal de Medicina e a Associação Médica Brasileira, está tudo errado no Mais Médicos. Consideram o programa um remendo, eleitoreiro, que não vai resolver o problema do atendimento básico no Sistema Único de Saúde e opta por mão de obra barata em vez de criar uma carreira de Estado, bem remunerada, para atrair médicos brasileiros para os locais onde hoje ninguém quer trabalhar.
Alegam ainda que os estrangeiros – em especial os cubanos – têm formação duvidosa, procedência acadêmica desconhecida e – anátema dos anátemas – estão isentos de prestar o Revalida, o exame criado pelo Ministério da Educação para convalidar o diploma de médicos graduados no exterior que queiram exercer a profissão no Brasil. Rigoroso, o Revalida tem índices baixíssimos de aprovação.
A Medida Provisória nº. 621, que instituiu o programa em julho de 2013, define o Mais Médicos como uma modalidade de “ensino-serviço”. Na prática, as coisas se passam como se os médicos fossem estudantes – “intercambistas”, no caso dos estrangeiros –, sem vínculos empregatícios formais. Eles não recebem décimo terceiro salário, adicional constitucional de férias, nem estão incluídos no sistema previdenciário brasileiro. Apenas têm direito a doze “bolsas” por ano e estão autorizados a tirar trinta dias de folga, além dos auxílios para aluguel e alimentação, pagos pelas prefeituras que aderiram ao programa. “Eles estão trabalhando, então têm de receber salário, e não bolsa.
O governo está burlando a lei”, argumentou o presidente da AMB, Florentino Cardoso. “Entendemos que o médico deva prestar o Revalida e, se aprovado, poderá trabalhar não só neste programa, mas no Sírio-Libanês e no Einstein, onde também vai atender à burguesia brasileira. O profissional pode servir em qualquer lugar, desde que prove sua capacitação”, disse por sua vez o cardiologista Roberto Luiz d’Avila, presidente do CFM.
Se os milhares de cubanos se submetessem ao Revalida, ele acredita que pouquíssimos prosseguiriam no país. “Há três anos o Revalida só aprova em torno de 10%. É por isso que o governo não quer expô-los ao exame. Noventa por cento dos candidatos não passariam. O governo prefere que eles não façam a prova e disponibiliza qualquer médico para o nosso povo, porque o que importa é o voto, e não a solução do problema”, continuou D’Avila.
Principal porta-voz da classe contra o programa, o carioca Roberto d’Avila, de 62 anos, falou à piauí por telefone, dePortugal. Formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, fez especialização em cardiologia na Santa Casa de Misericórdia do Rio, mas a maior parte da sua atividade profissional foi exercida no sul do país, em Florianópolis, onde clinicou em seu consultório particular até 2010. Agora, aposentado pela União (era funcionário do Ministério da Saúde) e pela Universidade Federal de Santa Catarina, ele se dedica aos pleitos da entidade que preside e ao doutoradoem bioética e ética médica da Faculdade de Medicina na Universidade do Porto.
Igualmente inflexível, Florentino Cardoso, da AMB, insistiu que o governo “engana a população ao sustentar que o Mais Médicos vai resolver o problema da saúde”, mas admitiu que “o acesso” vai melhorar. Ele contestou, no entanto, o dado do governo federal de que o Brasil precisa de mais profissionais porque possui apenas 1,8 médico por mil habitantes – um índice bem inferior, por exemplo, ao de Cuba (6 médicos por mil habitantes). São Paulo, Porto Alegre, Brasília e Rio de Janeiro possuem “mais de 4 médicos por mil habitantes, índices superiores aos de muitos países europeus”, afirmou. Quando o questionei sobre as periferias, os grotões, as áreas rurais – alvo principal do Mais Médicos –, Cardoso respondeu com uma frase de efeito: “Quantidade não é qualidade.” No Maranhão, pior estado brasileiro no ranking divulgado pelo Ministério da Saúde, há 0,58 médico para cada mil habitantes.
