NOVA YORK "Eu me contradigo? Pois muito bem, eu me contradigo. Sou amplo, contenho multidões." (Folhas de Relva, de Walt Whitman)
O vídeo granulado de uma câmera de segurança foi reprisado aqui uma semana inteira. Um homem alto apaga a luz de um escritório e, antes de sair, se atraca num beijo passional com uma mulher mais baixa e loura. O homem era o deputado calouro da Luisiana Vance McAllister, uma figura opaca e medíocre que se elegeu em novembro passado numa vaga plataforma de direita cristã e valores de família. A louraça, o leitor já adivinhou, não era a Mrs. McCallister, mãe dos cinco filhos do deputado. Escândalo. Inúmeros monólogos dos comediantes de fim de noite. A mulher, assessora do deputado, perdeu o emprego e o marido. Chegaram a pedir para McAllister renunciar. Ele regurgitou piedades e deve manter o cargo e o salário, ainda que politicamente castrado no futuro próximo.
Ah, a ridícula santimônia americana, dirão. Se fosse na França, não seria manchete. Sim, a sensação causada pela foto de François Hollande de moto indo passar a noite num apartamento com a atriz Julie Gayet não provocou o terremoto que teria sacudido Washington. Mas a cena inspirou outra acusação. Afinal, o contribuinte francês pagava para manter Valérie Trierweiller como primeira-dama no Eliseu e Hollande já tinha arrumado outra desde a época da eleição.
O deputado beijoqueiro e o presidente francês têm algo em comum. Ambos são acusados de hipocrisia. Quanto mais as figuras públicas empacotam suas palavras e seu comportamento no papel celofane do marketing, maiores as chances de se tornarem alvo da acusação. A era digital multiplicou as oportunidades de embaraço, na medida em que quase tudo o que se faz e se diz em público pode ser googlado para aferir a coerência.
Na conhecida passagem do Novo Testamento, Jesus salva uma mulher adúltera da morte por apedrejamento e acusa os fariseus de hipocrisia por não estarem livres de pecado: "Atirem a primeira pedra".
Um filósofo canadense tem argumentado que a hipocrisia não é exclusiva dos moralistas nem dos que têm poder para julgar ou decidir o destino dos outros. Somos todos hipócritas, diz o professor de filosofia e romancista Clancy Martin, sem a indignação que costuma acompanhar o adjetivo, que equivale a chamar alguém de fraudulento.
Uma das mais comuns reivindicações morais que fazemos para nós mesmos é a ideia de que o hipócrita é sempre o outro. "Nada necessita de mais reforma do que os hábitos dos outros", dizia Mark Twain, como lembrou Martin num ensaio recente. A hipocrisia causa mais furor quando descobrimos que fomos enganados com as armas do santarrão.
Quando Lula instrui Dilma a defender a Petrobrás contra uma inexistente conspiração privatista e sabemos que a companhia foi dilapidada para benefício privado por seus guardiões estatistas, o sangue ferve. A pilhagem da Petrobrás parece doer mais sob a piedade petista.
A hipocrisia é condenada desde a Antiguidade, mas, lembra Martin, que o mais celebrado texto literário sobre o tema é a peça Tartufo, ou o Impostor que Molière escreveu no século 17. O poder de Tartufo foi logo confirmado pela censura ao texto imposta por Luís XIV. Na peça, o personagem Cléante é o contraponto sincero ao impostor piedoso do título. Cléante diz que a verdadeira natureza da maioria dos homens nunca é exposta.
Parte integral da nossa admiração por figuras públicas é a convicção de que elas praticam o que pregam. Imagine, propõe Clancy Martin, se alguém um dia revelar que o pacifista Mahatma Gandhi saía à noite pelas ruas de Nova Délhi esbofeteando policiais britânicos.
O fato é que nosso cérebro é programado para o autoengano, o mecanismo analisado no belo livro homônimo de Eduardo Giannetti da Fonseca, em 1997. A hipocrisia é um fenômeno evolucionário. Para sobreviver, precisamos nos contradizer. Em termos crus, o que motiva alguém a sobreviver à competição brutal no trabalho não é o que motiva a mãe a aconchegar um bebê, mas os dois impulsos são necessários.
Vladimir Putin pode invadir a Ucrânia e ser ótimo pai porque em cada um dos dois papéis está usando convicções incompatíveis.
A hipocrisia requer mais do que o autoengano, ela precisa de um outro. "Todo homem é sincero a sós", dizia Emerson no século 19. Somos mais tolerantes com a nossa inconsistência do que a dos outros. Psicólogos e neurocientistas hoje acreditam que a hipocrisia é parte integral da sobrevivência social porque ela serve de couraça para conquistar obstáculos.
Clancy Martin não defende a hipocrisia e sim o cuidado em acenar com a acusação. Subir no cavalo branco e localizar o hipócrita apenas no outro é uma forma de hipocrisia, seja na Grécia antiga ou na Brasília de 2014. "Atire a primeira pedra" continua a ser um bom argumento cautelar. Mas não na defesa dos saqueadores da Petrobrás.
