Eu desconfio de todo e qualquer governo. Quanto mais eles querem uma coisa mais eu desconfio dela.
Não é só uma deformação profissional e nem um simples preconceito. Trata-se de um conceito solidamente estabelecido com base na minha experiência pessoal e na experiência alheia. Na própria História da Humanidade, vale dizer.
A esta altura do campeonato, pra ser sincero, não acho possível ser honesto e deixar de desconfiar dos governos ao mesmo tempo. Eu seguiria desconfiando de todo governo ainda, e principalmente, se fosse um governo chefiado por mim mesmo.
Daí a minha radical adesão à democracia, esse arranjo de coisas que tem por objetivos principais a alternância no poder e a facilitação da reforma recorrente das instituições e das regras do jogo. É ela que permite a todos e a cada um de nós voltarmos à tona sempre que afundamos no erro, como é da nossa natureza de elementos mais pesados que a água.
De modo geral, pelas mesmas razões, tendo sempre a preferir – ou a me sentir menos ameaçado – pelos arranjos espontâneos da coletividade que por aqueles baixados pelos grupos profissionalmente organizados para a luta pelo poder.
O tal “Marco Regulatório da Internet” não foge à regra.
Todo mundo diz que “é uma lei muito importante e urgente” mas ninguém explica exatamente porque. E como a complexidade técnica envolvendo essa questão é quase tão vasta e “eco-lógica” quanto a da vida real, o espaço para a sacanagem que se abre com os “marcos regulatórios” urdidos por esse tipo de profissional é praticamente infinito.
Nem o mais genial cientista da computação, nem o mais competente dos matemáticos é capaz de prever todas as implicações de se alterar; de se bloquear ou liberar, de se aquecer ou resfriar, de se suprimir ou acrescentar qualquer dos elementos constitutivos da “rede do tamanho do mundo”.
Como reprodução matemática da vida real que ela é, a manipulação dela está tão sujeita a desastres e efeitos colaterais quanto a original onde o mais tênue movimento das asas de uma borboleta pode acabar gerando um furacão.
Os caminhos da rede mundial também são tão perigosos e variados quanto os da vida real e muita gente vai morrer antes de aprender a andar por eles sem ser vítima de tudo de que pode-se ser vítima na vida que a rede replica como ficção matemática.
Assim como na outra, portanto, também nesta a ilusória ânsia de fugir dessa insegurança toda é o que pavimenta o caminho para a servidão.
A complexidade técnica envolvida nessa tarefa favorece, antes de todos os outros, os açambarcadores, os bandidos e os governantes interessados em mais poder que são, rigorosamente, todos os açambarcadores, bandidos e governantes que existiram antes, todos os que existem hoje e todos os que existirão no futuro.
A tal “neutralidade da rede” que é o fantasma que mais se agita por aí para fazer rolar a onda do “marco regulatório”, pensando bem, é dos poucos pontos em torno dos quais sempre houve consenso. Só estiveram ou estão contra eles os provedores de serviços de internet que gostariam de cobrar mais para quem quiser “furar a fila” do fluxo global de bits fazendo circular informação em todos os seus formatos – texto, som e luz em movimento – pelos grandes “dutos” que conectam o mundo de ponta a ponta pela matéria ou pelo éter.
A insistência nessa bandeira libertária quando nem havia tanta necessidade de agitá-la é que me fez, por analogia, desconfiar do que mais se escondia por baixo dela pois sempre foi assim, também, que aconteceu no mundo aqui de fora...
Ha aí uma questão potencialmente explosiva porque o ponto desafia a lógica básica do mercado. Mas nada que não pudesse ser facilmente resolvido se olharmos para a rede como o que ela já nasceu sendo: um equipamento planetário de infraestrutura compartilhado em todos os sentidos – físico, orgânico e gerencial – e, portanto, naturalmente excluído da lógica do mercado que é uma decorrência de certas limitações do mundo físico que não existem no mundo virtual.
O verdadeiro alvo não muito oculto dos famintos de poder nessa campanha pelo “marco regulatório” é outro. Liberdade de expressão é um atributo inato da espécie humana. Nós nascemos usando e abusando de tudo de que a Natureza nos dispõe, nesse campo, simplesmente para aprendermos a estar no mundo como todas as demais espécies vivas. E para além do que temos em comum com as outras, queremos sempre aprender mais do que é necessário apenas para isto.
Logo, tudo que, desde o início dos tempos, foi inventado para cercear esse exercício e barrar essa vontade inata, são criações artificiais inventadas e impostas pela força ou pela mistificação para dar a alguns mais do que eles se esforçaram por conquistar mediante o expediente de manter os outros ignorantes de tudo que todos têm o direito de saber e, assim, estruturar aquilo que nos foi ensinado chamar de “sistemas de poder”.