Padilha posou para a foto em Havana com a nova leva de médicos cubanos, mas se recusou a falar sobre os pontos controversos do programa. Por mais de um mês ele se esquivou de conceder entrevistas. O coordenador do Programa Mais Médicos no Ministério, Mozart Sales, disse que não existe nenhuma intenção de “canibalizar” o mercado de trabalho no setor.
Citou a Austrália, o Canadá, a Inglaterra, Espanha e Portugal como exemplos de países com tradição de intercâmbio de médicos e que apelaram para a estratégia de importar temporariamente profissionais de outras nacionalidades. Afirmou que de18% a 37% dos profissionais que atuam nesses países são formados no exterior. “No Brasil, só há 1,79% de profissionais [médicos] oriundos de outros países, dos quais só 0,6% estrangeiros”, falou.
O diagnóstico feito pelo secretário envolve números eloquentes: há cerca de 200 milhões de habitantes no Brasil, dos quais apenas 48 milhões possuem algum plano de saúde. Os 150 milhões restantes dependem de atendimento no SUS. Dos mais de 370 mil médicos que trabalham no Brasil hoje, apenas 34 mil atuam como médicos de família e servem nos postos de saúde. Nas contas do governo federal, a meta é ter pelo menos 50 mil equipes da saúde da família no Brasil – o que equivale dizer 50 mil médicos nessa área. Com isso, busca-se ter pelo menos um médico de família para cada três mil habitantes a fim de suprira demanda dos pacientes do SUS.
Mozart Sales também não vê sentido na exigência de um exame tão amplo e complexo como o Revalida para os médicos do programa. “O Revalida é a revalidação plena para o exercício da medicina em qualquer local do Brasil e em qualquer especialidade. O que estamos fazendo é um programa vinculado a um município específico, no qual o registro do médico só é válido ali naquela cidade e para atuar em atenção básica. Essa figura do exercício restrito é uma coisa nova, e não se encaixa no que estava estabelecido pela legislação brasileira”, argumentou.
O portal do Conselho Federal de Medicina na internet exibe trechos da audiência pública promovida pelo Supremo Tribunal Federal para discutir o Mais Médicos, em 25 de novembro do ano passado. Durante vinte minutos de explanação duríssima, Roberto d’Avila disse que o programa criou duas “castas” de médicos: “Uma para as pessoas simples e carentes, médicos sem revalidação [de diploma], sem CRM [certificado médico]; outra para a elite, para os que podem pagar planos de saúde, podem pagar diretamente ao hospital ou ao médico, os médicos com CRM.” Não conseguiu elencar nenhum aspecto positivo do Mais Médicos, então implantado havia quatro meses, e reclamou da falta de esclarecimentos do Ministério da Saúde sobre o paradeiro dos “intercambistas” e sobre a identidadede seus “tutores” e “supervisores”, o que dificulta a fiscalização e a avaliação sobre a eficácia do programa.
Dois meses depois da audiência no STF, sem mudar de opinião sobre o programa, D’Avila voltou a levantar dúvidas sobre a qualidade da formação dos cubanos: “O Conselho esteve em Cuba em 2003 e 2004, visitou as escolas. Aquela é uma medicina que parou no tempo. Pode apresentar algumas vantagens na questão da medicina de família e comunidade, mas peca por não ter a possibilidade de avançar no diagnóstico. Os exames lá solicitados são muito simples. O paciente não vai ter a assistência que nós aqui no Brasil podemos dar e oferecer.”
O doutor Rodrigo Cariri Chalegre de Almeida é um dos tutores do Mais Médicos. Em março de 2013, ele viajou para um estágio em Cuba. Disse ter visto um quadro muito distinto daquele que o presidente do CFM pinta.