23 de abril de 2014
Lúcia Guimarães, O Estado de S.Paulo
O vídeo granulado de uma câmera de segurança foi reprisado aqui uma semana inteira. Um homem alto apaga a luz de um escritório e, antes de sair, se atraca num beijo passional com uma mulher mais baixa e loura. O homem era o deputado calouro da Luisiana Vance McAllister, uma figura opaca e medíocre que se elegeu em novembro passado numa vaga plataforma de direita cristã e valores de família. A louraça, o leitor já adivinhou, não era a Mrs. McCallister, mãe dos cinco filhos do deputado. Escândalo. Inúmeros monólogos dos comediantes de fim de noite. A mulher, assessora do deputado, perdeu o emprego e o marido. Chegaram a pedir para McAllister renunciar. Ele regurgitou piedades e deve manter o cargo e o salário, ainda que politicamente castrado no futuro próximo.
Ah, a ridícula santimônia americana, dirão. Se fosse na França, não seria manchete. Sim, a sensação causada pela foto de François Hollande de moto indo passar a noite num apartamento com a atriz Julie Gayet não provocou o terremoto que teria sacudido Washington. Mas a cena inspirou outra acusação. Afinal, o contribuinte francês pagava para manter Valérie Trierweiller como primeira-dama no Eliseu e Hollande já tinha arrumado outra desde a época da eleição.
O deputado beijoqueiro e o presidente francês têm algo em comum. Ambos são acusados de hipocrisia. Quanto mais as figuras públicas empacotam suas palavras e seu comportamento no papel celofane do marketing, maiores as chances de se tornarem alvo da acusação. A era digital multiplicou as oportunidades de embaraço, na medida em que quase tudo o que se faz e se diz em público pode ser googlado para aferir a coerência.
Na conhecida passagem do Novo Testamento, Jesus salva uma mulher adúltera da morte por apedrejamento e acusa os fariseus de hipocrisia por não estarem livres de pecado: "Atirem a primeira pedra".
Um filósofo canadense tem argumentado que a hipocrisia não é exclusiva dos moralistas nem dos que têm poder para julgar ou decidir o destino dos outros. Somos todos hipócritas, diz o professor de filosofia e romancista Clancy Martin, sem a indignação que costuma acompanhar o adjetivo, que equivale a chamar alguém de fraudulento.
Uma das mais comuns reivindicações morais que fazemos para nós mesmos é a ideia de que o hipócrita é sempre o outro. "Nada necessita de mais reforma do que os hábitos dos outros", dizia Mark Twain, como lembrou Martin num ensaio recente. A hipocrisia causa mais furor quando descobrimos que fomos enganados com as armas do santarrão.
Quando Lula instrui Dilma a defender a Petrobrás contra uma inexistente conspiração privatista e sabemos que a companhia foi dilapidada para benefício privado por seus guardiões estatistas, o sangue ferve. A pilhagem da Petrobrás parece doer mais sob a piedade petista.
A hipocrisia é condenada desde a Antiguidade, mas, lembra Martin, que o mais celebrado texto literário sobre o tema é a peça Tartufo, ou o Impostor que Molière escreveu no século 17. O poder de Tartufo foi logo confirmado pela censura ao texto imposta por Luís XIV. Na peça, o personagem Cléante é o contraponto sincero ao impostor piedoso do título. Cléante diz que a verdadeira natureza da maioria dos homens nunca é exposta.
Parte integral da nossa admiração por figuras públicas é a convicção de que elas praticam o que pregam. Imagine, propõe Clancy Martin, se alguém um dia revelar que o pacifista Mahatma Gandhi saía à noite pelas ruas de Nova Délhi esbofeteando policiais britânicos.
O fato é que nosso cérebro é programado para o autoengano, o mecanismo analisado no belo livro homônimo de Eduardo Giannetti da Fonseca, em 1997. A hipocrisia é um fenômeno evolucionário. Para sobreviver, precisamos nos contradizer. Em termos crus, o que motiva alguém a sobreviver à competição brutal no trabalho não é o que motiva a mãe a aconchegar um bebê, mas os dois impulsos são necessários.
Vladimir Putin pode invadir a Ucrânia e ser ótimo pai porque em cada um dos dois papéis está usando convicções incompatíveis.
A hipocrisia requer mais do que o autoengano, ela precisa de um outro. "Todo homem é sincero a sós", dizia Emerson no século 19. Somos mais tolerantes com a nossa inconsistência do que a dos outros. Psicólogos e neurocientistas hoje acreditam que a hipocrisia é parte integral da sobrevivência social porque ela serve de couraça para conquistar obstáculos.
Clancy Martin não defende a hipocrisia e sim o cuidado em acenar com a acusação. Subir no cavalo branco e localizar o hipócrita apenas no outro é uma forma de hipocrisia, seja na Grécia antiga ou na Brasília de 2014. "Atire a primeira pedra" continua a ser um bom argumento cautelar. Mas não na defesa dos saqueadores da Petrobrás.
23 de abril de 2014
Lúcia Guimarães, O Estado de S.Paulo
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