Daí a pergunta que sempre me martelava atrás das orelhas: porque aqueles que vivem pregando o “controle social da mídia” são sempre os que mais ardentemente gritam pela “liberdade na web” garantida por uma lei quando a web, nesse quesito, exatamente em função da ausência de leis do gênero e até da impossibilidade concreta de impô-las, sempre foi muitíssimo bem, obrigado?
Exatamente porque não a querem de fato. Na verdade têm horror à liberdade e, mais particularmente, à liberdade de expressão e de informação que os faz minguar como o sol aos cogumelos.
Como a tradição latina é de que a lei afirme o que é permitido fazer ficando tudo o mais proibido, ainda que, pela natureza da web, os ávidos de poder nunca mais consigam impor o controle da informação tão absolutamente quanto já impuseram um dia, podem sempre ganhar tempo.
Estão aí os parágrafos 3º e 4º do Artigo 19 do “marco regulatório” petista para não me deixarem mentir. Neles estabelece-se que qualquer juizado especial de conciliação, desses que não requer nem advogado, pode emitir liminares mandando retirar conteúdos da rede, ainda que sejam estritamente jornalísticos, mas não ha definição alguma sobre como exigir o direito de colocá-los de volta nela.
Fechando a arapuca, estabelece-se que para qualquer controvérsia sobre o que se publica ou não por aqui, especialmente em português, venha de onde vier, vale a legislação nacional.
Para quem olha para a pletora dos direitos democráticos como alguma coisa com prazo de vencimento estabelecido e o mais próximo possível está de bom tamanho. Nem é preciso, considerando-se que este país mal fala português, cercar mais esse frango, com a descentralização da gestão dos endereços de internet pelo ICANN, hoje centralizada nos Estados Unidos. Isso fica para as arenas internacionais de tiro ao ianque.
Vem a seguir a questão da proteção da privacidade que preocupa a nós, os internautas, mas não especialmente aos gulosos de poder.
Excelente campo para a demagogia!
Invasão de privacidade tem duas: a dos comerciantes e a dos governos. Quando olho para comerciantes como o Google e a Amazon, com sua fome pantagruélica (ou googleiana, expressão que se poderá “googar” para entender), brandindo seus bilhões como quem brande bombas de neutrons contra qualquer sinal de concorrência – a mãe da liberdade de escolha – não tenho dúvidas de que temos mais a temer deles que dos governos para o futuro próximo.
Mas até que a História cuide deles, a questão ficou parcial e satisfatoriamente resolvida ao menos para este nosso nos parágrafos mencionados acima: Brasília continua podendo ter acesso aos seus dados sem perguntar nada à Justiça.
No mais é só papo furado pra enganar os trouxas previamente preparados em nossas escolas aparelhadas para temer o que não é preciso temer de modo a não temer o que é preciso temer.
Dona Dilma esperneou e gritou contra a espionagem americana. Tanto que o mundo todo ficou meio assim. Não estão acostumados com o jeito petista de ser. É que neste mundo em que vivemos, de comerciantes a governantes, não ha quem não saiba, só não espiona mais quem não consegue, pela simples razão de que não é tecnicamente possível impedi-lo.
A Receita Federal do PT, por exemplo, é páreo para a NSA de Obama e Edward Snowden, guardadas as proporções dos alvos que interessam a cada uma. O computador do PT só tem equivalente na Nasa e qualquer cidadão brasileiro que tenha feito uma movimentação de dinheiro superior a R$ 4.999,99 deu a eles, sem saber, um mandato para monitorar cada um de seus passos desse dia em diante. E assim vem acontecendo.
É que como a nossa desordem tributária foi deliberadamente construída para ser impossível cumprir todos os milhares de regras novas que ela emite todos os dias, essa é a maior arma de chantagem de que dispõe esse governo. Daí o empenho na eficiência que sobra na Receita Federal mas falta tão clamorosamente em todos os outros campos que nos interessam do serviço público.
Mas para que não reste dúvida em que algum Joaquim Barbosa possa um dia se agarrar, o Parágrafo 3º do “marco” estabelece que qualquer autoridade que já detém esse poder no mundo real “pode requerer livremente dados cadastrais, de qualificação pessoal, filiação, endereço, etc. sem ordem judicial”.
São esses os pontos concretos do “marco” que justificam a luta que neles Dilma empenhou Renan Calheiros, o Avaaz, os blogueiros do PT e cia. ltda. na base do rolo compressor e com direito até à troca de votos no “marco” por “apoios” do partido a candidaturas regionais.
Os demais, gênero “garantia de acesso à internet essencial à cidadania”, direito de receber a velocidade de acesso pela qual realmente pagamos e quejandos, vêm juntar-se àquele extenso rol dos “direitos” que nós todos “temos”, “garantidos” pela Constituição dos Miseráveis de 1988, tais como à educação, à saúde e à segurança públicas de qualidade.
23 de abril de 2014
vespeiro
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