“Cuba faz transplantes, cirurgia oftalmológica, tudo de alta complexidade. Mas, claro, você não tem ali a hotelaria do Sírio-Libanês.” Coordenador do curso de medicina da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) em Caruaru, Cariri é responsável por uma equipe de 22 supervisores do programa do governo. São docentes da UFPE que se reúnem uma vez por mês com os intercambistas para dirimir dúvidas clínicas, discutir casos, checar a agenda e as condições de moradia dos médicos. Todos os supervisores têm de se reportar ao tutor, o cargo de Cariri. São os tutores que repassam informações sobre os médicos ao Ministério da Saúde.
Com forte sotaque pernambucano – apesar de ter nascido em São Paulo quando sua mãe fazia residência em ginecologia na Universidade de São Paulo –, o professor de apenas 37 anos classifica como “ignorância superficial e científica” o que tem ouvido das entidades de classe contra médicos cubanos. “Fui com os olhos críticos, preocupado com a questão do regime cubano. Mas fiquei pasmo”, comentou.
Por causa da tutoria, Cariri é alvo de um processo movido pelo Conselho Regional de Medicina de Pernambuco. Ele se diz assustado com os “sinais de intolerância” de seus colegas em relação ao Mais Médicos. O braço pernambucano da entidade de classe entendeu que ele estava infringindo o Código de Ética Médica ao ministrar aulas e supervisão a “não médicos”.
A Advocacia-Geral da União (AGU) assumiu a defesa de Cariri e de mais outro tutor do programa em Pernambuco. Os dois obtiveram uma liminar na Justiça Federal que lhes assegura o direito de continuar atuando no programa, mas o mérito ainda não foi julgado. Cariri sustenta que, mesmo que se livre do processo, já está cumprindo uma pena dura ao ter a ética médica questionada.
Sem vínculos com o PT – “Deus me livre” –, ele não vê coloração partidária no Mais Médicos. “Mas é óbvio que isso vai se reverter em votos. É inevitável”, afirmou. A imagem que ele emprega fala à imaginação: o desembarque massivo de médicos no país seria uma “revolução” comparável à reforma sanitária que Oswaldo Cruz promoveu no Rio de Janeiro no início do século passado. “Mais de 20 milhões de brasileiros passaram a ter acesso a médicos”, resumiu.
O Mais Médicos desencadeou uma guerra jurídica que está em curso. No final de janeiro, o Conselho Federal de Medicina começou a ajuizar ações em todo o país (uma para cada conselho regional) para obrigar o Ministério da Saúde a fornecer uma lista dos locais em que os médicos estrangeiros estão atendendo, bem como os nomes dos tutores desses profissionais. Tramitam no STF duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade contra o programa – uma movida em conjunto pelo CFM e pela AMB, a outra patrocinada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores Liberais Universitários Regulamentados.
A Corte Suprema também analisou dois mandados de segurança, um de iniciativa do notório deputado fluminense Jair Bolsonaro, e outro da AMB, ambos visando barrar no nascedouro a Medida Provisória que criou o programa. O último relatório da AGU, concluído em janeiro, aponta que, entre instâncias superiores e inferiores, tramitam na Justiça 77 ações questionando o Mais Médicos. A maior parte delas partiu de conselhos regionais de medicina.
Desde agosto do ano passado, quando o médico cubano Juan Delgado foi hostilizado por colegas brasileiros ao desembarcar no aeroporto de Fortaleza, as críticas ao teor do programa e a resistência a profissionais de Cuba seconfundem.“Temos o a.C. e o d.C., antes de Cuba e depois de Cuba”, brincou Ligia Bahia, de 58 anos, professora de medicina e saúde pública da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Estudiosa do Sistema Único de Saúde, do qual é grande defensora, ela não se reconhece no debate polarizado sobre o programa.
Avalia, por um lado, que o governo federal camufla problemas estruturais daquele que deveria ser um “sistema universal de saúde”. Mas diz que, na outra ponta, “as entidades médicas fizeram um papelão e agiram de forma mesquinha ao desprezar as necessidades da população e demonstrar um preconceito enorme contra os cubanos”.
Ligia Bahia lamenta que a gestão petista prefira o caminho das “medidas paliativas e superficiais, que não darão conta de imprimir um padrão, uma política no SUS”. E exemplifica: “Um estudante vai se formar daqui a oito anos para ser médico do Einstein, porque isso é que é considerado uma maravilha. Esse debate o governo não quer encarar.” O cerne da questão, no entendimento da professora, que nunca atendeu em um consultório particular, não é se faltam médicos no SUS, mas como o Brasil forma profissionais para o SUS. Um país com dimensões continentais “não pode depender da importação de médicos”. Outro absurdo criado pelo Mais Médicos, apontou a especialista, é o fato de os cubanos trabalharem como se fossem enfermeiros. “Eles não podem fazer cirurgias, nada. Estão morrendo de medo que alguém morra na mão deles. Ora, isso não tem cabimento.”
A pressão sobre os cubanos não se resume a isso. Ao contrário dos demais médicos do programa, que se inscrevem sem a intermediação de seus governos, eles não podem escolher (ou sugerir) o local ou a região do Brasil onde gostariam de atuar. São designados para o posto à revelia, a escolha cabe a Cuba. Uma vez indicados para tal cidade, costumam morar próximo ao local de trabalho, geralmente em favelas e periferias, como as doutoras Odalis Osorio e Norkis Alonso, da UBS da Vila Feital, em Mauá.
O contrato entre os governos brasileiro e cubano tem características próprias. Diferentemente do que se passa com os demais países, é intermediado pela Organização Pan-Americana de Saúde, a Opas, o que também é objeto de controvérsias. À exceção dos “cooperados cubanos” (quase 80% dos médicos envolvidos), os demais contratados, estrangeiros e brasileiros, recebem uma bolsa mensal de 10 mil reais do governo federal, além do auxílio para aluguel e alimentação, a cargo das prefeituras credenciadas ao programa – 4 027 das 5 570 existentes no país.
No caso dos cubanos, há um termo de cooperação entre o Brasil e a Opas pelo qual o país transferiu aproximadamente 511 milhões de reais à entidade. Desse valor, a organização ficou com 24 milhões de reais e repassou o resto ao governo cubano, que paga os cooperados.
O acordo entre o Brasil e a Opas não especifica quanto cada médico cubano recebe. A nuvem de mistério que cerca o assunto alimenta o discurso das entidades de classe que definem os cubanos como “escravos” explorados com a aquiescência do governo brasileiro.
O valor exato do salário que os cooperados recebem aqui depende de sua experiência na ilha. A regra geral é a seguinte: uma parte é paga no Brasil e outra é depositada diretamente na conta bancária de cada um em Cuba, à qual só podem ter acesso quando voltarem para casa. A maior parcela do que o Brasil repassa pelo termo de cooperação (em torno de 70%), no entanto, não fica nem no bolso, nem na conta bancária dos médicos, e sim com o governo cubano.
Odalis e Norkis tomavam café da manhã na cozinha de casa quando o assunto veio à tona. Vestidas de branco e trajando jaleco, já prontas para ir trabalhar, entreolharam-se e ficaram caladas por alguns instantes. A seguir, revelaram receber 400 dólares (cerca de 950 reais) de salário, além de 600 dólares (cerca de 1 450 reais) no banco de Cuba. Acrescentaram que é uma excelente quantia diante da realidade cubana. Odalis se apressou em dizer que ninguém as obriga a ir para o exterior e que cada médico fica de posse do seu passaporte, ao contrário do que se comenta.
Além desse dinheiro, a família de cada médico continua recebendo o salário que eles tinham em Cuba, antes de viajar. “Nossa família recebe um tanto, e outro tanto fica no banco, direitinho. Tem uma conta e tem um cartão”, disse Norkis. No caso dela, seus familiares têm direito a 700 pesos cubanos por mês, o equivalente a 30 dólares, uma ninharia que, no entanto, Norkis se preocupa em justificar: “Sou especialista, máster, professora da Escola Latino-Americana de Medicina, tenho 23 anos de experiência.”
Na prática, o auxílio-aluguel (1 500 reais) e o auxílio-alimentação (500 reais) que as duas cubanas recebem da Prefeitura de Mauá compõem a maior parte da verba que chega mensalmente às suas mãos. Na opinião delas, dá e sobra. Como vão a pé para o trabalho, gastam quase nada com transporte. No almoço, pagam 9 reais pelo prato feito caseiro de uma cozinheira baiana de 59 anos, vizinha do posto de saúde, de quem já se consideram amigas.
As duas médicas descrevem com muita simpatia a vida comunitária que levam na Vila Feital: “Levanto às 7 horas, tomo banho, tomo café e chego muito bem ao posto, caminhando por dez minutos. Se vou ao mercado, encontro meus pacientes. Se me perco, pergunto para os pacientes nas ruas. Eles estão nas lojas, estão em todolugar”, comentou Norkis. Odalis foi além e disse que gosta de pensar no paciente como alguém da sua família: “Pode ser meu irmão, pai ou avó. Não vejo diferença de cor, de renda. Não quero olhar só a doença, mas como o paciente vive, onde mora. Vê-lo como um ser psicossocial.”
Naquela manhã, diante da xícara de café preto com pão de forma e manteiga, as duas repetiram o que ouvi delas mais de uma vez: não fizeram medicina para ganhar dinheiro. “Nossos principais líderes, Raúl e Fidel, são solidários. Desde os nossos primeiros estudos aprendemos a ser solidários. Se alguém precisa de nosso serviço, estamos aí.” Depois de dizer isso, Norkis manifestou sentir “orgulho” do sistema educacional de seu país e arrematou: “Em Cuba não preciso de pai e mãe ricos para ser médica.”
Um relatório de 2013 do Ministério da Saúde chamado Estudantes de Medicina e Médicos no Brasil, financiado pelos hospitais Sírio-Libanês e Albert Einstein, revelou que quase 58% dos cursos de medicina do país são privados.
O valor médio das mensalidades é de 3 900 reais. A mais cara universidade de medicina do Brasil cobra 8 886,82 reais. Enquanto em São Paulo há 36 cursos de medicina, no Amazonas há apenas três. No Acre, um curso apenas. O perfil dos estudantes que ingressaram na Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto em 2013 fornece mais um retrato de como a profissão, no Brasil, está socialmente concentrada: apenas 2% dos estudantes trabalhavam; 82% eram brancos; 88% fizeram cursinhos particulares de pré-vestibular; 82% concluíram o ensino médio em escolas privadas. Quase a metade desses futuros médicos (41%) declarou renda familiar acima de dez salários mínimos.
Quando decidiu se inscrever no Mais Médicos, o jovem espanhol Abraham Alba García, de 27 anos, pediu a um diplomata conhecido conselhos sobre o país que ambicionava desbravar. “Se quer conhecer o Brasil autêntico, vá para a Amazônia”, disse o cônsul espanhol. García seguiu à risca a recomendação e aterrissou em Manaus: “Eu queria sair da Europa para viver outra realidade. Se vou para São Paulo, encontro a Europa. E uma missionária amiga minha também já havia me dito: se você quer conhecer gente doce, vá para o Norte do Brasil.”
O médico admite que parte do ímpeto de pousar na Amazônia vem da crise europeia. Até o dinheiro para uma cerveja com os amigos passou a escassear. A família de classe média espanhola deixou um dos dois carros na garagem para economizar. “Consegui terminar a universidade porque estava na reta final”, contou García, que é filho único.
Graduado em medicina por uma escola da região da Catalunha, ele se preparava para prestar o Exame do Estado, prova exigida pelo governo espanhol para que os médicos comecem uma especialização – o equivalente a uma prova de residência no Brasil. “Já tinha enviado meu currículo para o Médicos sem Fronteiras e pensava em ir para a Líbia ou a Argélia”, explicou ele, que também trabalhou como voluntário em programas da Cruz Vermelha para refugiados e já esteve como médico na Bolívia e no Nepal, apesar da pouca idade. “Era uma bolsa da faculdade. Trabalhei no único hospital pediátrico do Nepal. Imagine como era”, comentou. Sem grandes expectativas, ele preencheu os formulários do Ministério da Saúde e semanas depois estava selecionado.
Os 10 mil reais que recebe por mês, somados ao auxílio-moradia de 1 200 reais (que ele acha insuficiente) e ao auxílio-alimentação de 371 reais pagos pela Prefeitura de Manaus, lhe permitem levar uma vida confortável. “Eu sou um afortunado aqui”, disse ele, apontando para as ruas pouco inspiradoras ao redor da UBSF N-55 – sigla que parece um código de guerra, mas significa Unidade Básica de Saúde da Família na região Norte de Manaus.
Como tudo na cidade parece estar distante e espalhado – as casas e as pessoas –, a UBSF N-55 localizada no Parque dos Buritis, uma área pobre no bairro Nova Cidade, é um pontinho no meio da floresta. Sob um calor extenuante, a UBS com ar-condicionado se transforma numa espécie de oásis amazônico.
Abraham Alba García mora a quarenta minutos de carro do posto de saúde, num pequeno apartamento duplex que alugou por 1 200 reais. O trajeto até a UBS era feito de ônibus e durava uma hora e meia, até que um motorista de táxi concordou em levá-lo todos os dias às 6 horas, cobrando 150 reais por semana. A volta continua sendo feita de ônibus. “Vou comprar um carro”, anunciou o doutor, um rapagão louro de olhos verdes, único médico – e único homem – do posto de saúde. “Às vezes é complicado”, limitou-se a dizer.
Ele tem formação em canto lírico e deixou para trás, na Catalunha, uma banda de blues. Com a voz grave, perguntou a Shirlei, uma das agentes comunitárias, se havia muitos pacientes no corredor aguardando atendimento. Sem tempo para intervalos entre as consultas, Alba García se permite, por alguns minutos, fumar um cigarro do lado de fora do posto depois do almoço. “Eu fumo, eu bebo, sou um pecador por aqui”, divertiu-se, relatando que se surpreendeu com o número de igrejas evangélicas ao redor da UBS. Amante de poesia, o espanhol fica irritado quando seus pacientes se põem a falar da Bíblia.
Como as cubanas de Mauá, ele faz longas anamneses com os pacientes e é detalhista nas consultas. Na tarde de 17 de janeiro em que o acompanhei, atendeu nove mulheres e apenas um homem. Detectou em uma das pacientes um nódulo na mama, ouviu de outra a recusa para um exame ginecológico.
Um caso, em especial, o mobilizou. Jéssica Arruda da Silva, uma jovem de 18 anos, chegou ao posto grávida, queixando-se de muitas dores. Franzina, com a fisionomia de adolescente, não havia feito nenhum ultrassom ou exame pré-natal até então.
Tampouco sabia quantos meses tinha de gestação. Em torno de quatro meses, conjecturou o médico, ao começar a examiná-la. Durante a consulta, a jovem acabou revelando que tinha “batido com a barriga na cadeira” poucos dias antes, sem conseguir explicar exatamente como aquilo havia acontecido. “Dói muito quando eu respiro”, queixava-se a García.
O médico a deitou na maca e ligou o detector fetal para medir os batimentos cardíacos do bebê. Estavam preocupantemente lentos. Ele saiu da sala e voltou com o nome de uma maternidade pública. Prescreveu uma ultrassonografia urgente. “Tenho que ir lá? Posso passar qualquer dia?”, perguntou a jovem, com ar meio avoado. “Vá imediatamente. E traga o resultado assim que sair”, respondeu o espanhol, elevando a voz.
O prontuário médico de Jéssica registrava um aborto ocorrido em 2011. Durante a consulta ela contou que havia perdido o emprego. Era ajudante numa padaria e não tinha carteira assinada. Fora demitida porque “a dona explicou que queria alguém em dois turnos” e ela, grávida, não teria condições de dar conta da exigência.
No fim da tarde, quando o expediente terminou, Abraham García foi chamado pelas “meninas” – as agentes comunitárias – até a cozinha para experimentar um doce de laranja que um paciente levara. Fumou mais um cigarro e ainda preencheu mais algumas fichas médicas. Naquele dia, conseguiu ir embora de carona.
Fluente em catalão, inglês e italiano, o médico espanhol admitiu certo desconforto diante da dificuldade de se comunicar com os pacientes no Brasil. Disse se sentir exausto pelo esforço diário de ter de falar e escrever em outro idioma.
Suas prescrições são redigidas com zelo, de forma compreensível. “Senão vão colocar no Facebook”, brincou, referindo-se a sites e comunidades criadas por médicos brasileiros para exibir “erros” e receitas equivocadas dos estrangeiros. Assim como as cubanas, García recorre o tempo todo ao tablet dado pelo governo federal, em que constam protocolos médicos, estatísticas de doenças e os medicamentos usados no Brasil.
Ao contrário das colegas Norkis e Odalis, que se esquivam do confronto com as entidades de classe brasileiras, García não é de fugir da polêmica: afirmou já ter visto receitas prescritas por médicos brasileiros diante das quais não sabia se deveria “rir ou chorar”.
Disse que “nunca, nunca”, desde que chegou a Manaus, recebeu os históricos dos pacientes atendidos por profissionais do país. E alegou que não é o Revalida que vai dizer se ele é ou não um bom médico. “O médico sempre estuda. Aqui, na China ou na Espanha. Depende da exigência das universidades. Médicos bons e ruins há em toda parte. Quando escuto alguns médicos brasileiros, eu penso: estão falando muito, mas não são os melhores profissionais do mundo. No Brasil as universidades ainda são jovens.”
O catalão não tem dúvida de que existe diferença na forma de tratar os cooperados cubanos e os demais estrangeiros, em especial os europeus. Mas também critica a atitude dos colegas da ilha, “passivos e silenciosos”. “Eles não podem falar tanto. Não têm essa liberdade. É normal, no regime comunista dos Castro é assim. Estão recebendo no Brasil dez vezes mais do que recebem lá. Então não podem abrir o bico. Mas teriam muito que dizer”, provocou.
Logo na entrada da UBSF N-55 de Manaus há um retrato do prefeito Arthur Virgílio, crítico feroz de Lula quando ocupava a cadeira de líder do PSDB no Senado. O tucano exibe na foto um largo sorriso. Na cidade que administra, o Mais Médicos conta com 33 profissionais, dezenove deles estrangeiros e catorze brasileiros.
Do lado de dentro do posto, García não poupou o poder público de suas críticas. Quando o entrevistei, estávamos em sua sala, um ambiente de 9 metros quadrados, onde também se encontravam um assessor de imprensa do Ministério da Saúde e outro da prefeitura de Manaus. A presença deles foi uma exigência dos coordenadores do Programa Mais Médicos para franquear o acesso ao catalão. A companhia de representantes dos governos federal (petista) e municipal (tucano) não o constrangeu.
Abraham García contou que desde agosto, quando o programa começou, foi realizada apenas uma reunião de todos os profissionais do programa com a subsecretária de Saúde de Manaus. Disse ter ouvido da responsável da prefeitura que a cidade aderiu ao Mais Médicos por causa da Copa do Mundo: caso optassem por um concurso público, os médicos demorariam a chegar, expondo as fragilidades do município. “Ela disse: vocês agora podem decidir se querem continuar aqui ou se querem ir embora”, contou.
Ele reclamou da falta de informações claras sobre o programa, de exigências de documentação que lhe pareciam absurdas, das dificuldades de moradia e transporte que os médicos tiveram que enfrentar no início. “Depois de um mês de hotel, colocaram os cubanos num apartamento, todos juntos, sem camas, sem geladeira, sem nada. Foram tratados como cachorros. Eles falaram isso na reunião com a subsecretária. Ela alegou que a prefeitura não estava preparada. Então por que se inscreveu para o programa?”, questionou García.
Em Manaus, o resultado de um exame de ressonância magnética pode demorar mais de quatro meses. Laudos de exames de rotina (hemograma, fezes e urina) só serão conhecidos entre trinta a sessenta dias depois da coleta.
Na UBS da Vila Feital não há máquina de ressonância. É preciso encaminhar o paciente a outro município. Já os exames de rotina coletados na própria unidade têm os resultados disponíveis em aproximadamente sete dias. As precariedades do Sistema Único de Saúde são visíveis em Manaus e em Mauá.
A passagem de ano de Norkis e Odalis foi celebrada com um churrasco nos fundos da casa onde estão vivendo. A festareuniu moradores do bairro, todos eles pacientes das doutoras. Três meses depois, Odalis está mais loura.
Descoloriu o cabelo num salão de beleza lá perto. García apareceu no Profissão Repórter, da Rede Globo, logo que chegou ao Brasil, e é reconhecido nas ruas de Manaus. Disse que se sentiu “usado” como um “garoto-propaganda” do Mais Médicos e que não acha isso correto. Comentou que nas primeiras semanas todos faziam alarde festivo em torno da sua chegada, e depois, quando os problemas começaram a ocorrer, muitos sumiram do seu radar. É visível que as cubanas estão mais aclimatadas à nova vida e aos modos brasileiros.
Quarenta dias depois da primeira consulta com Norkis, Raimunda retornou ao posto de Mauá. As dores de cabeça, razão de queixa na consulta feita em dezembro, foram aplacadas. A doutora manda que a idosa continue tomando tabletas de AS, mas o remédio está em falta no posto.
Diabética e hipertensa, Raimunda reclamou agora de dores nas pernas e de uma provável incontinência urinária. Era possível sentir um odor fétido de urina no ar. Ela abriu a bolsa e mostrou as seringas que pegou na farmácia do posto para aplicar insulina. Disse sonhar com o dia em que não precisará mais do remédio, mas não mostrou disposição para abrir mão do “danado do bolo de chocolate”.
Dorisvaldo, o pedreiro com a ferida na perna, foi convocado para um retorno no mesmo dia em que Raimunda, 22 de janeiro. Teve de viajar para a Bahia e adiou a visita. Sua mulher, Ilzete, contou por telefone que ele “está fazendo tudo direitinho”, que a ferida “está um pouco melhor”, mas que “ainda coça muito”.
Fernanda Guzzo, a mãe do adolescente Alex Sandro, também voltou ao posto naquela manhã suarenta. Desculpou-se ao dizer que só havia conseguido marcar a consulta do menino num oftalmologista e agendar os exames de sangue no dia 20, antevéspera do retorno. Explicou que os agendamentos foram suspensos no final do ano passado. A Prefeitura de Mauá abriu, de fato, nova licitação para contratar um laboratório de análises clínicas. É preciso esperar.
Em Manaus, Jéssica já levou para o doutor Abraham García os resultados do ultrassom que conseguiu fazer no mesmo dia da consulta, em 17 de janeiro. Pelo telefone, com a voz pouco entusiasmada, ela contou que está grávida de quatro meses e que está tudo bem com o bebê.
04 de abril de 2014
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